sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

O homem se salva no final



Pedacinhos ensanguentados de carne, de ossos, de fezes, de comida mal digerida, de água e uma prótese de titânio amassada passam pelo triturador e se unem entre si. Ouve-se um som desconfortável no processo construtivo, semelhante ao som que se ouviria ao esmagar uma barata do tamanho de um ser humano entre as solas de duas botas de titânio gigantes ao mesmo tempo em que se suga pelos canudinhos uma dúzia de refrigerantes que se esgotaram nos fundos copos plásticos de fast food. Enquanto os pedaços se unem em um quebra-cabeça complexo e nojento, a estrutura óssea e as vísceras ganham contornos, delineando a massa encefálica, o coração, os pulmões, os intestinos, os rins, o pâncreas, o estômago e demais órgãos internos de um fast food gigante. A prótese se desamassa e se enfia no lugar onde seria encontrado o fêmur esquerdo. Em algum momento da transformação, aos poucos a musculatura se desenvolve, formando todos os músculos, inclusive a genitália fálica pequena. Em algum momento da transformação, o sangue e a água são absorvidos como por um canudinho pela matéria orgânica e a comida e fezes se enfiam no sistema digestório do ser humano pelado.
                O homem flutua no ar, berrando e com os olhos estalados, subindo a partir da boca do triturador até um gancho frio com gosto de ferrugem empalado no céu da sua boca, agora com os olhos fechados. O gancho desloca o homem adormecido pelo local de ar pesado até as mãos de dois outros homens brutamontes, maciços, retirando o sujeito nu do gancho e deitando-o numa maca. Ouve-se o barulho dum pequeno motor elétrico e ele fica peludo e cabeludo. Tecidos coloridos saem duma lixeira, voam e grudam no homem pelado peludo. Uma faca fria costura os tecidos, vestindo-o com cueca, calça jeans e camisa polo. Um dos brutamontes pega duas meias amarelas, que deveriam ser brancas, e dois sapatênis. Calçam o homem com estes objetos e amarram os seus sapatênis.
                Ambos os brutamontes retiram o homem deitado da maca e o colocam gentilmente no interior do porta-malas de um automóvel. Ouve-se o barulho dum grande motor a gasolina que percorre vinte e dois quilômetros em ré, dançando pelas pedras por onde passa em cima. O automóvel estaciona na frente da casa do homem do porta-malas e os brutamontes o retiram brutalmente de lá. Carregam-no e o deixam deitado na porta de entrada da sua casa, sobre o tapete de boas-vindas. O homem roda em torno de um eixo horizontal e passa da sua posição horizontal em decúbito a uma posição vertical em pé. Um objeto fálico maciço ataca brutalmente a têmpora direita do homem, que abre os olhos e sorri gentilmente, e depois tranca a porta da sua casa.  Ele caminha até a cozinha, tira o telefone do gancho, conversa brevemente de trás para frente, e coloca o telefone novamente do gancho, que começa a apitar estridentemente.
                Acordo de samba canção com o despertador apitando, arfando de susto. Meu coração pulsa aceleradamente, minha cabeça pulsa e o ar está pesado enquanto eu me apercebo de que tive um pesadelo horrível. Desligo o despertador irritante, bocejo o máximo que posso e me espreguiço mais ainda, alongando principalmente o pulso esquerdo. Visto uma roupa decente e vou ao banheiro lavar o meu rosto detestável, todo suado. Ainda com há uma lembrança amarga do pesadelo. Respiro fundo e prometo ao espelho em voz alta que eu não ficarei abatido com este sonho ridículo. Na cozinha, passo o café na cafeteira. O café está com um gosto amargo detestável. Sinto-me ridículo por não saber passar um café decente. O telefone toca e eu atendo. Digo alô e ninguém me responde. Jogo o café ralo abaixo. Destranco a porta para ir trabalhar e me abatem com uma pancada na têmpora direita.
                Acordo pelado com um gancho na minha boca e com gosto de ferrugem do meu próprio sangue. Berro de desespero. A primeira coisa que eu lembro é do pesadelo que eu tive na minha cama. Esforço-me o máximo que posso para desencaixar a porcaria de mim e, por fim, me estatelo no chão. A minha cabeça está pulsando aceleradamente. Meu coração está latejando. Minha boca está seriamente perfurada, e o sal do meu suor se confunde com o sabor do sangue. O ambiente tem um cheiro nojento de morte e tripas. Há um triturador ligado no fim do trajeto do gancho. Não sei ao certo o que aconteceu, mas eu consegui mudar o meu destino. Penso seriamente como sair daqui antes que alguém queira me fazer em pedacinhos ensanguentados de carne, de ossos, de fezes, de comida mal digerida, de água e uma prótese de titânio amassada. Respiro fundo. Eu estou vivo.
                O local onde o homem pelado está explode violentamente, virando em pedacinhos de concreto armado, máquinas mortíferas metálicas e vidro de janelas numa reação química de elevada exotermia. Absolutamente tudo o que aquele lugar abrigava se une ao pó das ruínas. O barulho é ensurdecedor, o que você conseguiria ao chocar várias centenas de pedras pesadas entre si, ao mesmo tempo em que toneladas de xícaras despencam de um prédio de dez andares e se estatelam no chão.
                Acordo de cueca com o barulho ensurdecedor de pedras se chocando entre si. Abro violentamente os meus olhos e respiro rapidamente. Levanto de supetão e vejo na janela que estão demolindo a casa do meu vizinho. Saio correndo para a porta da frente, sem me vestir, para ver se o meu vizinho está ou não dentro da sua casa. Ao destrancar e abrir a porta, levo uma macetada dura na cabeça.
                Acordo pelado numa maca dura. De primeiro momento eu achei que eu estava sozinho, mas ouço passos distantes se aproximando. Desesperadamente eu me levanto e procuro lugar para me esconder. Na procura dou uma macetada desajeitada do meu joelho contra a quina de algum objeto pontudo e que não sei o que é. Deve ser uma espécie de criado mudo. Não importa. Os passos cessam. Permaneço imóvel e prendendo a respiração. Bisbilhoto, alarmado, de vez em quando para ver se os caras vêm à minha procura.
                No local onde o homem pelado está subitamente entram homens armados pelas janelas, a partir de helicópteros, quebrando todos os vidros e o fuzilando cruelmente, sabendo desde o início onde ele estava escondido. Os barulhos de vidros estilhaçados ecoam na mente do homem e em todo o local imenso, enquanto ele sofre de dores agudas opressoras.
                Acordo pelado com o barulho de vidro se estilhaçando. Rolo na cama, caio no chão, levanto desajeitadamente e bisbilhoto a cozinha. A minha namorada se desculpa por ter derrubado o pires no chão. Ela diz que foi sem querer. De repente eu me lembro de que eu fui avisado que hoje o meu vizinho iria demolir a sua casa. Libero o peso do meu peito com uma boa e grande exalada de ar. Alguém bate na porta da frente. Eu digo que eu abro a porta, eu imploro. Ela diz que eu estou pelado e não posso abrir a porta. Acalmo-me com um beijo matutino da minha namorada. O seu calor e amor me fazem perceber que eu estou vivo e acordado. Sorrio alegremente a ela, que abre a porta da frente, já destrancada, e leva um tiro de pistola na testa e capota. Saio correndo e me atiro pela janela do meu quarto. Eu caio um monte, porque estou dentro de um prédio, e desmaio em queda livre.
                Acordo vestido dentro de um porta-malas. Assustado, dou murros na tampa até minhas mãos sangrarem. Grito até a minha garganta rasgar por dentro.
                O carro capota e o homem vestido do porta-malas gira, gira, gira e gira mil vezes, batendo a cabeça freneticamente tantas vezes até o seu cérebro se transformar num suco cinzento de carne.
                Acordo de samba canção batendo a cabeça. Demoro um pouco para perceber que estou de cara no chão, ao pé da minha cama. Eu me lembro de que eu nunca tive nenhuma namorada. Choro, choro, choro e choro. Um estrondo súbito me faz pular deitado. Rastejo até a janela e vejo que estão demolindo a casa do meu vizinho. Eu não me lembro de alguém ter me dito que iriam demolir a casa do meu vizinho, embora eu me lembre que eu tinha me lembrado com certeza de que demoliriam. Instintivamente, olho para baixo, da minha janela. Há a grama do meu quintal. Se eu pulasse, não cairia muito e muito em queda livre. O telefone toca. Minhas pernas cedem e despenco. Decido não atender. Não sei o que fazer.
                A casa do homem de samba canção de repente entra em combustão espontânea de elevada exotermia, e o mesmo agoniza horrorosamente enquanto é assado e sente o fedor do seu próprio churrasco.
                Acordo com o cheiro de fogo vindo pela janela e o barulho de helicópteros. Pego uma faca na cozinha e abro a porta dando estocadas violentas no ar. Não há ninguém. Estou num prédio. Eu tenho uma namorada que amo muito. Corro mais que as minhas pernas podem e de repente elas cedem. Corto-me ao cair no chão. Devo estar pelado. Não importa. Não sei. Estou atrasado para o serviço. Não quero ser despedido. Desço os degraus rapidamente, três degraus de cada vez, e sinto que o chão está se inclinando. Meu coração cavalga. O chão está se inclinando.
                O prédio do homem de cueca despenca violentamente. Enquanto o chão lhe foge os pés descalços, ele fica apavorado com o barulho que os silvos de ar fazem ao penetrarem pelos vãos das janelas. Eventualmente, ele está voando, sente calafrios congelantes e, por inércia, se arrebenta terrivelmente e se quebra todo na desconstrução, como se ele fosse um inseto espezinhado por uma bota gigantesca.
                Acordo no hospital. Arranco os cateteres. Tem gente na sala. Não sei. Estão apavorados. Estão apavorados? Eu me amo. Isso daqui tem cheiro de hospital. Cavalgo. Preciso abrir a porta da minha casa. A chave está na minha cueca?
                O coração do homem apaga, pois ele está gravemente doente e frágil.
                Acordo na minha cama. Quente. Preciso. O quê? Que quente. Eu suo. Ando. Botas gigantes? Estou apavorado? Estou, sim. Sorrio alegremente. Oi, vizinho. O que é uma chave? O vizinho está virando panqueca? Nossa, é mesmo. Eu amo vocês. Quem? Eu falei isso em voz alta. Que ridículo. Engraçado. Eu vou pra frente, mas ando pra trás.
                O corpo do homem apaga, pois a exsudação excessiva esgota a água do seu organismo.
                Eu sou uma barata. O meu vizinho me beija. Ele está no hospital. Logo, eu estou no hospital também? Capaz. Acho que não. Ei, cadê o meu canudinho? Estou falando de trás pra frente! Que legal! O quê. Atenda a porta que está apitando.Que porta quente.
                O homem não morre.
                Eu estou na cozinha? Isso daqui é uma faca? Acordei? Oi. Nossa. Capaz! Que dia. Quente a minha namorada. Beijo a porta e sinto o seu amor. Fria. A porta está suando. Isso daqui é uma maldita faca? Estou deitado. Não. Engraçado. O homem está deitado. Isso daqui é uma faquinha? Em pé. O homem ama todo mundo! Ele é feliz! Isso daqui. É uma chave. O homem quero faca. Cadê o meu hospital? Acho um gancho. Não, não. Isso daqui é uma faca!
                O homem se mata.
               
                 

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Cuidado...



Tudo aconteceu porque eu decidi comprar um avião, ao invés de um jet-ski. Aliás, começou um pouco antes disso, quando eu quis fazer aulas de piloto de avião, ao invés de aulas de piloto de jet-ski. Não sei se são necessárias algumas aulas para aprender a pilotar um jet-ski, visto que o mar é um lugar meio parado em termos de tráfego. Eu poderia ter sanado esta dúvida se eu tivesse escolhido a opção marítima. O tráfego aéreo também não é conturbado, mas um avião tem o esquema da tridimensionalidade de movimento que complica um pouco a coordenação motora do indivíduo. Há muitos graus de liberdade num avião, podendo se locomover em retas contidas em três planos ortogonais diferentes, e ainda com o bônus de poder girar em torno do eixo de propulsão do jatinho.
                Eu comprei um jatinho. Porque eu tinha muito dinheiro. Tanto dinheiro que eu não sabia o que fazer e comprei, primeiramente, um jatinho. Não era um muito bom, malmente chegava à velocidade Mach 1, porque o dinheiro que eu tinha era tanto, mas não tanto assim. Se eu tivesse comprado um jet-ski, possivelmente nenhuma tragédia tivesse ocorrido. Tudo gira em torno do jatinho.
                Eu não tenho mais dinheiro. E não foi só o dinheiro que eu perdi, infelizmente, mas já chegamos nesta parte da história. Foram tantas escolhas erradas que eu fiz que eu não sei por onde começar.
                Hoje é o meu aniversário. Parabéns para mim.
São tantas coisas para eu me lamentar, tanto passado para remoer, que eu me perco no próprio pensamento, e eu não sou hiperativo e não tenho nenhum déficit de atenção. Muito pelo contrário, eu sou muito concentrado. Uma alternativa plausível para o turbilhão de coisas na cabeça é a insanidade que brotou na minha massa cinzenta. “Você está louco!” é o que qualquer pessoa sã diria a mim e, deste modo, eu devo estar louco mesmo.
                Tenho doutorado em física. Já fui um aluno muitíssimo aplicado e focado nos estudos. A minha curiosidade, desde criança, é extremamente grande, o que não é nenhuma qualidade. Não foi com um currículo carregado que eu ganhei uma porrada de dinheiro, que acabou acabando comigo e com toda a minha família, e, ironicamente, com todo o meu dinheiro. Eu só quis mencionar sobre quem eu era para você se familiarizar comigo e decidir se sente pena ou ódio de mim.
                Minha mãe dizia que a nossa sorte é a gente que faz. Quanto maior for a sua vontade, maiores serão as suas conquistas. Você chega até onde você se permite chegar. Minha mãe dizia para eu não fazer corpo mole pra nada e fazer o que eu acho que é certo que eu teria sucesso na minha vida, que eu faria a minha sorte.
                Comecei a refutar a teoria da minha mãe quando eu fui dar uma mijada perto da linha do trem e achei quatro maletas pesadas com uma quantia acumulada de, aproximadamente, uns vinte e cinco milhões, setecentos mil e dois reais (demorei pra contar, mas não fiz corpo mole). Isso, claramente, foi sorte. Foi estatística, e não calorias queimadas pelo esforço físico e mental para se atingir um sonho. Isso aconteceu há um mês, mais ou menos.
                Larguei o meu emprego. Despertou em mim um sentimento de liberdade, surgido do dinheiro e catalisado pela minha curiosidade nata. Dinheiro compra tudo, principalmente liberdade. Dinheiro, ironicamente, acaba com tudo, também.
                Estou me contradizendo, devo estar louco.
                Pensando bem, eu acho que tudo foi ao caminho da merda quando eu optei por mijar perto da linha do trem, ao invés de esperar chegar em casa, abraçar a minha família linda (uma filha, um filho e uma esposa) e me aliviar no vaso sanitário do banheiro. Pensando bem, tudo gira em torno da mijada.
                Peguei as maletas, seguindo o conselho de um amigo meu, quando éramos crianças: “achado não é roubado”. Enfiei rapidamente as maletas no meu carro, pensando que eu seria assassinado algum dia por algum cara querendo reclamar o que era supostamente seu. Seria muita sorte se eu fosse assassinado. E como era muito bom para ser verdade, isso não aconteceu. Por causa disto, eu cheguei em casa, abracei a minha família e, ao invés de abrir o zíper da calça, abri os zíperes das maletas e mostrei o dinheiro ao invés do pinto.
                Já me enrolei demais. Vou acelerar o passo da história.
                Depois que eu larguei o emprego, decidi fazer aulas de voo, porque decidi comprar um jatinho, ao invés de um jet-ski.  Aprendi rápido a pilotar, porque sou muito aplicado e entendo de física (minha mãe dizia que informação é poder). Eu não pensei duas vezes e encomendei o jatinho completinho e com tanque cheio. Eu decidi chamar a parentada toda para o meu aniversário, na minha casa, por minha conta. O jatinho chegou bem no dia da festa, isto é, hoje, e bem na minha casa, o que não é necessariamente bom. Eu decidi tomar um copo de uísque. Eu decidi tomar dois copos de uísque. Eu decidi ignorar a minha esposa e terminar de tomar o meu sexto copo de uísque. Eu decidi chamar atenção e voltar a ser criança e entrei na cabine do avião. Eu decidi mandar a minha esposa calar a boca e parar de se meter na minha vida, porque eu sou um adulto e faço o que eu quiser e o que eu “achar que é o certo”, e também “não faço corpo mole pra nada”. Eu decidi decolar, depois de ter andado por algumas quadras na rua que nem um louco. Eu decidi fazer um loop no ar. Tudo girava em torno do jatinho. Como eu optei pelo uísque e eu não era tão foda quanto eu imaginava,e por causa da força G atuando no meu íntimo, perdi o controle do avião. Eu sempre quis me ejetar de um avião, então eu o fiz. Ejetei-me no ponto máximo do loop e me projetei loucamente em encontro ao chão. Por sorte eu tinha decidido colocar o paraquedas antes, e foi a coisa mais louca da minha vida eu ter me ejetado de ponta-cabeça.
                Bom, a coisa mais louca da minha vida, na verdade, foi ver o avião se arrebentando na minha casa e matando todo mundo dentro. Eu assistia ao fogo consumir tudo e todos enquanto eu descia suavemente com o paraquedas, soluçando de bêbado.
Falando em coisas loucas, estou louco. Porque eu perdi tudo de uma vez só, eu acho.
                Temos quatro morais para esta história. Primeiramente: segure a sua bexiga o máximo que você puder. Segundamente: se você puder comprar um jatinho, por favor, não compre um jatinho. Terceiramente: achado não é roubado, mas foda-se esta expressão. Quartamente: cuidado.
Pensando bem, temos uma quinta moral: a sorte é aquilo que você constrói com esforço e conquista aos poucos, o resto é azar.  Minha mãe dizia isso, também.
O dinheiro eu perdi porque eu fiquei com preguiça de colocá-lo em um cofre seguro de um banco seguro, porque eu decidi deixar o dinheiro dentro das maletas, e as maletas dentro da minha casa que era uma casa pequena, mas agora é a maior churrasqueira do mundo com um monte de carvão e carne. Vou ficar um tempão pensando no que fazer, de agora em diante, fazendo nada onde o sol decide nascer quadrado.


terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Um dia muito louco



– Meu nome é Railan e...
                – Desculpa, Railan, mas não é permitido falar o seu nome. – o técnico interviu, gentilmente com a sua voz de veludo.
                – Tudo bem, eu não sabia desta regra. – continuou Railan. – Mais alguma coisa que eu devo saber?
                – Não é permitido falar o nome de ninguém. Somos números, e você é o número um. Não quero que isso se repita, e isso vale para todo mundo. Tudo bem?
                – Beleza, mais alguma coisa?
                – Não, senhor, pode prosseguir.
                O número um engoliu um bom volume de ar antes de começar o seu discurso.
                – Eu cansei da vida que eu levo, pois é discussão para todo lado, a toda hora, e não consigo ter sossego. Quis vir aqui para sossegar um pouco e aproveitar, pelo menos por alguns instantes, este clima amistoso legal e cheio de humanidade.
                Click.
                O número um soltou a respiração e de repente ficou muito triste. O número dois bateu suavemente no seu ombro, confortando o colega cabisbaixo, que começou a murmurar alguma coisa que era muito semelhante a choro. O dois tomou as rédeas.
                – O meu caso é parecido com o do um, só que eu vim aqui para descobrir se a minha vida é tão ruim quanto eu penso, ou é bem melhor do que isso daqui.
                Click.
                O número dois soltou a respiração e de repente ficou muito feliz. O número um continuava com a sua lamúria, sozinho, no seu mundo, enquanto o dois pulava euforicamente de alegria. Ele dizia algumas coisas aleatórias sobre a vida, dizendo que é maravilhosa, que é uma bênção, que é uma coisa realmente muito bonita e graciosa.
                Eu sou o número seis, e o cinco, logo ao meu lado, é o meu melhor amigo, Peter. Não é Pedro, é Peter, e ele é brasileiro também, desde sempre. Os seus pais são brasileiros cabeçudos e resolveram, por algum motivo, dar este nome retardado ao filho. Ele é o melhor amigo do mundo, é gente boa demais. Engraçado, divertido, bonito, legal, inteligente e heterossexual como eu.
                – Posso tirar as roupas e ficar só de cueca, senhor? – perguntou o número três.
                O técnico ponderou por alguns segundos, medindo o três com os olhos, dos pés à cabeça.
                – Não me recordo de nenhuma regra contra isso, senhor. – respondeu o técnico, com aquela sua serenidade.
                O três tirou as roupas e ficou somente de cueca. Todos nós assistimos à cena em silêncio, sendo os únicos sons do ambiente os dos tecidos sendo amassados e desamassados, dos tecidos caindo no chão e do um assoando o nariz na própria camiseta horrorosamente rosa. As últimas coisas que ele tirou foram as meias, que caíram em cima dos meus sapatos. O local é a fresco, todo feito de concreto, em algum ponto do país cujo não me lembro mais. Qualquer barulho se torna facilmente um estardalhaço, devido à reverberação do local. Um estouro de bomba ou um disparo de arma de fogo, então, nem se imagina a desgraça de som que deve fazer. Quem me convidou e me trouxe aqui foi Peter. Viemos ouvindo música eletrônica. Foi louco.
                – Posso tirar a cueca, senhor?
                – Melhor não.
                – Tudo bem.
                Por algum motivo estranhamente perturbador, fiquei encarando o volume na cueca do três. Sai do transe quando Peter me deu umas cotoveladas no meu braço e sussurrou no meu ouvido.
                – Aposto que ele se borra nas calças. – Peter sussurrou no meu ouvido.
                Muito convidativo o lugar, embora seja feio demais e mal conservado. O clima é cada vez mais tenso, porém, mas não devido ao lugar, e sim devido às pessoas daqui. A feição de todo mundo também deixa o lugar amigável, pois estamos todos na mesma situação. Estou com um calor infernal, porque eu sai direto do serviço e vim aqui, ainda de roupa social.
                Click.
                Ótimo, perdi o discurso do cara. Simplesmente perdi a melhor parte do negócio. Eu realmente queria saber o que um cara como esse, supostamente nudista militante, pensa sobre a vida. E ele não borrou as cuecas.
– Ele não borrou as cuecas. – Peter sussurrou no meu ouvido.
– Não mesmo. – respondi.
Agora é a vez do número quatro.
Ele ficará vulnerável, assim como os três anteriores.
Ele sentirá a pressão. Ele poderá morrer ou renascer.
– Eu acho tudo uma bosta. – o número quatro disse.
Click.
E não morreu. E continuou na mesma. Não alterou nem um pouco o estado de espírito.
– Eu pensei que seria mais emocionante. – o quatro continuou. – Foi um saco.
O número quatro passou o revólver para o Peter. Um frio misterioso surgiu e aos poucos foi tomando conta de mim, começando pela barriga. Quando Peter levou o cano do revólver até a têmpora, com o dedo encostado no gatilho, eu petrifiquei. “Vamos brincar de roleta russa”, ele disse, “é super legal”, ele disse. E aqui estamos nós, brincando de roleta russa com mais quatro caras esquisitos – sendo um deles seminu – e mais um técnico estranho.
– Eu vim aqui porque eu gosto da natureza humana. – Peter iniciou o seu discurso, com a voz firme e um sorriso no rosto. – Aqui nós estamos na mesma situação, todos tensos, todos extremamente expostos um ao outro.
– Eu não. – o número quatro interrompeu o meu amigo. – Isso daqui é uma bosta. – bufou.
O tambor do revólver comporta até seis projéteis. Ou seja, há cinquenta por cento de chances de Peter morrer agora assim que ele fazer um sutil movimento com o seu dedo indicador. E eu posso perder a pessoa com quem eu mais me importo nessa vida em um piscar de olhos. Isso é pior do que morrer. Aquela arma que aponta na cabeça dele aponta também no meu coração.
– Então... – Peter coçou o couro cabeludo com o revólver, retomando a linha do raciocínio. – Aqui nós podemos morrer facilmente. Quando estamos ameaçados de morte, na iminência de perder tudo o que temos e vivemos, mudamos. Passamos a ver a vida com outros olhos. – Peter olhou diretamente para mim, ainda segurando o revólver contra a sua cabeça. – Somos todos amigos e nos respeitamos profundamente. Podemos ver a nossa compaixão e compreensão pelo olhar assim que empunhamos esta arma aqui. – jogou os olhos para a posição da arma, na lateral direita da sua cabeça, e voltou a olhar para mim, conversando comigo e com todos ao mesmo tempo.
Peter voltou a olhar para todos da rodinha. Insuflou o seu peito com bastante oxigênio e terminou triunfalmente o seu discurso. Desse jeito:
– Meus camaradas, provavelmente eu não terei outra chance de dizer isso, mas eu amo todos vocês, mesmo não os conhecendo.
Peter alargou o seu sorriso, comovendo todo mundo. Todos principiaram uma salva de palmas ensurdecedora, que reverberou insanamente no lugar. Parecia uma saraivada de tiros. No meio de tudo isso, o número um se comoveu e chorou de alegria, o dois se comoveu e chorou de tristeza – por não ser tão maneiro quanto Peter –, o três se exaltou e ficou pelado – a cueca, com uma mancha amarela, caiu no meu sapato –, o quatro se comoveu e sorriu e berrou e o técnico bateu palmas gentilmente, como um cavalheiro. Em meio à algazarra, todos os participantes gritaram em uníssono “Cinco! Cinco! Cinco!” e “Uhuuuu! Ihuuu!”.
Permaneci calado.
Permaneci parado.
Peter começou a tremer.
Eu não sabia o que fazer na hora.
Eu gritei com a maior força que eu pude calando todo mundo e saltando todas as veias que existem no meu corpo:
– Nãããããão!!!!
Click.
– Ããããão!!! – continuei, com todos calados.
Todos me encararam, assustados. Peter já tinha apertado o gatilho e continuava de pé, felizmente. O meu grito foi aquela extensão de grito que somente você continua a gritar após o momento em que todo mundo para de falar subitamente. Semelhante a uma festa, no meio da multidão, quando você fala alguma coisa constrangedora, como “ímã de vagina”, no exato momento em que todos cessam a falação e, conseguintemente, escutam claramente o que você acabou de proferir.
Então.
Fiquei parado.
Varri oticamente a circunferência da rodinha de gente, desde o técnico ao meu lado esquerdo até o Peter á minha direita. Continuavam me encarando. Deixei escapar um sorriso tímido com o canto da boca.
– É a sua vez. – disse uma voz da minha direita.
Virei o pescoço, e em seguida o tronco, e logo após as penas, em direção a Peter. Olhei nos seus olhos com os meus olhos úmidos, aliviado que ele continuava vivo, e depois eu olhei para a sua mão, que se encontrava estendida e com o revólver.
Peguei o revólver.
Fiquei encarando o revólver, sorrindo timidamente, zonzo.
Se Peter não morreu, quer dizer que resta uma bala no tambor.
Parei de sorrir e engatilhei a arma.
– Seus filhos das putas! Fiquem onde estão! – segurei a arma com as duas mãos e a apontei para todo mundo, varrendo toda a rodinha com o cano. – Não façam nenhuma gracinha ou eu atiro! – recuei uns poucos passos, tremendo nas bases. – Vocês pensaram que eu ia participar dessa brincadeira do caralho?! Acharam que eu sou burro de tentar me matar, mesmo com certeza de que iria morrer?! – aproximei-me da porta da entrada, que era a porta de saída naquela ocasião, e que se alocava convenientemente bem atrás de mim. – Vamos, Peter, vamos sair daqui! Essa coisa é idiota demais! Muito, muito burra demais!
– O senhor, número seis, infringiu duas regras. – o técnico disse.
– Ah é?! Diga as regras, então, senhor técnico de araque! – apontei o revólver pro homem, tremendo nas minhas mãos.
– O senhor não puxou o gatilho. Isto se caracteriza como trapaça. É uma atitude extremamente desrespeitosa aos demais participantes, visto que eles cumpriram honestamente os seus papéis e você saiu antes da conclusão do jogo. – o técnico explicou, apontando firmemente uma pistola na direção da minha testa. – Sendo assim, ninguém perdeu. Deste modo, não há vencedores, pois não há perdedores. Isto é extremamente desgostoso para todos nós. Estamos infelizes agora.
– E daí?! Foda-se! Se eu atirar em você agora estas regras idiotas não valem de nada! Essa merda de jogo é ridículo, e nem precisa de um maldito técnico! – assumi coragem e firmei os punhos. Engrossei a voz. – Você é um otário inútil!
– Eu já avisei uma vez, mas o senhor insistiu em infringir a regra: eu deixei muito claro que não é permitido dizer o nome de ninguém. O senhor, mesmo assim, disse o nome do nosso colega número seis. – o técnico apontou para o Peter, brevemente, assim que mencionou a sua numeração.
Olhei para Peter, que também apontava uma pistola na minha cabeça. Olhei para todo mundo, que também apontavam uma pistola na minha cabeça. Eram seis pistolas contra um revólver. Isso mesmo, a situação estava preta para mim. Não tinha muito o que eu fazer, na hora. Eu apelei para o coitadismo e disse:
– Porra, gente, ninguém me falou que era permitido trazer uma arma pessoal!
E não deu certo. Começou o tiroteio. Primeiro eu levei uns três ou quatro tiros no crânio, atravessando-o por completo em várias direções. Depois disso, eu derrubei a arma no chão e cai em câmera lenta. Como o alvo – eu – mudou de posição, os caras mudaram a mira e atiraram em várias partes do meu corpo. Peito, braços, pernas, etc. Enquanto eu caia, eu vi um genital ereto de vinte e poucos centímetros, e que apontava para a minha cara.
A saraivada de tiros foi absurdamente barulhenta, o que me irritou bastante. Era tipo uma salva de palmas colossalmente amplificada e irônica para zombar do perdedor – eu. Eu não sei o que caiu antes no chão, se foi eu ou o revólver que eu segurava.  Eu não sei o que doeu mais, levar um monte de chumbada ou ser traído pelo meu melhor amigo. Eu não sei quantos tiros foram disparados, mas a barulheira foi ficando sucessivamente menos intensa até que o último esvaziou o seu pente. O som esvaiu aos poucos, como o final de uma música sem fim que vai diminuindo o som até sumir por completo e acabar.
– Ai. – eu disse, caído no chão e ensanguentado. – Bati a cabeça no chão.
Eu continuava vivo.
Hoje foi um dia muito louco, porque eu descobri que sou imortal.
– Eu sou imortal! Eu sou imortal! – eu gritei de alegria. – Chupem essa!
Com um esforço descomunal, me ajeitei e comecei a me levantar. Quando eu coloquei o joelho no chão e apoiei a minha mão sobre ele, o técnico puxou o meu cabelo e me decapitou com um facão bem afiado e desconfortável. Ele deixou a minha cabeça delicadamente no canto da sala, no chão, que por sinal estava bem frio. Onde eu estava consegui compreender todos os seis no meu campo de visão. O técnico voltou à rodinha, embainhou o facão avermelhado na sua meia e todos ficaram me encarando. Recarregaram as respectivas armas com novos pentes e começaram a brincar comigo de roleta russa com pistolas semiautomáticas. Repetiram o jogo infinitamente.
Poxa, como é chato ser imortal.