segunda-feira, 30 de junho de 2014

Que assim seja



À procura da zona de conforto
Que me traga calor, calma e silêncio,
Que me despache a um estado absorto
E que liberte a minha consciência.

À procura de um tipo de caso
Que alinhe o meu insano pensamento,
Que acerte o coração no seu compasso
E que liberte o meu sofrimento.

Seja de qualquer jeito, reto ou torto,
Pode ser brando ou pode ser um tesão,
Contanto que me liberte do chão.

E quando este acabar, procuro por outro,
Que dure pra sempre ou que tenha fim,
Contanto que me liberte de mim.

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Machado de sangue



– Quero prestar atenção na música, cale a sua boca de chupar uva. – diz ele, com o ouvido encostado no vidro. – Ela é legal.
– Quem é ela? – pergunto.
Eu estou de pé. Não estou descalço. Eu estou com coceira na bunda.
– Ela quem? – ele pergunta.
– Não sei.
– Cale a sua boca.
O ambiente é legal. Eu não lembro muito bem o que aconteceu. Aliás, não sei nem se é para eu lembrar algo, ou se é aconselhável eu lembrar algo. Sinceramente, tenho medo de lembrar algo do que aconteceu. Deixo o passado no passado que no passado o passado não incomoda. Eu estou cansado.
A minha bunda não para de coçar, não importa o quanto eu a coce.
– Cara, coça a minha bunda? – pergunto pra ele enquanto eu coço a minha cabeça de cima.
– Não dá.
– Faz um esforço, cara.
– Do que você está falando? – ele vira a cabeça para mim e franze o cenho. – Pare de coçar a bunda, meu. Os seus dedos parecem batatas fritas e você é gordo.
Eu não sou gordo. Meus dedos não parecem batatas fritas, porque sempre quando eu frito batatas elas torram e ficam bem pretas, e meus dedos não são pretos e nem bem pretos. Minha pele não é escura, é verde. Minhas unhas são pretas de sujeira. Será que é de tanto eu coçar a bunda?
Eu não sou gordo.
– Eu não sou gordo, cara. – digo. – Você que é, com essa fantasia ridícula.
– Não dá para ver o show. – ele diz, com a cara grudada no vidro. – Tem uma porra duma árvore frondosa na frente da minha visão.
– Cara, pare de ser frondoso e coce a minha bunda. – digo, coçando a bunda até sangrar. – Sério, cara. Nem sei se você é um cara, porque você usa essa fantasia estranha de tartaruga. Sério, cara. Por que você usa uma fantasia de tartaruga? Eu não sou gordo, cara.
Ele cola o ouvido novamente no vidro. Ele está agachado, me esqueci de mencionar isso. O vidro na frente dele está embaçado por causa da sua respiração. Isso é sinal de que ele está vivo. Não é sinal de que ele está bem. Mas, também, não é sinal de que está mal. Não pude concluir nada desta breve filosofia.
Eu estou sentado.
– Você é uma tartaruga. – ele diz.
– O quê?
– Você é uma tartaruga. – ele diz.
– Por quê?
– Porque você é verde e parece uma tartaruga. – ele diz.
Ele tenta ouvir o show que está acontecendo em algum lugar. Não sei bem ao certo se quero saber por quê, como e onde o show está acontecendo. Não ouço nenhuma música tocando, não sei nem como sei que está tocando um show. Eu acho que a incógnita vestida de tartaruga me disse que tinha um show, é por isso que eu acho que sei que está tendo um show por perto. Já que eu não o conheço, é melhor eu não contar da minha vida pessoal a ele. Talvez eu devesse mentir sobre a minha vida pessoal a ele. Eu acho que essa seria uma solução.
– Eu estou namorando. – digo.
Ele não responde. Fecha os olhos. E abre.
– Eu estou namorando um rapaz. – complemento.
Ele não fecha os olhos. E daí fecha. E abre. Eu desisto.
– Eu desisto. – pronto, desisti.
Eu estou de pé. Está frio aqui dentro. Resolvo fazer polichinelos para me aquecer.
– Não pareço uma tartaruga, cara. – eu digo, já ofegante depois de uma dúzia de pulos.
– Parece e vá tomar no cu.
– Vá você, se enxergue! – digo. Talvez meus dedos sejam mesmo batatas fritas.
– Não dá. – ele diz. – O vidro é transparente.
– Quem disse que é vidro isso daí? – pergunto, entre uma polichinelada e outra.
Eu estou descalço e só percebi isso agora.
– É um show dos Ermitões que está tendo, eu amo esses caras. – diz ele, quase chorando de nostalgia.
– Los Humanos?
– Isso. – diz ele. – Errei, seu cabeça de roda girando.
Eu estou de pé. Ele está beijando o vidro. De repente fiquei com calor. Acho que é por causa dos polichinelos. Deve ser o meu casco. Mas eu não sou uma tartaruga. Eu não sou uma tartaruga! Eu não sou uma tartaruga?
Eu sou um cágado. E acho que isso explica por quê minha bunda está coçando.
Agora tudo faz sentido.
– Está tendo um show lá embaixo. – ele diz, apontando para baixo. – Lá.
– Legal, cara.
– E estamos em uma nave espacial suspensa logo acima do show que mencionei anteriormente.
Isso não faz sentido.
Uma nave espacial levitando? Por quê?
Cágado tem bunda?
– Ué?
E de repente o show cai na nave, ou a nave cai no show. Só sei que tudo cai ao mesmo tempo, porque nada disso faz sentido. Num momento eu me vejo lendo a manchete de amanhã, que diz que houve muitas mortes num show do Los Hermanos, e no outro momento eu estou todo manchete... Manchado de sangue. Machado de sangue.