sábado, 25 de janeiro de 2014

Imutável



Já está anoitecendo e ainda permaneço na cadeira de balanço, fora de casa. Meus vários gatos estão nas minhas pernas. Alguns passam se esfregando, outros se esfregam e se deitam, alguns miam e alguns se lambem.
– O que foi, meu amor? – pergunto ao gato que mia. – Mamãe te ama, meu lindinho. – faço carinho na sua cabeça.
Na medida em que o chá esfria, o dia escurece e a brisa esfria. Continuo bebericando da xícara com os meus dedos trêmulos abraçados na asa, quase derrubando tudo no chão. Ainda está quente e tenho medo de queimar a boca. Faço esforço para não derrubar nada nos meus anjinhos, e não me balanço na cadeira para não machucá-los.
Eu deveria ter olhado mais ao meu redor, ao invés de concentrar minha atenção para dentro de mim. Eu deveria ter pensado mais no significado das ações alheias, ao invés de procurar significado para as minhas.
Um menino muito carinhoso e de um coração enorme vivia conversando comigo, seguindo os meus passos. A atenção dele era especial, era ímpar. Eu deveria ter aprendido com ele, eu poderia ter aprendido muitas coisas com esse rapaz. Eu não sabia o que eu queria, realmente, pois eu estava ocupada demais pensando em mim. Mas, esse garoto via além do visível e percebia que, no fundo, eu queria mais era ficar ao seu lado para sempre.
Um gato sobe no meu colo. Ergo a xícara para ele não se queimar. Acaricio o seu corpo deitado e macio. Beberico com muita vagareza o chá. O gato esquenta, aos poucos, o meu colo. Espero que ele me ame.
Eu deveria ter aproveitado o presente, ao invés de temer o futuro.
Os dias foram passando, e com a convivência o menino se aproximou de mim. Não lentamente, nem rapidamente, ele se aproximava com a sua intensidade característica. Nós nos divertíamos muito, ríamos como loucos. Ninguém mais compreendia a nossa loucura. Todos viam que nós nos dávamos muito bem.
Resolvi dar uma chance a nós dois. Eu me sentia muito bem com ele, eu podia fazer qualquer coisa que eu sabia que ele iria me perdoar e continuar me amando. Aquele seu sorriso radiante dava brilho à vida. Porém, o seu amor era tão grande que acabou me sufocando. Eu me afastei dele aos poucos, e ele insistia em me seguir. Eu sempre amei a liberdade e essa pressão estava deteriorando a nossa relação. Eu tinha muito medo no buraco em que podíamos acabar. Ele estava cego, ele não percebia que estava me fazendo mal assim. Eu comecei a questionar os meus sentimentos. E então eu corri.
Corri o mais rápido que pude, para o mais longe que pude.
Nunca mais tive notícias do menino. E, sinceramente, eu vivi muito bem sem ele.
Agora eu temo o presente e não me há mais futuro. O que me resta é o passado.
– Mamãe te ama muito, meu bem. – digo ao gato do meu colo. – Ouviu, meu querido? – ele não responde, está dormindo.
A esperança não é uma virtude. O que mais vale nesta vida é a perseverança, a força de continuar em frente em prol de um objetivo. Persistir em uma decisão é o segredo da felicidade. Se você deseja o topo da montanha, deve-se enfrentar toda a escalada. Esperar não trará o topo a você. Ninguém disse que é rápido e ninguém disse que é fácil. Mas, ninguém disse que é impossível. Os obstáculos são abstrações da mente.
Acontece que não era somente ele que tentava se aproximar de mim, mas isso também acontecia com todo o restante de pessoas que me cercavam. O menino apenas estava insistindo em abrir os meus olhos para que eu enxergasse isso. Ele era muito corajoso. Ele não temia as dores, ele não via obstáculos, ele não temia o futuro. E ele sabia muito bem que queria partilhar a sua vida comigo, e vice-versa.
Hoje, muitas décadas após, eu tive a notícia de que esse menino morreu.
Eu me orgulhava dos meus princípios. Agora de nada valem.
Eu não costumava perdoar os erros graves dos outros. Agora ninguém me perdoa.
Eu deveria ter valorizado as pessoas. Agora é tarde.
Estou livre para fazer o que eu quiser, mas não há nada para fazer.
Meu chá está frio. O Sol sumiu. Eu costumava gostar da minha companhia.
Eu levanto da cadeira, com cuidado, minhas pernas tremem a cada passo. Jogo o chá fora e carrego um por um os gatos dorminhocos para dentro de casa.

domingo, 19 de janeiro de 2014

Inevitável



Acordei sem sono, mas com preguiça de levantar da cama. Logo eu me pergunto: qual é a vantagem em levantar da cama? E a segunda pergunta é: o que eu realmente quero dessa vida? Se as pessoas fossem realmente felizes sozinhas elas não procurariam um par para compartilhar a vida. Não desejariam estar ao lado de um companheiro para todos os dias. Eu não tive nenhum sonho essa noite, mas eu tenho um sonho desde sempre. E finalizo a seção de primeiras três perguntas diárias com: por que queremos compartilhar a vida com alguém?
                Eu não sei.
           Levanto de supetão. Caminho descalça. Escovo os dentes. Passo fio dental e corto a gengiva. Encaro a minha feição no espelho e tenho uma vontade inexplicável de rir. Esqueci de me espreguiçar, de tal modo que faço isto agora. Lambo o corte. Pasta de dente com ferrugem. Volto ao quarto. Tiro os pijamas. Encaro o meu corpo no espelho. Linda, perfeita, modelada. Calcinha de estrelas sorridentes. Nenhum sutiã. Ando desligada demais. Como sempre. E daí eu me espreguiço e lembro que eu deveria colocar um sutiã e uma roupa por cima, e é exatamente isso o que eu faço. Eu sei que eu sou magnética e demasiada boa.
            É inevitável pensar nele. A rotina não é demasiada presente para me trazer de volta ao meu corpo. Aliás, belo corpo. E eu sei que ele não me merece. Mas, por que eu insisto em um mesmo sonho?
                Eu não sei.
                Quarta pergunta do dia.
                É muita pergunta para pouca resposta.
              Eu costumava ser um anjo, mas mudei da água para o vinho. Por mais que isso pareça um milagre, não é muito agradável e não necessariamente bom. Mudei por alguém, que não por acaso não é eu. O que me alimenta é a auto-destruição, por algum motivo. Junto os cacos para depois quebrar tudo de volta, por falta de motivos. Como uma criança burra com mãos de alface que sempre derruba o seu brinquedo. Eu pago a minha felicidade com juros e parcelada, mas nunca chega. Enquanto isso eu esboço um sorriso no rosto. Sempre. E daí eu me pergunto: por que eu faço isso?
                Eu não sei.
                Estou sozinha em casa. Aonde todo mundo foi?
                Eu não sei.
        Embora eu seja inteligente, eu sou burra. Eu sei que se algo não dá certo de algum jeito, não adianta continuar a fazer as coisas do mesmo jeito de sempre. A vida é feita de decisões. Os indecisos nunca são felizes com o resultado das coisas, pois qualquer resposta que o mundo jogar nas suas caras não será aquela que eles esperavam. Porque eles não sabem o que querem.
                Quem dera fosse apenas esta ressaca que me deixasse mal.
  Coço a nuca. Pego o meu celular. Há algumas mensagens novas. Claro, sempre. Todos me desejam, mas desejo poucos. Um apenas. Ou, melhor colocando, eu desejo um enésimo de pessoa. Coço a nuca. A primeira mensagem é de alguém: quem é você? Sou fechada, ríspida, brava, machucada. Sou amigável, meiga, tolerante, invulnerável.
                Respondo: eu não sei.
             A segunda mensagem é de outro alguém: por que você vez aquilo com ele, menina? Ele te ama, você sabia disso?
                Respondo: eu não sei. Sim, sei que ele me ama.
                A terceira mensagem é do primeiro alguém: oi, tudo bem? Como você está?
                Respondo: oi, tudo bem, sim. Eu não sei.
             A quarta mensagem é dele, aquele sacana. Ontem eu fui para vê-lo mais uma vez. E foi exatamente isso o que aconteceu, eu apenas o vi. Ele com outras mulheres. Cada uma com um enésimo do total dele. Ele se compartilhando com todos. Isso é bom para todo mundo, menos para mim. Não vejo justiça nisso.
                 A quarta mensagem: desculpa por ontem, menina, de coração.
                 A quinta mensagem é dele: eu gosto de você, não me deixe.
                 A sexta mensagem é dele: sério mesmo, estou muito mal por ter feito aquilo que fiz.
              As pessoas só dão valor quando perdem. Eu sei disso, e é por isso que eu dou valor enquanto ainda tenho. Mas, se ninguém mais pensa da mesma maneira, onde está a vantagem em fazer o que eu faço? Até que ponto é vantajoso ser honesta? Até que ponto é vantajoso ser uma pessoa boa? Por que eu me questiono tanto?
             A sétima mensagem é do meu pai: onde está você, filha?? Não demore para chegar em casa. Papai te ama. Beijos.
              Onde será que ele está agora?
              A oitava mensagem é dele: estou bêbado agora, mas sei que errei ao te deixar de canto. Eu te ignorei, sou um idiota completo.
             Agora ele se sente mal. Ele simplesmente não se decide nunca. E o cara de pau vai me querer outro dia, como se nada tivesse acontecido entre nós. Odeio pessoas indecisas. Eu amo ele.
             A nona mensagem é da minha melhor amiga: eu te amo, amiga!! Uhuu, estou muito bêbada!! Hahaha eu achei um gato aqui pra mim, muito massa, você devia ver ele. Acho que vamos namora, se cuida, gata.
             A décima mensagem é dele: você gosta de mim?
            Sinceramente. Chega disso. Vou tomar as rédeas. Não quero mais ele, não me faz bem. Eu gosto dele, mas desse jeito não dá. A vida é uma grande merda se você quiser que seja. Caso contrário, é só uma merda. Eu não sou mulher de meia pessoa, nem de uma parcela de pessoa. Sou mulher de uma pessoa inteira.
             E a décima primeira mensagem é dele, também: eu te amo, menina.
             Respondo: eu também te amo, menino.
             Eu odeio gente indecisa. Eu me odeio.
Por que eu sempre faço a mesma coisa?
Sinceramente, eu não sei.
Mas, eu ainda estou viva.

sábado, 18 de janeiro de 2014

Inexplicável



– Oi, tudo bem? – eu digo.
– Oi, tudo! E você? – ela diz.
                E eu me apaixono pela mulher. Gostosa.
               E, agora, dando um rolê com ela pela cidade. Ela fala que quer sorvete. Eu pergunto se ela quer sorvete de bolas ou de paus. Ela fala que de bolas, porque de paus não é sorvete, daí é picoléte. Sim, ela disse “picoléte”. Comemos as bolas. Ela gostou e pede mais. Eu pago mais. Ela esfrega as contas na minha cara. Não sei se é um ato de afeto ou de outra coisa. Mas eu digo “tudo bem” e pago a conta. Eu não gosto de pagar contas, mas eu pago a conta. E ela não diz nada. Só come, se lambuza e come. Engorda.
                Um mês juntos, viva nós! Conseguimos! Ela faz dois bolos para nós. Comemos os bolos.
             Eu me ajoelho, em frente a uma exposição de carros antigos – ela gosta de carros antigos, enferrujados, portadores de tétano – e a peço em casamento com um anel de salgadinho. Ela recusa. Bosta.
                Eu me ajoelho, enquanto ela faz macarrão, na cozinha, desatolando a calcinha, e a peço em casamento com uma aliança de ouro farta. Ela me manda catar coquinho e eu deito no sofá, de braços cruzados. Bufando.
                Eu chuto a porra da porta, a porta da porra, com muita brutalidade e inconsequência, e me ajoelho na frente dela, que está sentada no vaso sanitário. Eu a peço em casamento com uma aliança de ouro e com um puta dum diamante bem foda bem ali pra todos os gatunos verem de longe sem binóculos. Ela aceita e se borra de alegria. Amém.
– Eu aceito. – eu digo, convicto.
– Eu aceito. – ela diz. Ela me ama, certeza. Eu acho.
– Ok. – diz o padre. E levo um susto quando ele fecha a bíblia.
Enfim, chegou o dia em que eu preciso falar uma coisa séria para ela. Meu amor, minha vida, minha privada entupida. Eu crio todas as coragens do mundo e digo que tenho dois pênis funcionais. Ela delira, desmaia na hora. Ó, meu amor, meu fedor, meu penico voador! Depois de um tempo, de uma meia hora, ela volta ao normal e pergunta se é verdade. Eu digo que não, que na realidade eu tenho nenhum pênis e, portanto, não podemos ter filhos nossos. Aliás, para completar o pacote, eu não tenho nem gônadas. Ou seja, não posso ter um filho. Mas, ela pode, a princípio. Ela chora. E ri. Porque sou eunuco. E daí eu faço um sexo oral nela e ela perde a força nas pernas e cai no chão ao tentar se levantar para ir ao banheiro. E eu rio. Ela me manda catar coquinhos e fecho a cara. Rosno.
– Certeza de que quer fazer isso, meu doce? – eu pergunto.
– Sim, meu salgado. – ela responde.
– Tudo bem, gente. – diz o médico, colocando luvas de látex.
Ele, o doutor, entra lá num lugar. Ela, a minha querida esposa, também. O médico ri alto lá de dentro. A minha queridinha esposinha também. Tenho certeza de que ela falou que sou um eunuco desgraçado. Tomara que essa desgraçada pague caro por isso. Vadia.
Ela vomita muito no banheiro. Em casa.
Ela vomita muito no sofá. E se caga. Em casa.
Ela vomita na minha boca. Na. Minha. Boca. E caga no meu queixo enquanto faço uma delícia de um sexo oral nela. Merda.
O doutor diz que deu merda na inseminação artificial de alguns dias atrás. Na verdade, o cara acabou colocando plutônio nela. Ele se confundiu. Ela vai morrer dentro de alguns dias. Vish.
– Buceta! – eu grito.
– Caralho! – ela berra.
– Foi mal. – diz o doutor.
E morreu.
Eu choro muito no velório.
– Poxa, que pena que ela morreu já. Tudo bem com você? – uma mulher aleatória diz.
– Pois é, cara. Não. – eu digo.
E me apaixono pela mulher. Inexplicável.
– Eu não tenho pau. – eu digo, logo em seguida.
– Poxa, que pena. – ela diz, e vai embora, logo em seguida.
Gostosa.