sexta-feira, 30 de abril de 2010

Vermelho



Era uma vez, uma menininha ingênua de aproximadamente onze anos e seis meses, que preferia ser atendida  pelo codinome “chapeuzinho vermelho”. Isso mesmo, chapeuzinho vermelho. Residia ilegalmente no centro de floresta aleatória, com os genitores. A mãe de glúteos e coxas bem trabalhadas, o pai alcoólatra  cafajeste que amava chegar ao lar nas noites de sexta, sábado e domingo, para espancar a cônjuge durinha.

O macho vivia descabelado, desajeitado e mal-lavado, cheirando à ração de gato com bunda.  Olhos verdes, cabelos louros, porte físico médio e uns quarenta e um anos de maturação. Desde sempre a masturbação. Década e  meia de tabaco e duas de metil-carbinol no sangue. Não exatamente na corrente sanguínea, mas isso ilustra muito bem as doses cavalares de pinga.

A fêmea possuía um corpanzil de dotes de dar inveja até a um pobre esquilo, dentre eles: olhos castanhos brilhosos,  cabeleira perfeita e nádegas e seios protuberantes carnudos. Duros.

Como chapeuzinho era inocente, até demais, pensava que seus responsáveis brincavam de briga de travesseiros e, alguns dias, de polícia e ladrão, com direito a algemas, tiros, sirenes e cacetadas.

Ao contrário do que é sugerido pelo nome, chapeuzinho usava uma touca vermelho-sangue, não um vermelho ordinário. Tampouco um chapéu, ou chapeuzinho. Ou chapelão. Ou sombrero.

A mãe costumava confeccionar semanalmente cremosos docinhos de ervas, “simplesmente extraordinários!” e  “psicodélicos, não me leve a mal.”, segundo opiniões alheias dos animaizinhos errantes da floresta densa pra caralho.

Um dia, precisamente sexta-feira, chapeuzinho decidiu surrupiar as guloseimas ainda na fôrma, ultra-quentes, e levá-las a sua vovozinha senil. Pelo menos este era o bem maior que justificou tamanha criminalidade. Furto, fruto da má educação ou de um possível retardo mental da garota. Chapeuzinho berrou quando colocou  em contato com a fôrma seus delicados dedinhos, soltando um corpulento “filho de uma puta safada!”.

– O que foi, filhota?

– Nada, mãe! Esbarrei o dedinho do pé nessa porcaria de mesa!

Após mentir friamente, após uma série de afrontas à moral, chapeuzinho deixou sua casa e se direcionou à da vovozinha, deixando a mãe potencialmente vulnerável a espancamentos, garrafadas e penetradas espontâneas. Nossa heroína andou muito por aquela estrada acidentada e pedregosa, resultando em dores agudas e algumas tropeçadas, que ralaram seus joelhos e palmas das mãos.

Enquanto no trajeto, chapeuzinho se sentiu vigiada constantemente por uma besta terrível e esfomeada, que, por um motivo qualquer, não a deglutiu quando em momentos oportunos, como quando a heroína parou para urinar na mata e bater uma siririca ao mesmo tempo. Nem deglutiu também aqueles doces mornos daquela bolsa Prada prata ostentada pela criança. Múltiplos vultos fizeram-na confusa, começou a  pensar estar delirando e a duvidar sobre os docinhos que derretem na boca, receita especial.

Chegando à casa da mãe da sua mãe – ou mãe do pai, já não lembro mais –, a cleptomaníaca entrou sem permissão e retirou os calçados, a fim de descansar os pés calejados e cheios de enormes bolhas febris de sangue e pus dos contornos das solas. Como chapeuzinho era cara-de-pau ao extremo, foi ao banheiro para cagar, sem ao menos alertar vovozinha que estava prestes a estourar o vaso.

Após Flushs, Rosh-roshs e Óóó, isso é bom, chapéu-diminuto retirou-se de dentro do conforto gélido que só um banheiro tem e percebeu que sua avó não estava repousada na cama, seguindo assim à risca as recomendações de seu médico. Seria a vovozinha idiota ou burra?

À procura da tonga, touquinha vermelha chegou à cozinha e ficou defronte de uma cena nada trivial: Uma besta peluda e fedida encontrava-se agachada fazendo algo, logo ali.  Mais perto do que parecia.

Órgãos por todos os lados, muito sangue escuro espirrado nos vértices do cômodo, membros desacoplados, utensílios domésticos partidos, roupas atassalhadas e um garfo cravado no ombro da fera só fizeram chapeuzinho lembrar que era mortal.

Um pâncreas em repouso na mesa central de mármore bem negro, sangue vermelho-sangue em poças gigantescas cercando a criatura grotesca e chapiscado nas paredes de azulejos xadrez caríssimos, um coração  pulsante  arredor dos pés calejados de nossa garota, e rastros de garras pelas mobílias – contidas num conjunto francês especial limitado, adquirido via leilão clandestino.

A velhinha possuía um vasto tecido epitelial, avermelhado e grosso, enrugado e asqueroso, estendido, de forma que se passava por uma toalha de mesa a primeira vista. E só.

No desespero sufocante, touca-vermeia se atirou com idiotice feral e impulso feroz, sobrenatural para sua estatura, e estrangulou o ser. Pelo menos tentou. Quem dera força de vontade fosse força de verdade. O ser lhe devolveu alguma palmada certeira na boca do estômago de nossa estúpida garota com sede de heroísmo e pulou em cima da mesma. Face a face. Chapéu-no-diminutivo embaixo, apnéica, e o monstro em cima, baforando e babando em seu delicado rosto que delgadas linhas definiam.

O bicho possuía um bocarão e dentes imanes para trituração de ossos e carne humanas, que exalavam carniça. Orelhas grandes para monitorar suas presas na floresta. Olhos esféricos gigantes entorpecentes para amedrontar suas vítimas. E focinho largo, para farejar sangue quente.

Subitamente, sem razão aparente ou lógica, um lenhador sarado, com aparência de modelo comercial de perfume francês  barato, munido de um machado duplo de quase quatro quintos de sua altura, brotou do chão e desferiu um golpe visceral no crânio da praga. Abriu-lhe seu encéfalo, cravando com tanta selvajaria a arma, que nunca mais pôde ser retirada. Não por um ser humano.

Mesmo assim, era forçudo. Musculoso o suficiente para empunhar aquele machado bárbaro. Possuía torso descomunal de halterofilista, e coxas mais rígidas que as da dona consistência. Cabelos lisos e face quadrangular com queixo duplo. Vivia a graça da juventude com seus vinte e três aninhos.

O lenhador sexy analisava a cena, com direito a muita sujeira e chapeuzinho desmaiada ao chão, sem seu chapeuzinho, encoberta de sangue e miolos. Ele a levou a um casebre vizinho a uma árvore rara de 36,14 metros, aproximadamente. Uma árvore extremamente linda. Gimnosperma. Pegou bolinhos também, muito convidativos, para fazer lanche mais tarde – ele adora bolinhos. E com certeza irá adorar a receita especial da dona maciça. Mas isso será depois, depois que chapeuzinho morrer.

O abrigo era relativamente pequeno e não possuía eletricidade nem nada, a não ser uma humilde cama, molhada e cheirando à ração de cavalo e toupeira. Uma cama com antigo colchão de molas oxidadas somente.

Chapeuzinho acorda e avista uma bunda reluzente a sua frente, na outra extremidade do abrigo, próxima a uma abertura na parede. Há um machado ensanguentado apoiado no canto esquerdo, com uma cabeça monstruosa colada. A infante  sente a brisa fria batendo em toda a pequena peça de carne, pele, tripas e osso que é o seu corpo e sente também sua face e cabelos grudentos e oleosos. Sente-se presa à parede por algo em seus pés calejados e mãos esfoladas. Sente-se crucificada sem cruz.

A silhueta em frente vira, traçando uma semicircunferência imaginária com as solas, na ação. Diz, com um braço escorado no outro, ortogonalmente, e uma mão suportando o duplo queixo:

– Que pena que será desperdiçado algo tão angelical e sutil. Você daria num puta mulherão. Confie em mim, você iria ficar muito linda.

– Quem é você?

– Uma pena mesmo. Mas, pensando bem, foi bom assim, lavo o machado uma vez só.

– Ahn?

Era uma vez, uma menininha ingênua de aproximadamente onze anos e seis meses, que preferia ser atendida pelo codinome “chapeuzinho vermelho”. Isso mesmo, chapeuzinho vermelho. E fim.

domingo, 25 de abril de 2010

Última chamada


– Número 342!
Maldito seja tudo que respira. Tudo que se desloca no espaço.
– Número 342! Última chamada!
Amaldiçôo tudo rastejante e tudo com vida.
– Número 343!
Até suas últimas presas e último centímetro de escama.
– Eu!
Sorte deste senhor, o 343. O 342 provavelmente saiu para almoçar ou passou do prazo de validade. Ou até morreu almoçando. Sorte dele por ter sido poupado de mais vinte minutos de tortura e ter recebido perdão do destino. Vinte minutos ininterruptos de choros de criança e velhos cheirando a mofo. O destino é difícil de lidar, não reconhece tanta dor alheia assim. Poucos são os sortudos que cruzam seu caminho justo quando o Sr. Destino encontra-se em estado altruísta interessante.
Uma hora passada desde que cheguei, e o número 349 sequer foi articulado. Após mais uma hora, quiçá duas pessoas tenham fenecido. Uma de gripe suína e outra de febre amarela... Após uma hora, perdi uma hora de vida...
Foda-se!
Saio pela porta para aproveitar o resto dos braços, sou impaciente e intolerante. De nada adianta querer me mudar, isso está em meu código genético. Mesmo dezessete caindo no chão da sala de espera, o 523 sequer seria pensado em voz alta por alguém e provavelmente eu teria perdido o motivo de estar lá. Aproveitarei meus braços e gozarei deste luxo.
Ler seria boa pedida. Quem sabe um jornal... Não, revista.
Não, jornal mesmo.
Pego um exemplar do “Páginas diárias”. Na primeira página do dia: “Jovem de 22 anos falece durante partida de futsal. Agente do óbito: hemorragia”. Minha situação não se difere em muitos aspectos. Podemos dizer que tangencia esta, quase secante mesmo que pouco. Analisando bem, pode sim ser comparada à hemorragia. A única e sutil diferença é que talvez agonizarei por mais uns anos e amaldiçoarei mais uns seres terráqueos.
“Moça de 33 anos resiste a assalto e falece com facadas múltiplas no peito, nesta manhã de sábado”.
Que tipo de idiota resiste a um assalto? Até meu tio Bernie, que mora no mato, sabe que nunca se deve resistir a um assalto. Nunca você será bombadinho o suficiente para reverter o jogo. Prefiro morrer de uma causa idiota a morrer por causa de uma idiotice minha.
Podemos dizer que meu caso é fusão de ambos, ou pura má sorte. Poderei até sofrer mais, não morrendo cedo. Não naturalmente. Quem me dera tivesse ouvido os conselhos de meus pais cadáveres e tivesse limpado bem o aposento,  vasculhado cada minucioso detalhe, qualquer vértice existente. Esfregado aqui e acolá toda a poeira inalável, inserisse a mão debaixo de qualquer coisa para pegar quaisquer coisas e atirar na lixeira. Jogar o saco plástico da lixeira para lixeiros pegarem e fazerem sabe lá o que fetiches.
Quem me dera tivesse pelo menos varrido algum cômodo. Principalmente em meu quarto, debaixo da cama.
Largo o jornal e pego uma revista científica-popular, cuja capa é chamativa e a matéria destacada se destaca mais que a própria capa. Destaca-se mais que a banca. Destaca-se mais que o dono desta banca mequetrefe, com nariz gordo, face oleosa, gordura acumulada na região abdominal, pele amarelada, olhos vermelhos, com odor de catorze cigarros Marlboro.
Está impresso na revista coisas muito interessantes, mas nada destaca-se mais que a matéria principal, com dúzias de páginas dedicadas somente a uma questão:
 “Deus existe?”.
Acredito que o ser humano, simples e obsoleto como é, nunca provará nada em relação a Deus e coisas divinas. Até minha avó, de 76 anos, senil, sabe que discussões religiosas não levam a lugar algum, visto que não possuem argumentos concisos. Até eu estou ciente disso.
Há um bicho mal-desenhado que explica alguns assuntos menos interessantes. Ele é feio, mesmo com intenção cômica, e muito mal-desenhado mesmo. Contornos sinuosos onde reta deveria estar, cores conflitantes e ridiculamente perturbadoras, coisas mais que me deixam estressado – como seu nome, o “Cobre-castanho”, seja lá que significado tenha. É uma mascote estúpida. Nome mais apropriado para ela seria “Vagabundanho”.
Noto algo interessante. Mais interessante que a matéria de capa. Mais interessante que a capa. Que o homem-cigarro com prurido anal logo ali. Que a banca vagabunda.
A matéria aconselha o leitor, mostrando métodos para não ser assaltado num ônibus, durante um assalto de ônibus com você sentado num dos bancos nada confortáveis do transporte governamental. Dentre os itens, o qual mais me agulha é:  “Durante a tentativa de saque, durma ou finja estar adormecido”. Isto sim é interessante, fascinante.
No pior dos casos, você acabará roubado do mesmo jeito que se desperto.
Mesmo sendo atraente, devolvo a revista brutalmente e gasto as últimas moedas com um chiclete. “Desculpe-me pela revista, senhor”, digo.
Muito cuidado ao mascar, não quero morrer de uma causa idiota. Como dezenas de pessoas, num passado não tão remoto, que morriam com balas. É isso mesmo, balas de chupar. Balas doces. Balas grandes o suficiente para entupir uma traquéia. Com o diâmetro exato para tal feito. As célebres e deliciosas balas Soft. Impossível maior ironia. “Soft” é macio em inglês.
Devido ao grande índice de mortes acidentais, mortes idiotas, a empresa da guloseima teve que produzir o doce agora com orifício central. Isso que chamo de algo no mínimo, interessante.
O mais interessante e idiota de tudo, é o fato de haver cobras em meu cafofo. Precisamente, espécimes de Bothrops jararaca. Não sei por que raios biólogos embelezam estas pragas com nomes fofinhos, de abraçar pelúcia. Muito menos sei o porquê de jararacas aparecerem, do nada, em casa. Realmente não sei se foi relaxo meu ou muito azar.
O crepúsculo começa minúsculo. Entardeceu rápido, farei usufruto de meu computador pessoal de mesa e aproveitarei meus membros enquanto os possuo. Como moro sozinho, praticarei onanismo e aproveitarei os braços. Irei perder sêmen, “bocejar com a mão”, “espancar o xaxão”,  “pecar na mão”, “brincar com os cinco anões”, como preferirem.
Paro após horas, meus braços não são de ferro. Tampouco inteiramente de carne e osso, na condição corrente. Inflamados, cheios de pus e semi-gangrenados.
Malditos sejam os ofídios!
Uma pergunta: Por que estas pestes ainda não foram extintas? Por que o homem preserva algo ruim e peçonhento? Por quê? Produzam mais bolsas e sapatos! Não temos nada a perder – são bonitos, resistentes e caros.
Como não sou de ferro, durmo após resmungos e bicas na parede. Ao acordar, por eu não ser um super-herói e não ter paciência de esperar alguma mulher obesa gritar “523” com sua voz negra e rouca, meus braços estão verdadeiramente podres.
Nesse instante penso em como livrar-me deles. Peço ao vizinho ou ao próximo transeunte? Sento durante horas, cheirando mofo e ouvindo berros, ou peço a um drogado, psicopata? Vejo que o melhor para a situação é um método idiota. Uma causa idiota levando a uma idiotice.
Sento e aguardo próximo caminhão, ou caminhonete em alta velocidade, dirigido por algum beberrão, passar pela rua? De que jeito posso ceifar meus braços? Ou somente devo me dirigir ao lago, praia, ou rio mais próximo e mergulhar sem hesitação?
De jeito maneira ficarei com estas bostas penduradas.
Maldito seja o número 523!

sábado, 24 de abril de 2010

Meu nome é Tyler


Divorciado, trinta e oito anos. Meu nome é Tyler, gosto de rock e toco em uma banda. Guitarrista de Les Paul. Preferia uma da Gibson, mas resolvi gastar em meu carro confortável e ela que me espere. Raramente sobra algum peido de dinheiro, algum trocadinho para doce, se é que me entende. Minha profissão é ser médico e adoro sangue. Ajudo pessoas que não conheço e nunca ajudaria se não fosse forçado pelo meu instinto ou pela cifra que vai engordando, mesmo que de modo muito desvalorizado. Elas sempre pensam que as amo e que amputaria um membro morto ou abriria uma barriga até de graça se pudesse, mas não é bem assim. Até faria sem remuneração, mas não pelos mesmos motivos que imaginam. Gosto de mantê-los na ilusão e então ter poder do poder. Sempre ando com um bisturi e um estetoscópio no bolso, posso enfartar a qualquer instante – gosto de porcarias gordurosas – e fazer algumas outras coisas que considero banais, não que sejam para o restante do globo.
            Adoro porcarias gordurentas.
Mais um dia qualquer de reclamações e bajulações. Não sou tudo isso que pensam, parem de puxar saco. Rebaixem-me a um patamar baixíssimo, já tenho muitas coisas com que me preocupar. A pensão da minha casa, a pensão da casa da minha ex-mulher, a mensalidade do carro da minha filha, o dinheiro para os traficantes e a poupança secreta para um assassino profissional qualquer que deixa a cena toda limpa.
Raramente sobra algum peido de dinheiro, algum trocadinho para doce, se é que me entende.
Não sou bonito, não sou bom, não sou novo, a única coisa que sou é rico. Pare de encher o saco, conheço barbitúricos e sei manejar muito bem um bisturi, portanto fique quieto. Pare de me engrandecer. Não me superestime, você não é e nunca será amigo meu. Nunca encherá a cara comigo num bar de quinta categoria! Nunca irá a um bordel de quinta categoria comigo, portanto pare de imediato!
               Quando me digo rico, e de fato sou, lembro que sou pobre. Aí é um paradoxo onde o que importa não é a explanação e argumentação sobre a sobressaliência de um dos lados, e sim a resposta de como ambos os lados se sobressaem em simultâneo.
Meu telefone vibra. “Preciso” – se é que me entende – atender mais um dentre as milhões de centenas de telefonemas diários:
– Tyler, vai vencer! – consigo imaginar sua expressão de enraivecida, tão engraçadinha – Não demore, não perdi o telefone daquele advogado!
.Ah, aquele puto. Quero mais é que exploda no inferno. Que o diabo ria e mije na  sua cara. No olho! Torture-o! Imploro! Exoro! Tortura, sangue, uréia e fel!
– Quer saber? Vá se danar! E divirta-se com aquele putano daquele advogado de meia tigela! Se quer dinheiro vá dar a bunda! Garanto que irá faturar mais que eu!
– Como?
Após desligar o telefone na cara, consigo mentalizar a expressão de “que merda?” dela, tão tão hilário. Alguma enfermeira me chama e diz que é “urgente”. Só ouço sangue, machado e “Tyler”.
Quer saber? Estou de saco cheio.
Neste exato momento projeto o telefone que insiste em tocar e fujo do hospital no melhor estilo calmo e puto.
Na minha casa, a cena é minha filha de 16 anos, Keisha, vestida de somente calcinha, com mais quatro marmanjos quaisquer que aparentam ter meus anos de vida. Pego minha escopeta – localizada no sótão, ultra-escondida num lugar ultra-secreto – e explodo a cabeça dos cinco elementos. Pego a BMW de Keisha e me direciono à casa da Amanda. Minha casa, se é que posso chamar disto.
Mesmo com policiais atrás, continuo a 200 km/h e furo o trânsito. Mesmo com policiais atrás, arrebento a fachada da casa daquela vadia e me arrebento. Mesmo com policiais estacionados na frente da casa, cambaleio até o andar de cima, arrebento a porta, e arrebento os corpos daquela vadia e daquele putano advogado, já de roupas vestidas à pressa. Mesmo com policiais subindo a escadaria em passos fulminates, mergulho pela janela e de cabeça, me falta munição...
Foi assim que parei aqui, mamãe, envolto nesta selva de soro e gesso e gaze que não tem fim. A senhora agora volte à Austrália e avise papai que não precisa vestir um terno para vir me visitar. Nem de roupa informal, nem de cueca, nem de calcinha, nem pelado e muito menos despelado. A senhora pode voltar tranquila ao conforto morno e convidativo de sua casa de praia sofisticada e não retorne mais aqui, para o bem do seu pobre coração. Não são todos que alcançaram toda esta oportunidade, se é que me entende. Pegue todo meu dinheiro e venda todos meus bens, aproveite o restante da vida junto ao seu marido da terceira idade e de boa bomba aórtica – vulgo coração. Também ligue pro Robin, 3228-4013, ele canta rock e muito bem. Por favor, se retire, preciso pressionar esta mangueirinha.

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Efeito Borboleta


Canhoto, deitado no tapete da sala de visitas. Perco tempo, que passa pelos vãos da mão como vento claro ou água pura. O fim todo instante caminha para cá, ao passo que divago no tédio. O fim, o absoluto. O nada, o tudo. O branco, o preto.
Tique aqui, taque lá, mosquito no teto, mosquito na parede. Mosquito achatado.
É normal alguém receber mais atenção que alguém, ou atenção além das fronteiras do mérito ou das fronteiras do mérito hipotéticas. Mosquitos são reis do “olhe eu aqui”, bazofiando seus ruídos que trincam a paciência e a falta de pequenos calafrios. Não dá para tentar se imaginar nadando em um conceito com alguma coisa acabando demolindo o tédio.
Agora dou uma volta – depois de coçar as costas e fazer um buraco na parede –, pensando no porquê desta volta, que não necessariamente precise de uma volta propriamente dita. Em qualquer momento posso me arremessar na frente dum caminhão, me projetar de cabeça no muro, ou furar o saco pequeno de algum trivial bandido. No entanto, simplesmente ando e dou minha volta.
Jovens ouvem suas músicas em celulares ou players de música com os corpos para lá e para cá, e os dispositivos se balançam também como pêndulos, formando um sistema complexo de oscilação repetente. Neste vai-e-vem infernal o fim não chega. Não sem uma leve apressada nos passos. Que vão se apressando e se confundindo e tentam ou querem se colidir. Há uma diferença entre uma ação perfunctória e uma ação do interno desejo.
Caminhando de mãos vazias percebo que cambaleio de maneira débil, retardada. Simplesmente o que acontece quando se pensa demais nos pés. É o mesmo princípio de se concentrar na respiração, que acaba se tornando uma tortura pela vida. Ou piscar os olhos, uma tortura pela boa concentração e visão limpa e sem dores. Já basta o Sol para semi-estuprar a minha vista e fritar o óleo da minha testa.
Quase nunca, anões e pessoas sem braço ou  perna cambaleiam em agonia, conseguindo ser mais estúpidos que minha marcha descompassada. Distorcidos e anormais. Aberrações naturais ou artificiais. É banal sempre haver alguém mais esquisito que alguém. E o preconceito só é engraçado quando contado fora do perímetro de perigo.
Penso no fato de perder um membro. Certamente um momento macabro. Assim como cegos, seria melhor já terem nascido cegos, assim não sabendo o que perderam ou ganharam, ou terem perdido sua visão durante as monótonas vidas? Percebendo assim o quanto a escuridão pode ser relaxante, ou perturbadora. Ou agridoce.
E lá se vai meu braço, e ali está minha perna.
Opa, espezinhei meu globo ocular!
Olha só, meus membros estão se desacoplando, sou um leproso miserável.
Preste atenção na dor excruciante, olhe só meu intestino sendo desenrolado do grande carretel de tripas e virando grande corda de pular.
Foi só uma brincadeira inocente, mas bati sem querer na própria perna com a tábua de bate-ombro, a cena foi minha patela ensangüentada voando para o desconhecido.
Opa, foi mau, é que esta serra não aguenta a rigidez da madeira boa. Foi mau, pode crer, cara.
É natural sempre haver um momento mais horrível que o momento horrível doutro tongão. Extremamente natural haver alguns decapitados prestes a deitar ou alguns moribundos hemorrágicos.
Ouvi falar ontem do efeito borboleta. Sutis detalhes inexistentes acabam desgraçando com uma tragédia. Boa ou ruim. Continuo a pensar e escrever na cabeça, ao mesmo tempo em que volto a concentrar-me em minhas pegadas e percebo que estou de mãos vazias. Não há sentido em pensar no passado. A única coisa mais irracional que a preocupação é a pós-ocupação.
Num momento penso em como beija-flores batem asas rapidamente sem fadiga quase que imediata. Noutro momento estou sem a perna esquerda.
Analisando bem, essa volta não foi tão fútil, como segundos antes pensado. Agora estou ciente do sentimento de assistir de camarote uma amputação de membro, e melhor: do próprio membro, e do melhor modo: ridiculamente. Sem falar nas dezenas de ossos quebrados e trincados pela imensa roda do caminhão da Hello Kitty. Algumas fraturinhas expostas aqui e uma sucinta poça de líquido avermelhado em tom de sangue. Isso virá a ser um incomodo um dia ou outro, quando infecções começarem a vir à tona.
Orifícios, o corpo humano é um buraco.
Só uma coisa me importa agora nesta hora.
Sou o centro das atenções. Tamanha excitação que temo ficar ereto. Alguém “se preocupa” comigo, só pelo fato deste se juntar à rodinha de estranhos sádicos homofóbicos que cresce em progressão geométrica. Eles realmente estão se importando apenas para o próprio prazer, mas prefiro fingir que sou o centro das atenções. Divagando no amor.
E realmente, nunca pensei que o sangue seria tão escuro e grosso.