segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

É assim que se consegue paz


A grande esteira que a estrada é, é simplesmente uma esteira. Como meu ódio cresce a cada segundo infindável de súplicas! Pai aquilo, pai isso outro.
– Pai, responda aquilo.
– Seja mais específica. – articulo mecanicamente e sem desviar meu olhar do asfalto. Daria o pênis e de brinde as bolas para ser algo mais que só isso, asfalto.
– Aquilo lá, por que os esquilos voam. – olha para a janela e mexe nas mechas. – Responda se tiver saco. Entenda como quiser, ameaça ou conselho.
A múmia da minha mulher está mascando o chiclete e o ar condicionado só me condena com sua frieza que espanta a umidade confortável de meus olhos e a paz odorífera de minhas narinas surradas pela vida.
– Não responderei então, filha. – levanto um pouco a mão do volante para observar o marcador de combustível. – Obrigado por me ameaçar.
Meu filho está ali dormindo, com sua inocência de dois anos de idade e na cadeirinha. A cada curva, ouço uma reclamação adolescente de braço doendo por ter que ajeitar a cabeça do bebê que acaba tombando. É um cheiro de hortelã com xampu com ar mijo.
– Quanto será que vai demorar? – a autômata feminina de carne fala, isso, fala mecanicamente. Olha, isso, não vê as horas de seu punho, só passa a cauda do olho por alto sobre o display pequeno que comprei de dia das mães.
– Me chame de amor e eu te responderei.
O que eu estava pensando, comprar aquela fortuna para punho? Aquele relógio analógico.
– Me diga as horas de agora e responderei. – coloco o palmo sobre o display digital das horas do carro, essa é minha diversão.
– Ain, não sei ler o relógio analógico. – responde minha estátua metida e que já foi metida pelo menos um par de vezes alucinantes.
A estrada se desenvolve em mesmas coisas repetidas, com a diferença de carros diferentes se exercitando na esteira grande e quase sem fim. E quente, odeio o sol. Abaixo o negocinho do forro e preciso esticar minha cabeça para cima para que a radiação solar impetuosa não me cegue. Enquanto isso, no microcosmo climatizado:
– AMH é de amanhã hoje. AND é de anidrido. REM é uma banda. – diz fazendo o dedo de carretel de fios dourados da juventude e vendo o vento passar, pela janela fechada e fumê. – IDI é instituição denominada IDI. OMG é... Ain, chega de olhar as placas chatas. – minha infeliz filha bufa.
Enquanto isso, observando a velocidade medida do pequeno mundo móvel, uma música repetitiva já estava irritante por todo este momento, até que consegue ficar pior quando meu espantalho aumenta o volume e os alto-falantes choram mais. Sim, há árvores e pastos, mas tudo é sempre a mesma repetição, até mesmo os morros desolados, que prefiro encarar como nada.
– Amo essa música. – estoura uma bolha verde-clara e grudenta na boca. – O que você quiser eu farei por você, meu amor por você você não pode entender! – canta.
– Que saco. – minha filha choca o grande ovo que é sua cabeça na janela, propositalmente, e estende o braço direito para segurar a cabeça do neném sereno, fruto de minha última foda. – Já sei, vamos brincar de verdade ou desafio!
– Isso é uma pergunta? – atravesso seco.
– Viu a interrogação?
– Me chame de paizão que eu te respondo. – garganta seca pelo ar frígido.
            O grande carretel negro é um grande carretel negro que se desenrola na frente do carro que comprei e até hoje me amaldiçôo por ter investido em.
            – Verdade ou desafio, mamãezona?!
            Solto um riso e um sorriso diabólico.
            – O que foi?
            – Nada, mamãe-zona. – giro o volante e logo meu tempo fecha novamente. Incrível como um piscar de olhos desanima.
            Minha respiração é auto-asfixiante e pesada. Embora o gelo excedente dissolvido no ar, ela é quente e vermelha. Na frente, vejo um pedágio brotando no horizonte. Assim: de baixo para cima e de lá para cá.
            – É verdade que você e o papai não fazem sexo desde que ele – franze a testa em direção ao humano diminuto. – Nasceu?
            A música está virando um verdadeiro turbilhão de merdas sonoras, o pedágio parece cada vez mais ficar mais distante.
            – Verdade, ele é uma múmia. – minha mulher responde, não tenho vontade alguma de rir.
            – Agora você: verdade ou desafio? – mesmo que não pareça, essa foi minha filha ameaçando e, de novo, suplicando.
            Minha cabeça fervilha e juro que agora que o troço está andando para a frente, que a civilização instantânea que cobra taxas chega. Olhando a temperatura do ar condicionado, digo atacando:
            – E que tipo de desafio você acha que consigo fazer dentro do carro, filhotinha do meu esse dois?
            – Ain, tipo assim... Sei lá. – acelera o dedo que enrola.
            Abro a janela, freio antes. O ar condicionado está numa temperatura absurda de quinze graus Celsius e o calor abafado logo me esmurra quando giro a manivela do vidro. Uma moça me atende, toda simpatia, e um som sertanejo e ensurdecedor vem do ambiente de trás. Abro a carteira e ela é derrubada em susto, logo que escuto um choro forte vindo de trás de mim. A música aqui de dentro é diferente da outra incrivelmente mais intensa – mesmo assim o mesmo bolo fecal – e inclino-me em direção aos pedais. Meu filho que era um anjo se torna um diabo barulhento e a diaba no banco de passageiro masca e masca em movimento acelerado. Minha testa pulsante e suada colide com o volante, de modo que minha vista embaça. Minha filha está reclamando e algumas buzinas vem de algum lugar, quando me estico até o impossível para colher algumas cédulas. O choro é mais agudo que ensurdecedor e alguém me chama de filho da puta, quando minha mulher fodida discute com a outra fêmea deste carro. Minhas costas roçam desesperadamente no volante, piorando quando em um ímpeto levanto minha coluna e volto à posição de sentado. Dou um murro emputecido no rádio.
            – CALEM AS BOCAS! – berro.
            Só ouço sertanejo.
            Estico a mão para fora.
            A moça pega meus dois reais.
– Obrigada, senhor, boa viagem.