O homem anda cautelosamente pela
sala, se encolhendo contra a parede. Os seus passos não produzem som, o seu
deslocamento no recinto não produz vento, o seu rosto não produz suor e os seus
olhos não produzem... Piscadas. Com a arma empunhada, ele caminha taciturno e
frio pelo local. Ele usa luvas, ele usa máscara, ele usa coturnos, ele usa um
sobretudo, ele usa óculos escuros.
–
Quer pipoca, amor? – ela estende o balde de pipocas amanteigadas para mim.
–
Quero, obrigado. – digo, e logo em seguida beijo o topo da sua cabeça.
Nós
dois estamos debaixo de um cobertor, estirados lateralmente no sofá, o seu
corpo delicado sobre o meu. Estamos assistindo filme em uma paz confortante.
Aconchegados numa escuridão gostosa. Pego uma porção de pipocas e as levo a
minha boca. Faço um cafuné no cabelo perfumado e liso da minha linda Aurora. Eu
amo o seu nome. Eu amo pipocas amanteigadas. Gosto do cheiro dela e delas.
–
Eu amo você, e nunca vou cansar de dizer isso. – digo a ela.
Ela
me olha nos olhos e dá um sorrisinho tímido que abraça o meu coração e abranda
os meus sentidos mais inquietos. Ela volta a assistir à televisão.
–
Eu também amo você. – ela diz.
Agora
eu acaricio os seus braços lisos com uma ternura que eu não sabia que existia
dentro de mim. Ela me desperta os sentimentos mais inertes, é por isso que eu a
adoro. Escuto a sua boca mastigando, mascando.
O
homem para subitamente, próximo a uma porta. Devagar, após uns segundos de
tensão e quietude simultâneas, ele abaixa o trinco, espia e revela aos poucos o
seu corpo ao inesperado. No cômodo há uma pessoa dormindo na cama, debaixo de
um cobertor, sozinha. O homem empunha a pistola de modo a mirar no corpo
repousado e caminha sem causar quaisquer distúrbios. A arma tem um silenciador.
–
Como foi o seu dia hoje? – pergunto, encostando o meu nariz no seu cabelo e
inalando o seu perfume delicioso.
–
Foi legal, bem bacana. – ela responde. – Uma correria só, estou cansada.
–
Tudo bem, pode descansar nos meus braços, amor.
Ela
olha para os meus olhos.
–
Obrigada. – ela diz. Volta a assistir o filme. Come mais pipocas.
–
Eu gosto muito de assistir filmes com você.
Eu puxo a sua mão com delicadeza
e afeto e encosto os meus lábios úmidos no dorso. Continuo segurando e a levo
até acima dos seus peitos. Seu coração pulsa. O meu está maluco faz um tempo já.
O
homem levanta o cobertor gradativamente. Vários travesseiros são revelados aos
poucos. Ele rapidamente nota este imprevisto e, ao mesmo tempo em que ouve um
clique de revólver, leva a mira da pistola até o canto do quarto. “Ora, ora, se
não é o Andrew”, diz o outro sujeito do canto da sala, o do revólver, “você
acha que me engana com essa indumentária cafona?”.
Aurora
ri. Aquele tipo de risada que não foi contida e escapa. Eu sorrio ao ouvir a
sua voz femínea. Odeio filmes dublados.
–
Vamos tirar uma foto para guardar esse momento? – pergunto a ela, olhando para
o seu rosto.
–
Vamos. – ela responde.
Reviro-me
um pouco – há todo um peso feminino sobre mim – e pesco o meu celular do meu
bolso traseiro. Aurora se ajeita em mim, trazendo o seu corpo mais para cima,
de modo que nossas bochechas se encostam. E são mornas. E lisas, claro, como o
esperado de uma linda. As dela, claro, as minhas bochechas são terríveis,
horríveis.
Enquadro
os nossos rostos felizes na tela do celular, utilizando a câmera frontal, e
bato a foto.
O
homem disfarçado, da pistola, diz “você é mesmo muito perspicaz, Roger. Eu não
esperava mesmo que não o fosse”. O do revólver – Roger – diz “e você, meu caro,
me decepcionou”. Ambos se aproximam enquanto falam. “Você achou que eu era tão
magro assim?”, Roger diz e aponta para os travesseiros, “faça-me o favor, eu sou
uma baleia fora do habitat natural”. Ambos riem ironicamente, com uma dose
fatal de escárnio.
–
Gostou da foto, bebê? – pergunto, mostrando a foto.
–
Está boa. – ela responde, sorrindo timidamente. – Amor.
Beijamo-nos
por um instante.
Andrew
diz “quem diria que a nossa longa e boa amizade se tornaria nisso, nessa acidez
e cada um apontando uma arma para a testa do outro?”. Roger diz “eu estou apontando para o seu coração, bobinho”, em
tom sarcástico, “nunca fomos amigos, entenda isso, seu alucinado”, complementa.
Contorço-me
e guardo o celular no bolso.
–
Amor, que horas são? – Aurora pergunta.
Contorço-me
e retiro o celular do bolso.
–
São quatro e meia. – respondo, encarando a tela do aparelho.
–
Está na hora de eu ir.
–
Não quer ver o final do filme?
–
Não, querido, desculpa. – ela se levanta. – Tenho clientes me esperando e o
combinado foi de duas horas somente.
O
cobertor sai de cima de mim, e também Aurora. Segundos atrás eu estava quente e
confortável, mas agora estou frio e sinto-me despido. Levanto aos poucos,
tirando a carteira do outro bolso traseiro, enquanto Aurora retoca a maquiagem
em um espelhinho portátil.
–
Cem reais? – pergunto, revirando a carteira e juntando as notas miúdas.
–
Cento e cinquenta. – responde, passando batom.
–
Tudo bem.
Ela
pega as notas da minha mão e coloca na sua bolsa. Eu abro os blecautes e a luz
intensa do dia penetra no interior da minha casa. Acompanho Aurora até a porta
da frente. Abro a porta, deixo a mulher passar. E ela passa, deixando um rastro
de perfume.
–
Tchau, Aurora, tenha um bom dia e um bom trabalho. – digo, quando ela está há uns cinco
metros de mim, em sentido a atravessar a rua.
–
Na verdade, meu nome é Carla, querido. – ela responde, agora parada. – E, por favor,
não me procure mais. Eu não costumo fazer esse tipo de coisa. Isso não é o tipo
de coisa que uma prostituta faz, entende?
–
Entendo, tudo bem.
–
E, por favor, apague aquela foto.
–
Sim, eu iria apagar mesmo. Acredite.
–
Pensando bem... – ela volta a mim, os seus saltos altos baqueando. – Apague
agora, quero me assegurar que você vai apagar.
–
Tudo bem.
Eu
retiro o celular do bolso e ela para ao meu lado, com os braços cruzados. Apago
a foto e faço questão de que ela veja isso. Ela olha para mim, esboça um sorriso
tímido. Como se não quisesse realmente sorrir. Retorna ao seu trajeto anterior,
distanciando-se de mim.
–
Tchau, Carla, tenha um bom dia e um bom trabalho. – digo.
Ela
não responde.
Entro
em casa. Fecho a porta. Sento no sofá. Agora tudo está iluminado e reticente
aqui dentro.
Roger
diz “eu não sei por que eu estou falando com você. Sério, que idiotice, eu
tenho uma arma encostada no seu peito”. Andrew retruca “e eu com essa arma
encostada na sua testa. Engraçado, cadáver não fala”. Roger diz “é mesmo”. Roger
atira subitamente. Andrew morre sem cerimônias e cai no chão, produzindo um som
surdo. “Então cale a boca”, diz Roger.
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