sábado, 15 de maio de 2010

Sem defeitos


            Depois de feita minha obra-prima, falei:


-Maria, esconda isso.


-Pode ser no armário?


-Não ponha no armário. Sempre tem alguém que revira as gavetas no fim do dia para colocar no achados e perdidos.


Chegando o grande dia, foi uma beleza, tudo como planejado. A graciosidade da perfeição. Um espetáculo para os olhos. Tudo... Perfeito.


            Maria, amiga minha, viciada em drogas, já experimentou de tudo nesse mundo, vive dizendo que não voltaria atrás. Cabelos castanhos, sebosos e grossos, porte físico diminuto na região pélvica e torácica, 1 metro e 69 centímetros. O cérebro da tramóia. Conspirante de nascença, revoltada com os padrões atuais e esses adolescentes acéfalos que não fazem nada de útil na vida, totalmente descartáveis.


            Sou, pode-se dizer, uma versão “light” dela. Uso drogas, sim. Mas não como bolos de maconha e não mexo nas veias. Tenho uma face mais nojenta que a dela, não se sabe o porquê, sou mais alto e magro. 1 metro e 70 centímetros, cabelos castanhos quase louros e olhos verdes bem claros.


Pensamos muito, posição e horário. Na verdade, quem pensou foi Maria. Tudo estrategicamente... Perfeito. Maria escondeu minha obra-máxima no laboratório. Faz dois anos que não abrem aquilo. De tanto tempo, aquilo deve estar fedendo jaula e aqueles pedaços de répteis, corações, ratos dilacerados e embriões envidrados já devem ter criado vida.


            No dia D, havia vários objetos inflamáveis concentrados. Estava tudo saindo conforme o planejado. Tudo... Perfeito.


Escolhemos um horário mais agitado, quando os pais saiam do trabalho e iam ver seus pobres filhos apresentarem seus projetos patéticos, desesperados por nota. Pensando em ser algo que preste. A grande e patética feira de ciências semestral, que não leva a lugar algum.


Era a melhor hora possível, pois assim diminuiria o risco de proliferação genética da estupidez. Família por família. Esperamos todos entrarem, até começarem a barrar a entrada.


Jogamos minha queridinha e evacuamos o local. Um espetáculo visual. Um espetáculo pirotécnico. Tudo simplesmente... Perfeito.

Veredicto


Vasto céu azul, outro dia começa. Azul como uma gelatina blueberry numa taça transparente, com uma colher média repousando sobre a superfície,  e leite condensado nas bordas. Um homem qualquer, terno e gravata pretos como a escuridão da floresta no período noturno. Sapatos marrons cor de esterco e camisa branca como as nuvens refletidas em um lago.

Termina de comer suas torradas e de tomar seu cappuccino cremoso. Despede-se de sua esposa loira, beija-a na boca, mete a língua garganta adentro e agarra sua nádega esquerda. Se dirige à porta, vira a maçaneta e recebe um tapa na bunda, seguido de uma risadinha e piscadela.
 
Sai de dentro da casa e caminha em direção à garagem. Na garagem há três carros, um vermelho-cereja, uma BMW de sua filha de 16 anos, e o carro de sua esposa, igual ao seu, só que escrito "SARA-1974" na placa traseira. Ao invés de um "THE LAWYER", de seu carro.

Com a mão esquerda empunhando uma maleta negra, gorda de papéis, este homem abre a porta do  banco do motorista de seu Audi. Entra, solta a maleta no banco do passageiro e coloca o cinto de segurança. Liga o rádio, coloca um CD do Led Zeppelin e dá partida. 

 Vai ao trabalho em seu carro vermelho-cereja, como uma cereja solitária numa cerejeira.

            No caminho de seu trabalho, resolve comprar bombons de licor, daquelas pessoas que vendem no semáforo, quando vermelho. Aquelas que os penduram nos retrovisores de praticamente todos os carros estacionados momentaneamente, e depois os recolhem com imensa rapidez, junto com alguns trocados. 

              Desembrulha um e começa a comê-lo, com o sinal ainda vermelho. Começa com uma abocanhada que retira um naco suculento.

            O sinal se torna verde, ele joga o embrulho no chão do carro. Com duas mãos meladas no volante e um bombom pendurado na boca, sendo mastigado, nosso trabalhador continua a dirigir, com o CD na faixa 4 - “Dazed and Confused”.

            Após um tempo, pára em outro semáforo, ignora mais dois vendedores errantes de doces e desembrulha outro bombom. Desta vez consegue comer a tempo, porém limpa as mãos na calça social rapidamente. Sinal verde..

            Dirigindo por mais duas faixas musicais, desta vez ouvindo “Black Mountain Side”, avista algo, logo à frente. Aparenta ser uma blitz. Estranha, pois ainda é cedo, mesmo para Manhattan.

Pára o carro e faz um suposto teste do bafômetro. Os oficiais da lei pedem para que ele saia e fique com somente um pé sobre o meio-fio. Com seu carro no sentido da mão direita da rua, no acostamento, o homem se vira para a direção oposta, para realizar o teste.

Termina o teste, olha para trás para saber os resultados e... Cadê o carro?

sexta-feira, 14 de maio de 2010

Existência oca


Ventinho você adorava, então nota gelo. Depressão excedente. Restos melancólicos e lembranças de coisas fúteis, na passada não passam – permanecem.
Porquês duvidosos.
Nas saudades incertas, jamais pensou, e jamais pensou em pensar. Até agora, eram apenas memórias.
Soberania da confusão.
Brisa álgida estapeia, saudade à tona chega. Veloz como rojão, águia negra.
Muito rápida.
Sol insensível crema entranhas, carboniza paz. Você, escorado na penumbra. Ângulo, cor e intensidade sutis do astro espantam, longínquas. Luz escura não lhe tange.
Não diretamente.
Aquele raiar crepuscular, tão sereno e morno. Outrora poderia ser conforto.
Desconcertante.
Tem ciência de que noite está iminente de renascer e que a sós, num domingo sombrio, está e passará. Nesse naco do que sobra do dia, o que lhe resta é sufoco.
Sequer pensou tamanha tortura existir.
Televisão bombeia sanidade com programas tristes, inevitável ardência interna. Outrora poderiam ser cativantes, com todos os sorrisos e saltos.
Nostalgia bombardeia.
Luz apagada, filamento de tungstênio relaxado. Neste instante, sente-se mais por objetos que por pessoas.
Solidão amarga.
Ao passo que alheios gozam de festa matrimonial, bem produzidos, você delira no sofá toda produção de pavor.
Costas magoadas, asfixia na alma.
Pelo fato de não quererem incomodar, seus chegados simplesmente não o incomodaram.  Deixaram-no descansar. Ironia tanta que nem pensa mais em baixar pálpebras. Você descansava.
Você continuava a dormir.
Agora, a sós. Eles, estirados e passados.
Por que domingo?
Televisão densa, escuro cochicha rudemente dentro da caixa craniana. Palavras mudas, sem sentido.
E frias.
O que faz sentido?
Nada.
Ribombo talhante. Dança de alfabeto invisível. Massa cinzenta a ofegar. Cornucópia de quietude barulhosa.
Festa!
Encara-se no espelho do banheiro e perde foco. Encara mesmo assim próprios olhos e, tempo depós, sua feição o assusta. Dá solavanco de ré, espavorido. Nuca encontra azulejo novo da parede úmida.
Paredes geladas rodeiam.
Sequer considerou hipótese de aquilo ser você. Aquele ser, sem foco, não parecia ser o que você é realmente.
É chacota das paredes.
Não bastassem dores agudas dorsais e aspereza de coexistir consigo, cabeça agora dói.
E muito.
Pulsa, vibra, lateja, frio, frio!
FRIO!
Encolha-se em canto, não fique tanto. Luzes acesas devem ficar e reze para não  chover, trovoar. Torça por perdão da natureza, com sorte descarregará rancor noutro mais tarde instante.
Rasteje, implore ao nada.
Atravesse cômodos, olhe todos cantos, todos os vultos.
Rápido.
Ignore barulhos fantasmais e brisas arrepiantes. Fuja de frialdades.
Esconda-se.
Ligue luzes, clique interruptores. Não encare televisões e espelhos e camas preparadas. Sempre olhe para trás.
Sempre olhando para trás.
Até o presente, não conhecia o medo. Conhecia-o de vista. Agora amiguinho dele virou. Escuro vem no pacote, ature.
Terror dobrado.
Não são amigáveis. Não amigos por opção, e sim sem noção. Ruins. Frígidos.
Amigos não-amigos.
Brisa retorna periodicamente por fendas e frestas, a fim de incomodar e escarrar em sua cara. Para açoitá-lo e gargalhar. Um pouco mais, sempre mais.
Risos sádicos, golpes glaciais.
Casa foi tomada, não lhe pertence.
Não mais.
Dor intensa, lágrimas negras derramadas, esboçando trajetos pelo rosto esfriado seu. Não-quente.
Não mais.
Respirando pesada e sufocadamente, coração aperta-se a cada fração de instante. Sua alma queima no gelo, seu corpo esfria em próprio calor. Sofrimento. Não há opção. Injustiça. Quem decide destino não é você.
Não mais...

“Oco como coco oco
Agora estás.
Coco menos vão
Quase é.

Inexistência.
A existência oca.
Escuro vem,
Terror detrás.
               
Dorso, cabeça, alma.
Tudo pulsa, tudo pesa.
Falsos amigos e noite da tarde.
Tudo flama, tudo arde.

De uma só vez.
               
Astro impetuoso,
Brisas, espelhos, camas, tevês:
Sufoca, morra em desgosto!
Negridão e gelo no rosto.

Engasga com temores,
Mergulha em horrores.
Nem segundo de oi,
Esperança se foi.

Entrega-te, humilha-te,
Lamenta e estremeça.
Degluta dor,
Sobre ti cai.

Valentia se vai.

Silêncio afiado.
Naquele,
Neste lado.

Palavras mudas:
‘Caia, padeça!
Tortura, tormenta!’

Inimigo festeja.
Adversário invisível,
Onipotente, invencível,
Onde esteja.

Festa!

Encolha-te,
Fica doente.
Definha-te
Sob Sol poente...”

quinta-feira, 13 de maio de 2010

Leis do ódio


 Por alguns instantes, o mundo sumiu à minha volta. Embora tenha muita gente - se é que posso chamá-los disso - elas foram anuladas para mim. Um momento de decisão muito séria.

-Como vocês podem notar na apostila, Cambises morreu empalado pela pró...

            As vozes, por mais altas e irritantes que sejam, somem. Simplesmente, somem. E eu aqui, testando cada objeto.
            Pego uma caneta azul do meu estojo e tiro a tampa. Coloco-a na extremidade oposta à que escreve e começo a fazer um pouco de pressão, com a ponta, sobre o braço. Levanto a caneta e abaixo. Sucessivamente. 1, 2, testando, testando.
            Tento depois na coxa. Para cima e para baixo, como um pêndulo, só que deitado. Movimento harmônico simples.
            A caneta não funciona e me riscou todo. Quem sabe o compasso dê.
            Que porcaria esse compasso, quando mais o precisamos, ele some. Como que num estojo pode sumir tanta coi... Droga, acabei de me lembrar que esqueci a porcaria do compasso em casa. Em cima da escrivaninha.
            Quem sabe este pedaço de ferro seja útil.
            Puxo e empurro o tal pedaço, localizado na parte inferior da carteira, onde se deixa a mala e materiais. Um ferro fino e comprido, paralelo a outros cinco. Perpendiculares a outros dois ferros, mais grossos, que ligam pés consecutivos da cadeira. Um ferro grosso na frente, e outro atrás. Ligando os dois pés dianteiros e os dois traseiros, respectivamente.
            Puxo e empurro... Essa droga não vai sair tão facilmente. Melhor eu parar e pensar em algo diferente.

-Quem arrisca um palpite? O vencedor vai ganhar uma bala! Qual o valor de x? Alguém?

            Mas que droga, nem percebi o professor de matemática entrar. O mundo realmente sumiu. Ou ando muito distraído.
            Vou ouvir um pouco de Metal, quem sabe me venha alguma idéia à tona. Peguei meu celular, só falta desenrolar esses fios ridículos dos fones. Estas porcarias sempre se enrolam numa urgência.
            Ok, consegui. Pluga, clica, aplicativos, player, minhas músicas, Metal, Pantera, Walk.
            Ah, o som do caos. Um caos tão lindo. Um caos que nos afugenta deste mundo. Um caos pacífico para meus ouvidos. Muito bom.
            A exatamente 2:41 minutos de música passados, encaro aquele idiota do outro lado da sala. Aquele acéfalo. Primata. Retardado. Escroto. Ele e sua chapinha tosca.
            Eu preciso achar algo bom o suficiente para a tarefa, urgentemente! O intervalo já deve estar chegando e ele parece estar com vontade de mijar.
            Pense rápido John, pense... Pegue o estojo John, e pense, teste mais alguns objetos.
Caneta, não.
Corretivo, sem ponta.
Borracha, sem vértice e mole demais.
Apontador de metal, nem pensar.
Régua de metal... Ótimo.
            É pontuda, mas não o suficiente. Pense John... Já sei, vou amolá-la.
            Caneta, não.
            Corretivo, liso demais.
            Borracha, absolutamente não.
            Apontador de metal... Perfeito.
            Com muito cuidado começo a amolar. Olho para os lados todo momento, não existo para eles. Eles não existem para mim. E logo, aquele emo do outro canto da sala não existirá também.
            O relógio de ponteiro marca exatas 8:56 horas. O intervalo é às 9:00 horas. Uma mijada não passa de 1 minuto. O caminho até o banheiro, andando calmamente, leva uns 30 segundos cronometrados. Para amolar esta régua, tempo indefinido.
            Droga, quase terminando...

- E por hoje é só. Aula que vem tragam este trabalho sobre metais. 30 pontos.

            Cacete, aquele vagabundo está saindo. Amola mais rápido!

-I, olha o maluco ali correndo com uma régua. Que babaca.

            Tenho que correr, seu gordo babaca. Enrolei demais e já se passaram 1:20 minutos desde que aquele otário das calças justas e cabelo alisado saiu da sala. Não está com fio o suficiente mas forçar um pouco deve dar conta do recado. 
            Corra John, corra. Quase lá, ele está lavando as mãos. Corre! Pule! Empale!

-AAAAA! MEU OMBRO! AAAAA! PARE SEU LOUCO! ALGUÉM  CHAME O DIRETOR! SOCORRO!

            Cale a boca, cale a boca.

-CALE A BOCA E MORRA VAGABUNDO!
-O QUE EU FIZ? MINHA BARRIGA!

            Tome, tome, tome! Corta, corta! Sangue, sangue! Rasgue!

-NÃO GOSTA DE CORTAR OS PULSOS SEU EMO VAGABUNDO? TOME!
-AAAAA!

            Merda, cadê a régua? Não acredito que prendeu no punho dele. Pense rápido John... A pia!

-TOME! TOME! LAVE A BOQUINHA!

            Para cima e para baixo. Puxando com força e empurrando com o dobro da força. Puxando x e empurrando 2x. As leis da física em ação.

-PÁRA! PÁ...

            Engula os dentes, engula o sangue.

-ARRUME O CABELO AGORA VIADINHO! ARRUME! CHAME SEUS HOMENS!
           
            Droga, quebrou a pia. Pense, pense... O joelho!

-VOCÊ NÃO VAI MAIS PRECISAR DESSAS PERNAS!

            E agora?? Quebrei. E agora... A privada!!

-QUEM MANDA NÃO PUXAR DESCARGA? AGORA ENGULA!
-JOHN! VOCÊ ESTÁ EXPULSO!

            Droga, o diretor. Droga, não percebi, o cara já morreu na pia. Foi divertido. O doce som da agonia. A doçura do caos. A paz do caos.

-Tchau diretor bundão!
-John! Volte aqui! Afaste-se da janela imediatamente!

            Agora vejo minha vida passando por meus olhos. Ou seja, estou praticamente cego. O chão está ali e não durará mais que 5 segundos e alguns andares. As leis da física em ação...