quarta-feira, 22 de agosto de 2012

A vida é uma beleza


Preste atenção. É uma história séria, real. Logo, não há final feliz. Não ria.
Era dia de promoção, e eu estava de férias. Comprei açúcar, pão, sal e todo tipo de porcaria. Pensei em comprar um colchão, mas não comprei. Encontrei minha boa e velha professora, Célia. Tinha rugas, mão, salto e todo tipo de porcaria. Eu disse que queria comprar um colchão, mas decidi economizar. Ela riu à toa, antes disso, por ter me visto. Ela comprou frutas, mamão, tomate e outras porcarias. Ela disse que eu era um moção. Eu disse: azar. Ela riu da broa, antes disso. Estava mofada. Ela disse para eu me cuidar. Que mulher retardada.
Saindo do mercado, fui direto à rua. Quase fui atropelado. Era uma perua. Pensei: hoje é meu dia de sorte, me livrei da morte. Apalpei minha bunda, eu tinha certeza de que tinha perdido a carteira. Mas eu estava errado. Catei meu sapato, do outro lado, na outra quadra, na calçada. Lá passava uma vagabunda. Era um travesti, eu estava errado. Tinha volume no saco, cara quadrada, perna peluda. Enfim, fiquei com ânsia por ter olhado aquela bunda.
Entrando na loteria, tinha aquela fila. Coloquei o saco no chão, o de salame, salsicha e pimentão. Tirei o outro da mão, o de maionese, mostarda e pimenta.  Açúcar, pão e sal tinha no outro saco que restou. Um tanto quanto estranho, era um guarda. Ele era corcunda, fiquei olhando para sua testa. Tirei um ranho, joguei no chão. Mas que falta de respeito, disse o guarda. Eu disse: não. Tinha muita gente. Uma mulher, na minha frente, com muito peito. Eu disse: silicone? Ela disse: não. Fiquei contente. E tinha um homem ali perto, com olho de vidro, pêlo de ouvido, não parecia inteligente. E, como depois descobri, não era mesmo esperto. Ele gritou: tenho uma arma aqui, deixe-me passar adiante. Mas, realmente, ele não tinha cara de meliante.
Chegando minha vez, com cartelas na mão, me senti muito sortudo. Marquei: um, dois, três com quatro, cinco e seis. Porque não há uma melhor combinação. É questão de probabilidade: é a mesma para tudo. Por algum motivo, eu pressentia algo grande. Verdade, aquele dia não era normal. Preenchendo, senti algo duro. Era um cara sacana. Ele disse: passa a grana. E chutou meu sal. Ele estava armado. Não, não era aquele retardado do olho de vidro. O homem gritou, e foi no meu ouvido. Isso não foi legal. Passem a grana, ele gritou. Puxou-me pela gola. Foi acidental, apertou o gatilho. Por fim, ele correu. O tiro atravessou meu rim e acertou meu pau. E a bala se perdeu na minha bola.

sábado, 17 de março de 2012

Iniciativa

Quando eu era criança, gostava de brincar sozinho. Aviões, trens, caminhões, carros, cavalos. Quietinho na grama verde. Não era muito exigente, contanto que pudesse passar meu tempo, podiam ser quaisquer objetos. Alguma coisa sólida já bastava. A criatividade não tem limites mesmo, sempre se superando. Eu vivia me superando, era o meu passatempo. Na escola, eu prestava atenção às aulas, refletia, e, durante o intervalo, eu passava o tempo comendo. Depois de brincar, comer era a melhor opção.
               Quando eu era adolescente, eu gostava de ler. Ciência, romance, informação, poesia, fascinado. Eu lia na sala, no quarto, no banheiro, no quintal, lia comendo até. Além disso, eu gostava de música. Clássica, rock, eletrônica, moderna, qualquer coisa bonita. O meio mais sinestésico de passar o tempo, eu relacionava notas a cores. Na universidade, eu prestava atenção a cada palavra técnica maravilhosa e apreciava a formalidade das coisas, e, na hora do intervalo, a biblioteca e campos limpos eram minhas maneiras de passar o tempo. Fotografei umas coisas lindas também. Nessa época até emagreci mais.
             Na vida adulta, o dinheiro acabava. Não arranjei emprego. Meus pais se foram. Os livros que eu tinha começaram a ficar repetitivos, e as fotografias compartilhavam semelhanças demais. Nenhum exercício matemático era desafiador o suficiente para me prender na cadeira. A velha grama cresceu demais, ficou feia. Os velhos campos bem cuidados se transformaram em blocos de estudo. Não tinha muita coisa para se fazer sozinho, nenhum encanto. Tentei desenhar, mas não havia motivação. Eu esperava firmemente que algo fosse mudar, com o tempo.
               Agora, resta-me menos a fazer. A esperança se dissolveu junto com minhas chances. E a vida passa. Percebo: A mudança para melhor parte do próprio sonhador. Passei tanto tempo comigo, livre, mas epifanias dentro de um carro em queda são desprezíveis. Caindo de um viaduto, fugindo dos caras da concessionária, fugindo da vida, fugindo do céu. Eu quero uma namorada, um melhor amigo, uma carreira. Eu quero respirar poluição, incensos, gases, plantas. A dois metros do chão, frio, enquanto a minha vida termina de passar em poucos segundos, desejar voltar a ler é inútil. Não dá tempo para colocar o cinto de segurança. Eu quero um primeiro beijo, um abraço singelo, uma carta de amor, uma gagueira apaixonada, perder a virgindade no conforto e calor de quem eu quero estar perto. Tento aproveitar meu tempo, agora. Eu quero arranjar confusões com meus amigos, enfrentar problemas, sofrer por nervosismo antes de provas e após uma árdua demissão. Eu quero querer ter pessoas de volta depois de perdê-las. Quero poder, ao menos, mover meu braço agora, me abraçar. Eu não quero morrer.

quinta-feira, 1 de março de 2012

À vida eterna

Você vai construir navios, calculadoras, projetos, famílias; aprender tudo que existe em física, geografia, história, química, aprender todas as línguas mortas e atuais; vai ser o melhor em vôlei, basquete, futebol, xadrez; aprender todo tipo de jogo de cartas e ser o melhor nisso infinitas vezes, assim como perder infinitas partidas; vai comer todo tipo de coisa e de gente; vai mudar para todas as religiões, até crer em todas simultaneamente e criar incontáveis outras; vai participar de uma infinidade de guerras, e com isso atirar em todo tipo de gente que existe; vai sentir todo tipo de dor, até a dor do parto – mesmo que você seja um homem –, pois depois de incontáveis segundos de existência o ser humano terá descoberto tudo o que é possível existir e até inventado outras realidades; vai contrair todas as doenças e sofrer mutação; vai construir um carro sustentável e uma bicicleta flutuante; vai ver todas as séries da televisão e dirigir e atuar em todas as outras; vai emagrecer, vai engordar; fazer sexo com a terra, fazer sexo com o céu, virar bissexual, pedófilo, zoófilo, sadomasoquista, podólatra; vai peidar muito, arrotar muito, ficar bêbado como um velho com Alzheimer e vomitar as entranhas; dar piruetas e plantar bananeira; perder um dedo, perder três dedos, perder a genitália, se regenerar; praticar alquimia e magia negra; desenhar a face de todos que existem e existiram; navegar no multiverso; expandir sua capacidade cerebral; comer fezes, beber urina; convulsionar; fazer quimioterapia, tingir o cabelo; rolar na lama ao lado de porcos enormes, e ser esmagado por eles toda hora...
        Enfim, até o momento em que você tenha feito tudo, ainda haverá algo para fazer. Após isso, não haverá nada de novo. Repetirá então tudo o que já fez, muitas vezes. Até o momento em que ficará entediado com tudo o que existe e tudo o que já fez, que são as mesmas coisas. Viverá a eternidade entediado. Entediado para sempre. A única coisa que não poderá fazer será morrer. E esta será a coisa que você mais quererá.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Vencendo o medo

Entro na sala com cuidado. Na verdade, paro na porta e fico em pé, escondido. Há um monte de monstros rosnando, arrotando e fazendo coisas monstruosas. Eles conversam uns com os outros, comentam sobre suas noites debaixo de camas e atrás de armários. Outras noites em meio à floresta. Ocasionalmente riem diabolicamente, mas na maioria das vezes as expressões são tensas e assustadoras. Suas vozes soam como estrondos, trovões que ecoam em suas bocarras. O cheiro é de enxofre e pêlo sujo. Tem uma mulher calada ali. Ela é excelente. Observo com cuidado.
    – Senhor Bicho-papão, é a sua vez. – diz um monstro.
    – Sim... Então, sabe, eu não gosto de claridade, ela queima meus olhos. – diz a criatura grotesca, o Bicho-papão.
    Todos os monstros se entreolham e afirmam com a cabeça, murmurando palavras, algumas de outros idiomas. Bicho-papão está inquieto em sua cadeira com as mãos gigantescas no colo. O monstro de antes intervém com um ar frio:
    – Senhoras, senhores, ainda é a vez do senhor Bicho-papão.
    – Sim senhor, conde Drácula. – todos dizem em uníssono, apesar da sonoridade particular de cada. Um barulho inimaginável.
    – Prossiga.
    O conde Drácula está com as pernas cruzadas e com as mãos brancas de unhas compridas em cima do joelho da perna direita, que por sua vez encontra-se sobre a coxa da perna esquerda. Seu olhar é penetrante e desconfortável.
    – Então, sabe, eu gosto de lugares escuros, empoeirados e apertados. O ar gostoso, sabe, ele é muito bom... E, claro, eu gosto de coisas nojentas, sabe... Vocês sabem, eu sei, não sei porque estou falando isso... O que quero dizer é que... Estou atrapalhando, conde Drácula?
    – Não, Bicho-papão, tome tempo que for necessário. O seu progresso está sendo horrível até agora
    – Obrigado... Então, humm... Assim, eu durmo debaixo de camas de crianças então... Um dia, pra variar, eu pensei que seria divertido brincar com uma delas e... Bom, não sei o que aconteceu com ela que saiu correndo. Eu fiquei muito magoado. – faz uma careta feia e destrói a cadeira.
    Todos são horríveis, com exceção da mulher. Estou muito nervoso, não sei o que fazer. Não sei aonde ir, não consigo sair do lugar. Meu corpo está imobilizado.
    – Sim, senhor Bicho-papão, compreendemos a situação. – diz o conde Drácula – Não deixe com que isso o abale. O senhor definitivamente não se encontra no mesmo patamar desta criança. Continue do jeito que o senhor é, confie em você e faça o que o senhor julga ser certo.
    Todos voltam a se entreolhar e a afirmar com a cabeça. A barulheira é grande. É terrível.
    – Agora é a vez da senhora Alienígena. – avisa o conde Drácula. – Senhora Alienígena, se não se incomoda, comece a qualquer hora.
    – Abaadu fluntstar. – diz a Alienígena.
    É um ente verde-claro e cabeçudo sentado logo ao lado do Bicho-papão. Mas o Bicho-papão permanece em pé agora, visto que sua cadeira encontra-se totalmente destruída. Meu maior temor é que algum deles me vejam.
    – Loique guw ani urubu aladus aquanhuts eni Bicho-papão. Agofek kokoto, arrumta oporuru. Loi nutava yirblindi ogo kokoto maneh que loi nuni bisto. Digui loiny cacatarani. Nun fifte, poke noni ani loin intendo. Nun fifte...
    – Compreendemos muito bem a sua preocupação, senhora Alienígena. – diz o conde Drácula. – Mas, esqueça estes humanos. É difícil entendê-los, realmente. Afinal, este é o propósito do grupo, deixar de lado os atos indizíveis dos humanos. E, sinceramente, a senhora tem uma aparência muito repugnante. – termina com frialdade.
    – Agui, pagui! – a Alienígena fica sem jeito.
    – Agora é a vez de a senhora Succubus contar-nos o motivo de ela estar aqui. Por favor, senhora, prossiga da maneira que julgar ser a mais confortável.
    Os monstros começam a se agitar e falar alto. Comentam a respeito da Succubus, que ela é perfeita e linda demais. A comoção quase me expõe, já que o Bicho-papão pula como um animal.
    – Senhores, respeito com a senhora Succubus! – conde Drácula eleva o nível da voz. – A sua aparência não condiz com a verdadeira criatura que existe dentro dela, dentro de todos nós! Não se esqueçam de que os senhores não são muito diferentes dela! – senta-se novamente. – Prossiga, senhora.
    – Na verdade, conde Drácula, acredito que sou um pouco diferente. – diz Succubus, olhando desconfiada para todos os monstros. – Costumo passear nas ruas durante o período noturno. E certos humanos masculinos, digo, todos que me vêem, apresentam um certo impulso em ter relações sexuais comigo... É... É simplesmente muito gostoso...
    Succubus sucumbe e começa a derramar água do rosto. Parece-me muito triste com a situação. Todos os monstros permanecem em silêncio observando a cena. Tento fazer o mínimo possível de ruído para não denunciar minha posição. O conde Drácula continua petrificado. Aquela presença desalmada.
    – Succubus, como eu já comentei anteriormente, a senhora é muito diferente destas coisas, destes humanos. Embora o seu exterior seja igual ao destes humanos, com todo o respeito, e igual à minha também, o seu interior não é nada comparado ao interior destes humanos. Eu simplesmente não consigo encontrar palavras para descrevê-los, pois, horríveis certamente não são! Talvez a melhor palavra que os descreva seja Humanos!
    Os monstros agitam-se agora e Succubus levanta o astral e adere ao ódio da comunidade. Este ódio monstruoso me afeta de certa maneira que perco controle do corpo. Pulo, relincho, debato-me. Os monstros quebram cadeiras.
    – Com licença, senhoras e senhores. – diz o conde Drácula, dirigindo-se aos monstros com voz cortante. – Parece-me que temos alguém se escondendo.
    Silêncio na sala. Os monstros olham para mim, seguindo os dois olhos penetrantes do conde Drácula. Fui exposto, não tenho para onde ir. Estou tremendo, todo o meu ódio substituído por pavor.
    – O senhor escondido aí, pode aparecer. Sente-se e se apresente, por favor, se é isso o que deseja. – o conde Drácula me convida. – Não tema, aqui todos somos iguais, aqui todos temos o mesmo ideal. Porém não quero impelir ninguém a ingressar no grupo. Mas garanto que você se adequaria muito bem à nossa comunidade.
    Entro em passos lentos e curtos, encarando todos os monstros, reparando em todos os seus detalhes à procura de suas faces ridículas. Tento me familiarizar com a situação e local. Os integrantes demonstram-se muito receptivos e com certa ansiedade.
    – Sente-se onde se sentir mais confortável. – conde Drácula demonstra as cadeiras vazias com um movimento sutil de sua mão de cinco dedos.
    Passo ao lado da cadeira de uma gosma roxa e entro na roda. Dirijo-me cautelosamente a uma cadeira vazia em minha frente, trocando rápidos olhares com certos monstros. Assento-me na cadeira.
    – Lugar ocupado. – diz a cadeira.
    – Opa... Desculpe-me senhor... Não o vi aí... – digo.
    – Pode me chamar de Senhor Invisível.
    Receoso, viro o corpo à outra cadeira aparentemente vazia, ao lado da Succubus. Espero pela confirmação do conde Drácula para eu continuar. Ele me garante que a cadeira encontra-se desocupada com um movimento frio da cabeça e das pálpebras. Sento-me.
    – Monstros, por favor, façam a gentileza de se introduzirem ao nosso novo amigo.  – anuncia o conde Drácula.
    – Sou a Succubus.
    – Eu... O Bicho-papão...
    – Pé Grande aqui.
    – Senhor Invisível.
    – Yeti, eu.
    – Eu não tenho um nome específico, na verdade. Pode me chamar de Geléia Roxa, se preferir.
    – Chhhupa-cabra.
    – Hidra aqui!
    – Hidra aqui também!
    – E aqui também!
    E o restante se apresentou. Inccubus, mais seis Hidras, o Minotauro fedido, Alienígena, Zumbi, e assim por diante. O grupo é grande e bem cordial.
    – E eu sou o magnânimo conde Drácula, o responsável por este grupo. Por favor, nos inbforme o seu nome. Sem pressa.
    Hesito um pouco. Mas, já que todos falaram seus nomes, é a minha vez de me apresentar.
    – Opa, olá... Eu gosto de água. Meu nome é Nessy. Sinceramente, eu até estava um pouco tímido de aparecer a vocês. Traumatizado, sabe? – rio nervosamente. – Mas... Fico feliz em saber que não estou sozinho nesse barco.

sábado, 21 de janeiro de 2012

Claustrofobia

Deu para ouvir o barulho de cabeça caindo na grama e rolando o declive nas folhas. E o barulho de metal cortando o ar, um pouco antes disso. Meu coração bate forte sem pausa. E suo. Pedro tenta olhar para fora, entre as cortinas. Quando vou dizer para ele desligar rápido a luz, a luz acaba e também minha voz. Pedro sussurra algum palavrão.
        O silêncio é fatal, apenas ouvem-se os passos na grama do sujeito com a foice, algumas vezes só. E a ventania inconstante. Está completamente escuro aqui dentro. Pela janela, dá apenas para ver a silhueta da lua macabra sufocando-se em parcas nuvens azuis. Não há estrelas. Não consigo enxergar muita coisa além do vulto de Pedro. Não consigo ouvir muita coisa senão o assovio do vento pela fresta da janela. Sinto apenas meus sapatos apertados suados e a cortina esvoaçante nos meus pêlos arrepiados.
        O barulho de passos gradativamente aumenta, em direção à porta da frente, ao lado de Pedro. Pedro corre na ponta dos pés, abaixando o tronco e esbarrando em alguma cadeira. O vulto dele gradativamente aumenta e, quando chega perto o bastante, tenho vontade de abraçá-lo e fechar os olhos com força. Chorar na sua camisa. Ao invés disso, fico imóvel, forçando Pedro a me empurrar com uma calma desesperada para fora da copa. Andamos enganchados e encolhidos por mais alguns metros e a porta da frente se abre. Não hesito em sempre olhar para trás quando posso. E nunca hesito em andar um pouco mais, apesar de estremecendo e me chocando contra coisas.
      Os passos são agora na madeira. A brisa é gelada. A lua escondida. Pedro pára e vê que não tem mais aonde ir. Estamos na cozinha. Minha respiração é cruel e descontrolada, de modo que frequentemente perco a noção da intensidade do meu som. Pedro está olhando para todos os lados com a esperança de um lugar seguro. Ele está com as mãos sobre meu ombro e eu com as mãos tapando minhas orelhas, encarando a porta que nos trouxe para a cozinha, esperando o sujeito desalmado. Perdendo o foco. Estou zonzo e com calor. Sinto os passos calmos chegarem perto a cada segundo. Pedro me puxa para trás da porta, e quando estamos lá puxa levemente a porta para nós, sua mão escorregando na maçaneta fria.
        Os passos cedem perto de nós. Minhas mãos e têmporas latejam de tanto que forço o encontro destes. Pedro também me aperta forte com a unha e força a porta com uma leveza clemente. Embora eu não consiga falar uma palavra, gemidos conseguem escapar da minha boca trêmula. Pedro tapa imediatamente minha boca com a mão que não tenta segurar na maçaneta com força criada. Sinto mais alguns passos de intervalos curtos. Minha boca estava semi-aberta quando Pedro a apertou com sua mão salgada, e assim continua. Mais passos desconcertantes. Tiro as mãos da cabeça e ajudo a puxar a maçaneta. O vento assovia e as cortinas dançam ao fundo. A grama chacoalha, e também as árvores.
        Os passos cederam. Pedro chuta a porta brutalmente. A foice cai no chão junto comigo e Pedro corre, bate a cabeça na parede próxima à porta e derruba umas duas cadeiras na copa, depois de colidir a cintura com a quina da mesa. O homem alto está se levantando. Em quatro apoios, me levanto trôpego, agitando os braços impotentes para não voltar à madeira do chão. Pronuncio o nome do Pedro primeiro como um sussurro falho. O homem está em pé. Na segunda vez em que tento berrar, não muito depois da primeira, o pouco da voz que me sai é gagueira. Na terceira, a cortina se enrosca na minha língua.
        Os passos são mais largos e ligeiros agora. Está ventando muito e muito frio na parte de fora. O primeiro golpe de ar me provoca um calafrio na espinha. Minha voz sai quando eu choro, em nível de diálogo. O breu é integral, não se enxergam as mãos e os pés, então não dá para ter certeza de como faço o que faço. Pedro se debate no milharal, e logo depois entro ali também. O primeiro golpe de mato me deixa mais cego. Quando corro, meu joelho frequentemente dobra-se de fraqueza. O nome do meu amigo só sai gritado quando a tensão é igualmente culminante. Após isso, não paro de chamá-lo. De olhos fechados, minhas lágrimas se espalham pelos milhos. Das muitas vezes e lugares que me corto, meu sangue também se adere às plantações. Mudo de direção quando choco a testa no pneu de um trator, depois de torcer um ou dois punhos. Após isso, não sei mais aonde Pedro vai, dissolve-se no coração meu último conforto. Instintivamente, abro caminho para alguma direção. Não enxergo nada. Depois de correr por mais alguns metros, tropeço em alguma coisa que me parece um corpo e caio com o nariz em alguma coisa viscosa e com um calor fraco que me parece ser sangue demais. Meus braços cedem na primeira vez que tento me impulsionar para cima. Na segunda tentativa, fico em pé e corro o máximo que