sábado, 4 de novembro de 2017

É a vida

Sinto o envolver da brisa do mundo,
Sentimentos florescem em meu imo,
Humanidade abrolha aqui dentro;
Boas-vindas à vida com meu choro.

Coloco coisas na boca miúda,
Aprendo que chorar me dá comida,
Dou aos brinquedos amostra de vida,
Ando em pé, daí vira corrida.

Meu primeiro tombo é quando tombo.
Meu segundo é quando eu me engasgo.
Choro muito quando quebro o brinquedo:
Era meu companheiro favorito.

Faço amiguinhos, com eles sorrio.
Daí tombo no concreto, me arranho...
Choro demais quando quebro meu dedo;
Mas o importante é que eu estou vivo.

Odeio escola, odeio estudar!
Quero ir pra casa brincar! Agora!
Quero... Conhecer aquela garota...
É da minha turma, é muito linda...

Não há nada como o primeiro amor:
Cheio de sonhos, me enche de dor.
É tanto amor que não sei onde por.
Meu coração se partiu, vou morrer...

Agora sou hominho e sei cair.
Os amigos de antes não mais vi.
Meu melhor novo amigo é o Jair;
Ele é meu novo melhor amigo.

Eu passei de ano, Jair ficou.
Estou uma série na sua frente;
Ele se sentava na minha frente,
Vou sentir saudades dele na aula.

Eu comecei a universidade,
Meu amigo se mudou de cidade;
Os caminhos divergem de repente.
Jair já foi. Eu vou sentir saudade.

Na mesma sala a paixão de infância;
Chamo pra sair e a gente sai.
Ela não gostou de mim.  Ela sai.
Outro tchau... Choro igual uma criança.

Reprovei de ano, quero morrer...
“Isso é um assalto”, vou morrer.
Bato o carro; eles vão me matar.
Qual é o sentido? Vou me matar...

Meu primeiro emprego, tenho salário.
“Não vai ter puta pobre na cidade!”.
“Garoto, quando eu tinha sua idade
Também passei por isso. Seja forte!”.

Estou bêbado, estou muito triste...
Estou solteiro ainda, que droga...
No fundo do poço: Só falta a morte...
Ainda moro com meus pais. Patético.

Estou muito triste, meu pai morreu.
Estou alegre!  Comprei minha casa!
Apresento à minha mãe sua nora:
Com ela vou casar! Eu amo ela!

Assino a papelada de divórcio.
Por lei devo manter distância dela.
Nunca mais vi meus filhos. Perdi tudo.
Afundo-me em tristeza e em ócio...

Meu amigo está desaparecido.
Anos se passam. Nunca mais o vi.
Perdi minha mãe. Perdi tudo mesmo...
E prospero muito no meu negócio!

Eu nunca estive tão feliz na vida!
Viajo no mundo com a esposa,
Brindamos aos amigos e saúde.
“Parabéns, é um menino saudável”.

Educamos bem nosso filho lindo,
Ensinamos o que deve saber,
Acompanhamos ele a crescer,
E um dia ele foge de casa.

Eu estou deitado em uma maca.
“Foi um derrame cerebral, senhora”.
Eu sou internado no hospital.
“Ficarei contigo até o final”.

Passo dias encamado, inútil.
Minha vida agora parece fútil.
Aperto a mão de minha companheira:
“Você fez valer minha vida inteira”.

Após anos revejo meu garoto.
Ele chora ao me ver aqui, fraco.
Ele está forte, ele está bonito.
“Vem cá, meu amigo”. Abraço e choro.

Por minha vista passa a vida inteira.
“Socorro! Chamem uma enfermeira!”.
Dou o choro mais intenso da vida...
Adeus, mundo: Uma triste alegria...

segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Proibido de ser

Dor na nuca. Claridade. Acho que estou deitado no chão não sei de onde. Aos poucos me alevanto com os braços, terminando por ficar sentado. Olho ao redor e não vejo ninguém, só umas paredes brancas altas. O teto também é branco, e é reto, e dele vem luzes ofuscantes, por isso não me demoro muito com minhas íris aí. Fico de pé, perdido, confuso, estranhado com a situação bizarra. Moscas volantes dançam na minha visão, tanto por causa da breve luminescência, quanto pelo fato de eu ter me içado rápido demais. Fico um pouco tonto, mas já passa ao passo que eu caminho e analiso essa sala vazia de chão também branco. Há apenas uma porta lá na frente, e mesmo com receio não tenho escolhas, visto que é minha única opção para sair daqui, onde é que aqui seja.
            Giro a maçaneta. Abro a porta.
            É um lugar igual ao de antes, contudo a porta está à direita, bem lá na frente. É um lugar vasto. A porta se fecha sozinha atrás de mim e as luzes se apagam quando dou três passos adiante. Um sentimento pesado de claustrofobia me domina, mesmo que o lugar seja demasiado amplo. Por isso eu volto três passos de ré e bato com a nuca na parede. Viro meu corpo e tateio a superfície, em busca da porta de antes. Vou para a direita esfregando a mão, e não encontro nada. Depois volto pela esquerda esfregando e nada. Nada. Corro esfregando a mão até que bato a testa em uma parede perpendicular a esta. Droga. Volto correndo e passando as duas mãos na superfície para o que era para ser a esquerda, indo em sentido ao lado oposto de antes, e novamente bato a cabeça, porém em outra parede. A porta simplesmente sumiu. A angústia começa a se instalar. Ofego pesado. Não sei mais onde era para ser a direita de quando entrei aqui, onde era para ter uma porta para fora daqui, se é que ainda há alguma porta nessa estranheza. Fecho os olhos, e parece que assim tudo é mais claro do que o breu de olhos abertos. Um horror pelo esquisito se apossa de mim e se soma à angústia. Respiro fundo, tentando me recompor, e me recomponho um pouco. Decido percorrer todos os quilômetros de paredes da sala, colado nas paredes, até achar a suposta segunda porta que deveria ainda existir.
            Já não sei mais de nada.
            Não tenho opções senão andar por todos esses quilômetros cegos.
            Enquanto tateio tudo continuamente, uma ansiedade em mim me diz que, já que sumiu uma porta, pode muito bem ter aparecido uma coisa perigosa e misteriosa protuberante nas malditas paredes. Como um espinho. Ou um espinho envenenado. Mas pode haver mais de um espinho. Então eu corro agonizando, temendo que algo me arrebente as mãos ou os braços, mas querendo que isso acontece tão rápido que eu não possa nem ter tempo hábil para levar susto e ficar só com a parte da dor. Ou pode haver dois espinhos bem finos na altura das minhas órbitas oculares numa parede me esperando para penetrar em meus olhos gelatinosos e me triturar os cérebros no momento em que eu supostamente fosse bater a testa novamente em uma nova superfície desgraçada. Então eu paro de correr e volto a andar. Uma mão temerosa esticada na frente e outra temerosa grudada na parede.
            Coração a mil. Na garganta. Traqueia se fechando. Engolindo seco. Têmporas se comprimindo.
            Solidão. Estou só. Solitário.
            Eu grito. Eu grito muito.
            – Alguém me ajude! – berro.
            Ninguém responde e só ouço ecos e reverberações de meu lamento frouxo.
            – Socorro! – berro novamente. – Tenho medo de ficar sozinho!
            Nada. Nem ninguém. Antes aparecesse um espinho para que eu ficasse menos solitário... Mas que, por favor, não apareça um monstro sanguinário com visão noturna em algum ponto desse átrio medonho. Pelo amor de tudo o que é sagrado...
            – Alguém está aí? – ouço um som.
            Paro de andar. Não sei quantos milhares de metros já percorri.
            Escuto algo baixo, vindo de longe. Viro a cabeça por instinto em direção ao ruído, mas não enxergo nada porque, obviamente, está tudo escuro. Meu raciocínio está começando a falhar. Meu peito quer explodir. Viro a orelha em direção ao ruído, que agora está mais alto. É um gemido de alguém sofrendo. Não. Não é isso. É um rosnar... É uma criatura rosnando! A ferocidade de seu som se converte em babas raivosas na minha mente perturbada. Minhas pernas ficam bambas, quando eu deveria continuar correndo. O som de suas patas me lembram unhas riscando concreto. Com uma força descomunal vinda lá dos confins do terror pelo desconhecido eu, de alguma maneira, corro.
            A ansiedade se instaura.
            A selvageria aumenta atrás de mim, de modo que não consigo mais respirar. E no calor do momento acabo me afastando da parede, tropeço e dou de joelhos no duro, ergo-me num impulso animal e dou uma guinada para a direita, onde talvez a porta deveria estar. Ou um espinho. Ou outro tipo de armadilha. Só quero fugir desse demônio que me persegue. O que foi que eu fiz?! Que lugar é esse?!
            Meu pé pisa em falso e caio num buraco. Dou uma cambalhota no ar e me estatelo de mal jeito. Não sei a profundidade do troço, mas é bastante apertado e faz voltas. É úmido, e nele eu derrapo de ponta-cabeça. Um tobogã dos infernos. Cubro a tampa do meu crânio com os dez dedos e duas palmas. Encolho as pernas numa curva brusca, sempre descente, no receio de a criatura ainda estar me seguindo e desejar morder meus pés com suas presas podres e tetânicas.
            O tubo de pedra me joga pro lado, e pro outro, e me arrebento todo assim, virando que nem uma bola e já todo desorientado. O que é cima?! O que é baixo?! Estou caindo pra cima ou pro lado?! Embolo-me que nem um lixo.
            Choro sozinho. Ninguém sabe onde estou, ninguém vem me resgatar e não paro de cair.
            Aonde estou indo? Eu quero minha mãe... Eu quero colinho... Eu quero cafuné...
            Onde estou?! Cadê meus amigos?! Preciso de consolo emocional. Meu imo arde mais que meus hematomas e esfolados. Isso tudo fede – ou deve feder, porque não sei mais o que é odor e o que é tato.
            Caio de costas com brutalidade em uma superfície mais dura do que as das duas salas de antes. O tranco me faz morder a língua e engolir a lamúria. A vida me coage a cessar com todas as demonstrações de desespero por um instante, pois a dor é maior do que qualquer coisa. Tamanha é que depois de uns trinta segundos ou mais ou menos eu me apercebo de que estou em um lugar aberto e luminoso que nem o dia.
            Inclusive, eu vejo o Sol raiar.
            Aliás, estou na cidade, de volta à sociedade.
            Rolo para pegar uma posição boa e me levanto de supetão, foda-se a vertigem que vem disto. Estou a salvo... Também não estou mais sozinho...
            Avisto pessoas.
            Pessoas!
            – Socorro! – grito a elas, indo a elas. – Alguém me ajude!
            Mancando, vejo que me locomovo numa calçada. Há prédios nos arredores. Esse lugar me é familiar.
            – Oi, vocês aí! – digo a um grupinho.
            É a cidade onde eu moro. Olho para trás só para me certificar de que nenhum animal carnívoro faminto está na minha cola. Olho para baixo para averiguar se há ou não buracos na calçada. Parece ser mesmo a minha cidade onde eu desemboquei com violência a partir do surreal.
             – Oi! – falo, agora em frente ao grupinho de pessoas. Arfo. Estou todo rasgado.
            São dois homens e três mulheres conversando. Fora eles, não observo mais nenhum ser humano aqui.
            – O que está acontecendo? Vocês viram a partir de onde eu cai? – pergunto. – Eu surgi do nada, foi estranho.
            Os cinco indivíduos conversam, me ignorando.
            – Olá?
            Encaro um deles, mas ele não desvia o olhar para mim e dá risadas de uma piada que uma loira bonita contou. Sorrio um pouco, porque foi uma piada boa mesmo.
            – Nossa, que engraçado! – dirijo-me à loira, tentando ser amigável.
            A loira não me olha e todos continuam me ignorando. Fico meio sem jeito e saio de perto à francesa, coçando a nuca pulsante. Ao virar, surge um idoso em minha frente e eu dou uma topada com ele. Quase o derrubo no chão, mas o seguro para que isso não aconteça. Fico totalmente sem jeito.
            – Desculpa, senhor. – digo, franco. – Eu não vi o senhor aí.
            Ele me olha com seus olhos úmidos por trás das lentes garrafais dos seus óculos, e não diz nada. Prossegue com seu caminho, me deixando para trás de maneira indiferente. Acompanho-o com a cabeça, perplexo, parado, e ele vira uma esquina. Quando viro meu corpo novamente, em sentido aonde o idoso veio, há um homem parado com as mãos na cintura, me encarando.
            Eu sinto que ele me enxerga, e por isso me apresso até ele.
            – Oi, senhor! – estendo o braço para cumprimentá-lo. – Meu nome é Francisco e eu estou meio perdido. Você poderia me dizer onde estou?
            Seu olhar me atravessa como se eu fosse um inútil indigno de ser respondido. Meu braço pendente é completamente ignorado, e o cara faz um sinal de negação com a cabeça, como se eu tivesse feito algo errado.
            Estou ficando nervoso.
            – Senhor, eu fui educado com você, o que foi que eu fiz pra você?! – pergunto, preocupado. – Só me diga se não está sentindo um clima meio diferente no ar, um peso, não sei, algo esquisito, porque está muito estranho o meu dia hoje. – digo. Ele não responde. Insisto. – Sério, me ajude um pouco, estou precisando de ajuda. Depois eu paro de incomodá-lo, eu prometo. Só quero uma informaçãozinha, coisa rápida.
            – Suma daqui. – ele profere assertivo, com tom de desprezo.
            Um calafrio percorre meu corpo. O sorriso esmaece em meu rosto.
            – Mas eu não fiz nada... – digo para mim, pois o homem se incomoda e volta para dentro do barzinho.
            Sinto-me sozinho. Solitário. Solidão. Só.
            Viro à esquerda e vejo pessoas do outro lado da calçada. Estão paradas em frente a uma livraria genérica sem nome. Riem demais consigo mesmos. Dou um passo em direção a eles, mas hesito muito e por fim não atravesso a rua. Sinto que é muito errado ir atrás deles e perturbar seu lazer. Será que estou cego pela ansiedade e estou fazendo algo errado? Estou sendo ofensivo? Sou impertinente?
            – Você é muito inseguro. – uma voz feminina diz, ao meu lado. – Saia daqui.       
            – Mas... – digo, engasgando as palavras e querendo chorar. Ofendido. – Eu não fiz nada...
            A mulher se aproxima de mim, altiva. Encara-me por cima.
            – Ninguém gosta de gente que nem você. Você é muito ansioso. Saia daqui.
            Uma lágrima sai pelo meu olho. Sinto-me humilhado. Sinto que a perdi antes mesmo de tê-la perdido, porque minha mera existência é inconveniente. Giro o corpo para me afastar dela, com o choro querendo explodir, e de repente várias pessoas estão vindo para cá, caminhando em ritmo normal do cotidiano. Estão apressadas e acabam me atropelando. Sou jogado para um lado pelo fluxo. Um fluxo contrário aparece do nada e me joga para o outro lado, me esmagando em um sanduíche de pessoas. Ninguém liga para o que estão fazendo comigo. Estou precisando de carinho...
            Buzinas do dia-a-dia brotam no ar a partir do nada, e um vozerio urbano se adensa.
            Alguém me joga dentro de um beco e eu caio deitado. Aponta-me o dedo.
            – Cale a boca! – grita com ódio.
            – Por fa-favor, não brigue comi-comigo... – digo, a face cheia de lágrimas pesadas e aflito amargamente. – Eu só quero um pouco de atenção... Eu sou caren-carente... Não faça assim comigo...
            – Você é um bosta! – o homem me mete um chute na barriga. Perco o fôlego e me retraio em mim. – Ninguém quer saber de imperfeição! Você está manchando essa sociedade! – agarra-me pela gola e atira-me em meio às latas de lixo, que me cobrem de porcarias fétidas, restos de frutas podres, fraldas usadas, absorventes usados, restos de comida, papel higiênico usado demais, dentre outras tranqueiras. – Fique aí, onde você pertence, seu lixo! – cospe em minha cara. Choro se confunde com chorume e saliva alheia. O homem levanta a mão, ameaçando me dar um tapa humilhante e subjugador, mas eu me encolho contra a parede e ele ri. – Patético...
            Ele sai dali sem dizer mais nada. Sem dizer desculpas. Todo cheio de pompa e convicto de que fez a coisa errada. Levanto-me aos prantos, todo machucado e cheio de dores de todos os tipos e volto à calçada movimentada. Absolutamente todos ignoram minha presença. Não posso contar com ninguém. Meu coração foi ferido. Fui excluído só porque, no fundo, não sou impenetrável que nem eles, inabalável que nem eles, alegre e autossuficiente que nem eles, egoísta que nem eles, virtuoso que nem eles... Sinto solidão em meio às pessoas. Aos seres humanos...

Aos seres desumanos...

domingo, 29 de outubro de 2017

Efêmero

Um sopro de ar fresco na narina;
Vindo do nada, bem-vindo à minh’alma.
Renova a vida, rompe minha casca,
E deixo de ser aquela lagarta...

Minhas asas florescem, assim posso
Nadar em seu vento, em sua brisa.
Surgiu-me súbita assim, para mim...
Fez-me tua borboleta: Guia-me.

Sem ti não voo e sem ti não vou;
Pois tua essência no ar me sustenta
E eu era tão fechado em casulo;
No escuro antes de te conhecer.


Contigo eu posso ser, então crescer.
Neste lapso período contigo
Meu eu ganhou cores, e isto é lindo.

De repente perdi o rumo. Só
Porque eu fiz uma guinada errada,
Num efeito borboleta desabo.

Senti o voo, senti o calor,
Levitei no quente escoamento
E no vácuo perdi todo o valor.

As cores ficam tênues e eu caio...
Num baque surdo estatelo no chão.

Então teus ares volvem a soprar,
Asas novas me revolvem, no ar.

De supetão eu perdi tudo. Só.
Sem fôlego, meu ser dá nó, definha...

É tão efêmera a vida das borboletas.

domingo, 22 de outubro de 2017

Em busca da felicidade

25 de setembro de 2017, segunda-feira: Foi um dia bastante comum. Tomei meu desjejum, fui trabalhar, trabalhei, sai do trabalho, fui na academia à noite... Eu não tenho costume de ir treinar minha bunda no período noturno, erguer os pesos para tonificar minhas pernas e braços gostosos numa noite. Prefiro ir cedo, quando é mais calmo e todos os equipamentos estão sempre disponíveis para eu usá-los ao meu bel prazer – contudo, de acordo com a ficha que a instrutora me fez. Acontece que na noite anterior, em pleno domingo, meus amigos me chamaram de última hora para tomar um porre daqueles e eu me encontrei indisposto para sair da cama de manhã. Precisei dormir bastante, porque o trabalho a tarde seria puxado.
                Tudo bem, até aí estava tudo beleza e joia. Bem supimpa, um dia bastante normal de ressaca... Só que se eu não tivesse decidido ir à academia no período noturno, num belo efeito borboleta, eu não teria encontrado ela...
                Na verdade eu a notei quando fui treinar meus peitorais deliciosos, e ela se estabanou e acabou derrubando algumas anilhas pesadas no chão. Foi engraçado, eu dei risada, ela deu risada, todo mundo parou para ver a patetada. Os homens mais marombados foram cheios de pompa ajudá-la e prestar o cavalheirismo. De repente toda a testosterona do lugar se concentrou em uma única singularidade em torno da beldade... Mas foi eu quem a avistou primeiro, não eles...
                Enfim, foi um dia normal com uma noite anômala.
                Eu não sei o nome dela. Sou muito tímido e não criei coragem para perguntar.
                Doravante, me referirei a “moça” quando eu quiser chamá-la ao meu relato.
                Isso não é um diário, isso é uma pesquisa com uma finalidade bem definida. Decidi monitorar meus passos e ir a fundo nesse caso, pois quero descobrir quem essa mulher é.
                “Referirei” é uma palavra tão feia...

26 de setembro de 2017, terça-feira: Sonhei com a moça. Foi um sonho leve, nenhum daqueles que me faz eu me apaixonar perdidamente na outra manhã. Até que acordei cedo – e sem ressaca –, todavia optei por dormir um pouco mais e deixar para ir à academia de noite. Eu achei a moça muito interessante, e para ela ter feito sua breve e intensa aparição em meu ambiente onírico, isso já diz muita coisa sobre ela.
                A moça não foi à academia. Risquei das possibilidades a terça-feira de noite, pois todos seguem uma rotina, pois o ser humano é assim, pois quem não toma as rédeas da própria vida nesse mar infindável de informações que é a sociedade logo perde o controle de si mesmo.
                O trabalho foi normal à tarde. Bem de boa. E o meu café foi banana amassada com canela e farinha de linhaça. Ok.

27 de setembro de 2017, quarta-feira: Não sonhei com ela, eu acho. Na verdade, enquanto eu comia minha banana amassada com canela e farinha de coco, eu analisava os dados que coletei até então do modo de vida da moça, e acabei por esquecer o que eu sonhei. Enfim, o sonho é irrelevante...
                Matutei, mastiguei e levantei a hipótese de que, possivelmente, provavelmente, a moça alternava suas noites de academia para não cansar muito seus belos músculos – porque ela é bem baixinha e parece frágil. Deste modo, decidi novamente ir à academia de noite, me torturar naquela trupe de bombados – realmente odiei treinar com o lugar cheio, mas estava disposto a fazer esse sacrifício.
                Novamente, nada dela. Minha hipótese foi pro espaço.
                Ah, e tive alguns pequenos impasses no trabalho, mas nada assustador.
                Aliás, eu trabalho em um escritório de contabilidade resolvendo os pepinos que o meu chefe me arranja... E isso é irrelevante.

28 de setembro de 2017, quinta-feira: Nada da moça à noite. Meu raciocínio estava falho. Talvez ela não vá todos os dias à noite... Quem sabe ela vá de manhã, também, nos dias que não vou.
                Tudo bem, comi banana amassada com farofa – sim, farofa de por em carne, porque eu me estabanei.
                Toda vez que eu faço uma trapalhada há um gatilho na minha mente que faz com que eu lembre daquela moça linda que eu só vi uma vez e que mesmo assim já deixara uma marca em minha vida insignificante... Linda. Demais.
                Dia normal no trabalho. Aliás, tive o meu melhor desempenho.

29 de setembro de 2017, sexta-feira: Nada da moça à noite. Droga.

02 de outubro de 2017, segunda-feira: Novamente de manhã encontrei aquela linda. Isso provava que ela seguia uma rotina, só ainda não a identifiquei. Ela passou algumas vezes perto de mim e percebi que ela trocou uns olhares discretos comigo. Comi banana no café, mas meu estômago estava roncando. Fiquei sem energias e minhas mãos tremiam além do normal no supino, possivelmente por causa da alimentação insuficiente de antes, provavelmente por causa dos olhos castanhos claros mesmerizantes da sereia bípede. Meu trabalho se misturou com o encanto dela e nada mais tinha importância a não ser seus lábios nos meus.
                Ela foi embora e eu parei meus exercícios de prontidão na metade do total das séries predestinadas ao exercício de ombro que marcava exatos três quartos da ficha  destinada àquele dia. Sai da academia e fui embora... Ela ia no mesmo sentido que eu deveria ir, a pé também, então eu meio que a segui, querendo ou não. Obviamente que eu queria segui-la, não por mal, mas para poder saber quem ela era. Só que ela estava tão longe que nem percebeu que eu estava atrás. Virou em uma esquina qualquer e apertei o passo, sem parecer um maluco, mas sem perder a oportunidade de ver até que ponto ela continuaria naquela nova direção. Quando alcancei a esquina que ela virou, não mais a vi... Isto é uma informação valiosa, pois me afirma que depois daquela esquerda a casa dela não fica tão distante da esquina.
                Bom, bom, muito bom.

03 de outubro de 2017, terça-feira: Nem perdi meu tempo indo à noite na academia, pois sabia que ela não iria, pois tem cara e jeito de ser uma mulher metódica. Portanto, fui de manhã, período em que talvez ela pudesse ir, pois quando eu seguia a rotina frequentava o lugar nas segundas, quartas e quinta-feiras cedo.
                Eu me enrolei bastante nos exercícios e levei o dobro do tempo necessário para fazer todos, na esperança de que ela de repente aparecesse lá. Fiquei vigiando a porta de entrada toda hora, e toda hora que alguém entrava meu coração dava um pulo...
                Mas eu não a encontrei hoje de manhã.
                O trabalho foi frustrante e esqueci de tomar meu desjejum. Comi um mega sanduíche super nada saudável assim que coloquei o pé direito pra fora do escritório chato e opressor.
04 a 06 de outubro de 2017: Na quarta-feira eu fui no meu horário convencional, cedo, porque eu já sabia que não encontraria a moça de noite neste dia da semana. De qualquer modo, me assegurei de que ela seguia mesmo uma rotina e passei a pé, como se estivesse de passagem querendo nada com nada, na frente da academia, porém nenhum sinal dos seus longos cabelos ombré lá dentro.
                Na quinta-feira também fui cedo e dei uma passada despretensiosa à noite. Na sexta-feira fui treinar no período de manhã, bem de boa, e não a encontrei de novo. À noite, mesmo sabendo que ela não iria, decidi treinar de novo (duas vezes no mesmo dia), só na expectativa de que seu perfume suado passasse por aquele recinto como um anjo enviado por Deus...
                Bosta nenhuma. Nada dela e quase xinguei meu chefe no trabalho. Comi uma porcaria de manhã e sai da dieta pela tangente brutalmente. Deve ter sido um bolo recheado que nem lembro de ter comprado. Tanto faz.

07 de outubro de 2017, sábado: Claro! Acordei no meio da noite para ir ao banheiro, às quatro em ponto da madrugada, como meu relógio biológico sempre me obriga, e tive uma epifania: Talvez a moça fosse hoje de manhã, visto que a academia está aberta. Fiquei entusiasmado com minha ideia genial e coloquei o despertador para as sete horas em ponto, acordei e cheguei até antes dos instrutores no local, dei bom dia para eles e fui lá treinar minhas coxas e nádegas torneadas.
                Cadê a moça?!

08 de outubro de 2017, domingo: Eu já sei mais ou menos onde ela mora, então decidi, depois do almoço, ir perguntar aos vizinhos se eles não a conheciam, para eu saber seu nome. Peguei o carro com a banana de sobremesa na mão  e fui às redondezas de sumiço da minha diva. Puxando o freio de mão pensei no que falar aos vizinhos...
                Não consegui pensar em características que a descreviam! Embora eu tivesse a visto pouco – exatas duas vezes –, eu não consegui pensar em detalhes estéticos que a diferenciassem das outras. A moça não possuía nada de relevante, e talvez fosse por isso que fosse tão atraente. Era um semblante bastante genérico – genérico até demais –, de modo que desisti da ideia do interrogatório à vizinhança e descartei metade da banana na rua, por pura frustração.

09 de outubro de 2017, segunda-feira: Acordei super empolgado, comi duas bananas – uma amassada com canela e farinha de alguma coisa e outra não –, e fui trabalhar muito feliz. Foi o meu melhor desempenho desde meu último melhor desempenho! Cumprimentei todo mundo, tratei meu patrão com respeito que ele merecia, tomei um cafezinho com os colegas e ri demais nos intervalos! Hoje eu encontraria novamente minha linda na academia, à noite, em meio à insuportável baderna de monstros inchando fibras musculares e metal beijando metal ou porcelana.
                E lá ela estava, minha claraboia numa caverna triste e desolada cheia de morcegos que cagam em minha cabeça. Não usa nenhum tipo de anel nos dedos anelares, então talvez não seja comprometida. Entretanto, possa optar por não usar o anel na academia pelos motivos óbvios de não ser muito prático e machucar os dedinhos pegar numa barra com peso pesado. Linda, bela, estonteante! Sorri para ela, mas acho que ela não viu. Sorri outra vez, mas não viu novamente. Troquei alguns olhares, mas ela parece muito tímida. Fui para casa contente e dormi como um bebê.

10 de outubro de 2017, terça-feira: Tive um sonho muito apaixonante com a moça e acordei inflamado em desejo. Foi um dia especial o de hoje, pois, pela graça do destino, no caminho ao meu trabalho, encontrei a coisinha do meu coração andando na calçada nas proximidades do shopping, toda arrumada e maquiada, em torno de uma hora e meia da tarde. Deduzi que talvez ela trabalhasse lá a tarde, e isso já foi uma outra pista bastante boa. Outro dado muito legal e conveniente foi que ela não usava nenhum anel em suas mãos, confirmando que ela não namora, nem é noiva, tampouco casada.

11 de outubro de 2017, quarta-feira: Estacionei o carro e esperei ela passar perto do shopping, no começo da tarde. Almocei mais rápido que o meu comum para poder quebrar minha rotina e chegar um pouco antes naquele local, com o carro, para coincidir com a rotina dela. Certeza de que ela trabalhava lá, certeza! Ninguém se arruma tanto para ir ao shopping!
                Mas ela não passou!
                Meu trabalho foi um pouco abaixo da média... Fiquei um pouco abalado com a quebra de expectativas...

12 a 13, 16 a 20 de outubro de 2017: Passei novamente, todo dia, no começo da tarde, em torno das uma e meia da tarde, no bendito shopping, e não avistei ela nenhuma vez. Estive errado, ela não trabalhava lá, nunca mais a vi. Ela não foi dia 16 pela parte da noite na academia, e meu final de semana e semana posterior inteira foram um lixo. Eu me estressei muito no trabalho e avacalhei de vez com minha dieta, tanto no desjejum, quanto no almoço e mais tarde no jantar. Droga!

21 e 22 de outubro de 2017, final de semana dos infernos: Meus amigos me chamaram pra beber, mas eu não estava no clima...

23 de outubro de 2017, segunda-feira: Briguei feio com meu chefe e pedi demissão na merda do meu emprego. Joguei uma casca de banana na frente dele quando ele estava vindo me encher o saco, só para vê-lo escorregar, por pura maldade e descontentamento com minha vida. Foi engraçado, mas eu não tive vontade de rir. Piquei a mula e fui à noite na academia.
                Lá ela estava! Troquei muitos olhares com ela e me deleitei com sua beleza! Até esqueci de fazer um exercício. Ela sorriu para mim! Ela gosta de mim! Tenho chances, isso aí!
                Dormi que nem um anjo numa nuvem fofa!

24-27 de outubro de 2017: Decidi ir na parte da tarde à academia durante todo o restante da semana, pois antes eu não podia porque trabalhava. Não encontrei ela nenhum dia. Será que ela só ia uma vez por semana? Que desleixada, em.

30-31 de outubro, 1, 2 e 3 de novembro: Fiquei plantado em frente à academia só comendo barrinhas de cereais e tomando café na minha garrafinha térmica, dentro do carro, para monitorar melhor a vida dela. A moça realmente só foi segunda-feira à noite. Então esse é o dia! Na próxima semana vou fazer duas fichas de uma só vez no período noturno para aumentar minhas chances de ver ela! Sou muito inteligente e dedicado, ela vai me amar!

6 de novembro: Segunda à noite, faço bastante exercício e quase morro de fadiga. Linda, linda, muito linda. Adorei ela. Adoro ver ela. Adoro sofrer por ela. Por favor, me ame! Eu tenho muita coisa a oferecer, eu te amo demais, moça! Converse comigo, você parece ser interessante. Não tem nada de notável na aparência, então deve compensar com um conteúdo massa por dentro! Tesão! Que bunda! Que pernas! Ma-ra-vi-lho-sa, elixir dos deuses, pétala da primavera, pôr-do-sol em Vênus, puta que pariu que corpo gostoso!

Terça à sexta, sábado e domingo também: Fiquei em casa assistindo séries e pensando como fazer a moça me notar. Tive várias ideias, vou pô-las em prática a partir dessa nova semana que está florescendo. Eu vou conseguir conquistá-la! Seremos muito felizes juntos e nossos filhos terão meus olhos azuis e a beleza mística dela! Nossa, vai ser demais... Vou dormir e sonhar com meu amor, beijos pra quem fica!

Segunda noite:  MERDA! Ela entrou na academia de mãos dadas com um fortão! UM CARA FEIO E RIDÍCULO, SEM CONTEÚDO E DESINTERESSANTE! Ela estava usando um anel! POR QUE ELA usa anel NA academia²?? Isso machca a mão!!! Por que!! E o pior de tudo, o homem é um daqueles primatas que a ajudou a pegar a anilha no chão quando ela a derrubou lá no dia 25 de setembro de 2017, eu sei que é esse dia porque esse dia marcou a minha vida e eu tenho todos os detalhes guardados em minha memória fotográfica infalível meu Deus o que eu faço agora???w Ela está COMPROMETIDA com esse VAGABUNDO!!! MAS ELA SORRIU PRA MIM NO DIA 23 DE OUTUBRO DE 2017!!!!.... EU VOU MATAR ELE!!! MATAR, MATAR MATAR MATAR MATAR!!! HAHAHAHAHAHA!! Não... EU VOU MATAR ELA!!! ISSO!! Meu coração está em pedaços, quero chorar muito muito, MAS MUITO mesmo!!! :’(

Cedo, com banana  com casca na mão: eu podia ter perguntado o nome dela no primeiro dia... eu sou um fracasooo.... vou me matar... ninguem vai se importar com minha morte... cansei de bananas...
                Dor, muita dor e vazio



domingo, 8 de outubro de 2017

Bonecos de cera

Aquela menina é muito linda. Eu acho que me apaixonei por ela. Parece ser boa gente, pois tem um sorriso perene no rosto que emana sinceridade com uma perfeição tocante. Eu sei que perfeição não existe, mas tudo acima do padrão que estabeleço de belo por definição já o é sublime ao extremo. Perfeição é o corolário das minhas expectativas. Meu padrão de aceitável está posto em um nível bem baixo, de tal modo que não exijo muito dos meus amores platônicos, pois eu sou um homem simples. Talvez inseguro. Não sei. Não importa.
            Nem sei mais o que estou pensando. A beleza dela é arrebatadora e eu preciso pensar em algo rápido para chamar sua atenção.
            A moça está vindo pela calçada, sozinha, toda sorrisos e radiância. Covinhas em seu rosto de pele lisa ressaltam sua pureza. Quem sou eu para merecê-la? Ela está chegando.
            – Oi, bom dia. – cumprimento-a com cordialidade. – Tudo bem?
            Ela passa batido por mim, sorrindo. Não me ouviu, não me percebeu. Tenho certeza de que minha voz foi alta e audível. A garota dos meus sonhos está indo embora e talvez este dia seja a minha única oportunidade para atrai-la. Preciso, ao menos, chamar sua atenção, custe o que custar. Uma pequena atitude impensada, uma decisão mal tomada, irá mudar completamente o rumo de nossas vidas daqui em diante. Um laço se formará caso eu escolha a persona correta para evidenciar aos seus olhos celestes límpidos.
            Corro até o outro lado da rua, pulando por cima de carros estacionados e antes quase me estatelando em um capô em movimento. Buzinas estridentes surram meus ouvidos internos, mas isso não importa, pois tudo valerá a pena. Entrando na lojinha de avatares “Perfil Certo”, pesquiso rapidamente com os olhos por um rosto atraente. Percorro as prateleiras com destreza e aperto o passo na linha tênue e iminente entre um passeio tranquilo e uma corrida enlouquecida pela vida. Meu coração estoura no peito quando eu encontro a face masculina mais bela que achei.
            – É lindo demais... – digo em voz alta, pois quero que todos percebam que eu fui privilegiado por ter contemplado tal beleza.
            Os transeuntes não ligam para minha opinião, mas alguns poucos desconhecidos passam com o polegar levantado e cara fechada ao meu lado. Esses poucos polegares erguem o meu ânimo e eu grito bem alto:
            – É esse o rosto que eu vou comprar! – faço questão que me ouçam até de fora da lojinha. Quem sabe o amor da minha vida ouça minha confiança, lá da calçada. – Pessoal, com isso eu conseguirei conquistar a garota mais bonita que eu já vi!
            Agora são mais polegares que se levantam e se somam à bajulação, enquanto outros nos cantos se tornam irritados e me xingam e xingam tudo e desferem murros na parede, e uns dum terceiro tipo desabam no chão e choram numa crise existencial escandalosa.
            Levo um tombo espiritual quando noto o preço do rosto em minhas mãos.
            É muito, muito caro. Não tenho cacife para bancar uma coisa tão custosa assim. Tampouco tenho limite no cartão de crédito para fazer uma aquisição dessas. Contudo, minha vida depende desse semblante perfeito, sem espinhas, sem cicatrizes e com poros fechados. Preciso pensar em algo.
            – Já sei! Tive uma ideia brilhante! Eu sou demais! – deixo bem claro que eu sou um gênio, e com essa autoafirmação me sinto melhor.
            Tiro a roupa no meio da loja e fico nu, com minha genitália pequena pendendo inutilmente. Tento virar uma estrela e falho miseravelmente, chocando de costela no azulejo do chão. Minha pança faz um barulho de baleia levando tapa quando beija a cerâmica gelada e lustrosa. A cena é cômica e sinto pena de mim mesmo. Acho que me defequei um pouco no calor do momento, e agora várias pessoas anônimas, cujas faces estão de repente cobertas por véus negros, apontam para minha situação lamentável no chão. Estão rindo, estou as entretendo. De um instante ao outro, com minha humilhação, minha máscara está paga e agora posso vesti-la. Levanto-me, ainda sem fôlego, e visto minhas roupas, cubro minhas vergonhas. Não preciso passar no caixa, pois agora sou famoso, sou conhecido por todos daqui e fiz a vida deles melhores por terem testemunhado tamanha patetada.
            Saio pulando da loja, agora um outro homem. Meu rosto novo e lindo.
            Persigo com obsessão minha desejada, que já está duas quadras à frente, iluminando e iluminada pela sua própria beleza mesmo de longe e de costas. Ela vai ser minha!
            – Ela vai ser minha! – corro.
            Corro, corro, ajeitando minha máscara.
            Corto a frente da moça, ajeito a postura, enfuno o peito, ajusto meu timbre de bazófia, respiro fundo e confiante, e digo a ela:
            – Oi, bom dia.
            – Ooi, tudo bem com você? – ela responde de prontidão, me aprovando.
            – Estou sim. E você? – prossigo a conversa naquele tom firme.
            – Também estou. – ela está sempre sorrindo. – Que bom, né?
            – Sim. Achei você muito bonita, e aposto que deve ser bem interessante, também.
            – Ah, sim. Obrigada.
            Ficamos nos encarando. Meus olhos castanhos ordinários e os azuis abençoados dela. Ela é tão linda. Não acredito que vou consegui-la. Estou pensando nos nossos filhos. Eles serão muito bonitos e terão nomes de anjos. Não acredito que eu, justo eu, esse cara feio, conseguirá uma moça tão elevada e bonita e sorridente e alto-astral. Seu perfil transparece alegria plena.
            Estamos em silêncio. Estamos parados no meio da calçada.
            Preciso pensar em algo.
            – Então... – digo, coçando a nuca, mas mantendo meu sorriso convidativo. – Como você se chama?
            – Clara. – responde, feliz.
            De volta, retornamos ao silêncio; e a culpa é toda minha. Não consigo sustentar essa conversa. Nunca fiz algo assim. Nunca conversei com uma moça.
            – Então... – digo, pensando em algo. – O que acha de nós...
            Meu peito arde e dele um jato de sangue espirra no rosto da mulher. Todavia ela é tão perfeita que tudo o que a toca não a suja. Realmente intangível. Linda, ainda sorrindo, mesmo depois de ter enfiado esta estaca no meu coração pulsante.
            Minha visão borra por trás do meu rosto bonito que vesti. Meus joelhos cedem e sinto que a energia esvai de meu corpo, logo a se tornar cadáver. Já deitado nas pedras pontiagudas da calçada, aos pés de Clara – muito perto deles, mas não permitido a tocá-los – meu último relance do mundo é o sorriso lindo e indiferente dela. Completamente desinteressada, ela passa por cima de mim como se eu nunca tivesse existido. Enquanto isso eu sofro, e comigo ela deixa toda a inconveniência para trás. Eu sou uma inconveniência para ela, devo morrer. Não tenho direito de existir, pois sou inseguro e insuficiente. Clara caminha, já na esquina e atravessando a rua toda altiva, fora da faixa de pedestres e sem ao menos olhar aos dois lados para checar o trânsito. Afinal, ela não precisa perder tempo com coisas triviais como estas, pois ela é impossível e está correta. Eu estou errado e deixarei este mundo sabendo que estou errado e orgulhoso em saber que não incomodei Clara e que ela terá sua chance de ser feliz com outro cara no seu nível.
            Adeus, minha deusa. Obrigado por me dar uma chance.
            – Desculpa por ser chato... – digo, cuspindo uma torrente de sangue arterial claro.
            E é no último instante de vida que eu me recordo do rosto sorridente da minha amada. E é tarde demais, quando estou deixando de existir e deixando tudo para trás, perdendo todas as oportunidades e todas as oportunidades de ter oportunidades, que me sinto arrependido.
            Minha vida passou tão rápido e eu a desperdicei. Pra quê?
            Fiz tudo por Clara.
            E a imagem de seu rosto feliz com covinhas assalta minha mente.
            Clara, tão perfeita e tão fria quanto um boneco de cera.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Nada é mais real/Nada mais é real

Fechando os olhos, navegamos no espaço;
Juntos, nós dois estacionamos no tempo.
Nós nos apartamos em nenhum momento:
A menor distância existente é esse beijo.

Abrindo os olhos, não saímos do lugar,
Mas um melhor lugar para se estar não há,
Do que envolvido no domo do seu abraço
Aprendendo a volitar sem dar nem um passo.

Tudo é relativo, mas nosso amor é absoluto;
Tudo é difícil, mas nisso há certeza de clareza
De que nada mais importa no multiverso inteiro.

Nunca foi mais fácil estar resoluto
De que não há nada de maior pureza
Do que os versos das nossas bocas unas.

Só nós entendemos a gravidade da situação
Da eventualidade de eu soltar a sua mão.

A realidade arredor fica distorcida...
Meu imo ganha peso e parte contigo...

A saudade aperta no pulmão e me arrebenta na metade...

É um adeus para sempre até amanhã...
Estou sozinho novamente

Porém jamais solitário

Ligue pra mim

É um suplício


Um segundo sem você é um desperdício

Você é minha luz, venha direto a mim
Não deixe que o caminho entorte seu trajeto
Por favor, deixe-me ser seu fim,
Seu ponto final, seu destino

Não deixe que lhe desviem e mudem sua cor
Sem você não tenho chão nem teto
Estou doente de dor

O que posso fazer pra passar o tempo?
Tudo discorre de modo tão lento

Venha rápido; necessito-lhe, pra ontem

...

terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Ser e estar

– Aquele carro ali. – aponto ao carro ali. – Eu sempre quis ter esse carro. Não sei a que intuito sirva um carro, mas sei que eu acho que eu um dia quis ter esse treco aí. Tive oportunidade de trabalhar bastante pra juntar o montante de unidades monetárias necessário para adquiri-lo, mas eu não dei valor para as possibilidades da vida. – converso comigo mesmo. – Que pena. Cansei de conversar sozinho.
Ando pela rua de asfalto despedaçado pelo verde, o Sol escaldante torrando minha nuca. Tudo é tão silencioso que nem sei descrever direito. Falta dinamismo, eu acho. Nunca usei essa palavra, “dinamismo”, na vida. Parabéns pra mim.
Pego um pedaço de pau qualquer por aí e o balanço, gastando energia inutilmente. Energia é um bem precioso hoje em dia, pois todas as coisas fáceis de comer estão podres. Mas, sei lá, não tem muita coisa a se fazer, então qualquer coisa que gaste energia é bem vinda. Nem sei por que insisto em continuar vivendo, também. Tudo é tão chato.
            Fico pensando bastante, porque não há muito a fazer. Fazer coisas não tem graça, sei lá por que. Talvez o sentido da vida no passado fosse realizar ações para os outros verem, sentirem com suas sensações organolépticas e responderem com reações. A vida podia muito bem ter sido apenas uma causalidade de eventos, onde eu faço isso e o outro faz aquilo em resposta a isso que eu fiz. Mas o que são “os outros”? Ué. Já nem sei mais o que estou pensando. Deve ser esse Sol na nuca que frita meus miolos. Nada faz sentido.
            – Vá se foder. – digo, sem entusiasmo, e arremesso o pedaço de madeira.
            Até morrer não faz sentido. Comer também não faz sentido, mas a fome dói. Por falar nisso, preciso caçar a janta antes que escureça. Eu bem que poderia não ter arremessado aquele pedaço de pau pra longe. Teria sido uma ferramenta conveniente. Devo estar ficando inconsequente, agora que não existe coisa alguma para me julgar e retrucar na minha cara o quão errado o que eu faço é. Cara, eu já nem sei por que estou filosofando, ou se o que filosofo todo dia tem alguma lógica. Pra que serve a minha filosofia se não há outro para rebater com argumentos e tentar, junto comigo, desbravar teoricamente a vida? Filosofo porque tenho que exercitar a comunicação e não esquecer que as palavras um dia existiram e foram úteis. Quero preservar o legado de algo que ainda reside em mim, por algum motivo, mesmo que eu não tenha esperanças de que isso venha a ter serventia no futuro.
            – Algum animal aí quer ser comido? – grito, fazendo concha com as mãos. Meu timbre bate e rebate nas ruínas da sociedade, entrando e saindo de edifícios sujos e rachados pelas intempéries. – Quem quiser levante a mão. – complemento. – Digo... Levante a pata! – corrijo-me, a troco de nada. – Levante a mão só se for um macaco, tudo bem?!
Será mesmo que não tenho mais esperanças? Acho que tenho sim. Que legal, estou mentindo pra mim mesmo, e ainda por cima estou confuso. Não sei mais o que eu quero, e não se o que se passa pela minha cabeça é verossímil, porque não há nada que me diga que estou errado. Logo, tudo o que eu falar é lei. Sou a verdade. Tudo o que eu fizer está certo. Acho que foram só esses tais de “outros” sumirem do mundo que todos os conflitos cessaram e tudo o que existe se unificou em mim. Eu sou o rei dessa porcaria toda. Monopolizo toda essa bosta e bosta nenhuma ao mesmo tempo.
Meu Deus, eu só penso merda.
– E só falo merda, também. – digo a um coelho que come grama.
Que Deus?
O coelho não é arisco. Isso significa que ele não me vê como ameaça. Nem sei por que eu me importo com isso. Mesmo assim, dou um chute nele e o faço voar pra longe.
– Por que está me tratando com indiferença, seu verme? – aponto pra ele. Corro atrás dele e piso em sua cabeça insignificante. – A única coisa que ainda faz sentido é sentir dor, e mesmo a dor eu tento evitar, porque eu quero comer.
Hoje em dia, o instinto se tornou obsoleto. Pra que sobreviver? O instinto é uma inconveniência. Talvez eu inconscientemente preserve o instinto para não me esquecer de como ele é. Algum motivo me diz sem realmente dizer para eu preservar o que ainda há dentro de mim. Ou talvez eu só pense demais, mesmo.
– Trá lá lá, que vontade de chorar! – entoo, numa melodia improvisada. – Tré lé lé, estou  vivo e em pé! – deposito o cadáver do coelho por cima do ombro e retomo minha caminhada solitária sem rumo. – Tró ló ló, quanto pó nesses prédios. – preciso cantar para preservar a musicalidade desse planeta. – Tri li... Vixe... – dou passos, e com a mão no queixo e cenho franzido fico bem pensativo. – Estou esquecendo a ordem das vogais. E estou esquecendo como rimar.
– Eu também.
Paro de andar.
Alguma coisa esquisita quer sair do meu peito. É uma dor? O que foi isso?
– O que foi isso? – pergunto.
– O que o quê? – alguma coisa acontece em alguma direção.
– Isso não é um eco. – afirmo. – O que foi isso? – giro a todos os lados, com a coisa dentro do meu peito acelerada e respiração esquisita.
– É uma voz. – a voz responde, agora emanando pela direita. – Uma voz feminina. – viro pra direita.
Fico em silêncio por um tempo tentando compreender o troço direito. O mato alto na minha frente começa a se mexer de um jeito que o vento não faria. Só ouço esse barulho de grama. Aliás, minhas orelhas estão esquisitas, porque fica um negócio dentro delas pressionando eu por dentro e fazendo “tum tum, tum tum”. Não lembro o que é, mas tenho a sensação de que algum dia eu já tive essa sensação. Inclusive, faz tempo que eu não tinha sensação nenhuma além do tédio. Estou me desconhecendo.
– O que você está sentindo? – a voz, agora mais alta, pergunta. – Nossa, que mato alto. – o mato diz, se agitando mais perto de mim.
– Ué. – coço a nuca. O Sol está na minha testa. – Sei lá. Acho que fome. Só que nunca senti fome no peito.
– Credo. – a voz do mato responde. – E você, o que está sentindo? Digo... E eu? Digo... – o mato para de se balançar. – Estou tão acostumada a falar sozinha que nem sei mais falar.
Silêncio.
O mato volta a se mexer. Coço a orelha e troco o coelho de ombro. Minha garganta também pulsa, assim como o resto do meu organismo. Estou com uma tremedeira estranha, a qual aumenta na medida em que o mato vai se abrindo mais perto. Bocejo. Por quê?
Um ser bípede sai de dentro do mato, vestindo um maltrapilho que nem eu. O ser para onde está e ficamos uns dois minutos nos averiguando visualmente, mantendo a distância. Sinto algo que não sentia faz tempo, e acho que era a curiosidade. Ainda estou tremendo, mas parece que é bom, mesmo que seja ruim e que debilite as fundações da minha força mecânica. Verifico que a criatura possui dois pés, duas mãos, dois braços, duas pernas, uma cabeça, cabelo longo, dois olhos, e tudo mais igual a mim. Igual não, parecido.
– Você, por acaso, é um ser humano? – pergunto, rompendo o silêncio. O que é isso que eu acabei de falar?
– Decerto. – responde, um som doce sai de seus lábios. Acho que isso se chama “sinestesia”. – Uma ser humana. Sou um espécime fêmeo. Eu acho. – seu rosto se avermelha.
Humano? O que é isso?
– Seu rosto está vermelho. – aponto pras suas bochechas encardidas.
Ela põe as mãos no rosto, como se com o tato pudesse verificar as cores. Na verdade, ela pôs as mãos pequeninas na frente do rosto para escondê-lo de mim. Sei lá por que fez isso, mas nada faz sentido mesmo, então tanto faz. Ou será que faz sentido?
Ando sem querer para perto dela, enquanto ela ainda está com a face coberta. É uma ação involuntária essa minha. Paro bem perto dela, frente a frente, e desprezo o coelho sem graça e sem cabeça no asfalto partido. De repente começo a recordar uma miríade de coisas do passado. Palavras, significados, conceitos, histórias, etecetera.
– Qual é o seu nome? – pergunto, de cabeça baixa, porque ela é baixinha.
A mulher permanece parada por alguns segundos, com a cabeça baixa, porque não sei por que. Vagarosamente baixa as mãos e em seguida levanta a cabeça para encontrar meus olhos. No momento em que nos achamos eu tenho um espasmo nada a ver no meu corpo, como uma onda de sensações ao mesmo tempo novas e velhas que incidem todas ao mesmo tempo nas minhas tripas.
– Eu não lembro. – ela responde. – Ué. – morde os próprios lábios. – Qual é o seu nome?
– Eita. – respondo. – Sei lá.
Ficamos nos encarando por mais um tempo esquisito. O Sol está se pondo. Parece que não sou o último ser humano existente.
– Por que será que eu não te reconheci como um ser humano, também? – pergunto, intrigado. – Ser humano... O que é isso? Por que eu pensei nisso?
Nem sei por que foi que eu assumi tão de prontidão que realmente sou um dito “ser humano”.
– Perguntas difíceis. Não consigo pensar direito. – diz, pensando forte. – Estranho, eu sempre tenho várias palavras na cabeça e de repente, agora, sumiram. – olha para o lado.
Por um momento eu sigo a linha do seu olhar e olho pra trás de mim. Não acho nada de interessa, fico confuso tentando entender o que é que ela estava olhando de tão peculiar, mas daí me lembro de que isso é a “linguagem corporal” que antes havia quando haviam várias pessoas vivas. Na verdade ela não está olhando a nenhum lugar em específico, mas está tentando se lembrar de alguma coisa importante. Inconscientemente as pessoas faziam isso quando elas queriam se lembrar de alguma coisa importante: olhavam para o nada. Será que o nada tem alguma coisa interessante para nos dizer? Sei lá o que estou pensando. Quem sabe uma pessoa seja um exemplar de ser humano. Sou uma pessoa.
– Engraçado. – digo. – Já eu não consigo parar de pensar em ladainha.
Solto um barulho estranho pela boca. Logo depois, ela também solta barulhinhos parecidos.
Paro.
O que foi isso? Isso foi bom.
– Acho que você riu. – a moça diz. – E eu também ri. Acho que “risada” era algo que curava o tédio, ou a tristeza. Ou os dois.
– É mesmo. – digo, impressionado. – Lembro também que risadas eram o que faziam a gente sentir outra coisa. Um calor esquisito. Ninguém sabia o que era, na verdade, ninguém sabia definir direito. – olho para o lado. – Despertava um negócio bom e ruim ao mesmo tempo. Era um negócio “agridoce”.
Está escurecendo. Agora me recordei que o crepúsculo costumava ser uma coisa linda de se ver, colorida. Agora não é mais. É uma coisa monótona, porque não há mais poluição. Aprendi isso faz tempo, mas não sei mais ao certo o que “poluição” significa. Eu sei que eu sabia o que era, mas não sei o que era. Era um treco que deixava o céu colorido, só isso que eu sei. Acho que eu não a reconheci como ser humano porque eu mesmo não mais me reconhecia como humano. Eu entendia que eu era um humano, mas eu não compreendia o que significava ser humano. E eu não compreendia mais que eu era um humano porque não havia mais um humano para quem eu olhar e gerar as definições com base em outro exemplo concreto da mesma coisa. Deve ser necessário haver pelo menos duas de uma coisa para que essa coisa realmente exista no campo abstrato. Um é igual a zero... E dois é igual a infinitas possibilidades?
– Lembrei! – grito, minha boca fazendo força involuntária pra cima e pros lados, no que costumava ser “sorriso”.  – Risadas despertavam o tal do “amor”... Amor...
– Amor... – repete.
Não desfizemos contato ocular ainda. Bizarro demais. Mas é legal.
Amor... O que era isso? Amor. Amor...
Agora eu sei o que é.
– Amor. – dizemos em simultâneo.
Passo rapidamente a mão pela nuca dela e puxo com força sua cabeça para mim. Nossos dentes se chocam, mas não importa. Nossas línguas tentam se comer, por algum motivo, mesmo que essa ação seja a função dos dentes. Do nada, nós dois morremos.
Morremos?
Não.
Nascemos.
Não.
Renascemos.
Estou investigando sua boca. Parece que estou em outro lugar bem longe daquele em que eu estava antes de eu ter puxado violentamente a sua cabeça. Não sei se nos movemos realmente, porque estou de olhos fechados. Não me lembro de ter fechado os olhos. Ou será que já escureceu? Não pode, ainda sinto o calorzinho do Sol iluminando o meu corpo. Os nossos corpos. Ou será que não é o Sol? Estranho, porque o Sol esquenta a pele, e o que aconteceu é que meu estômago esquentou. É a fome? Estou comendo? Ah, não, é o coração que está quente. Pulsando. Sangue correndo pelo corpo.
Coração.
Eu lembro que isso era uma metáfora para o amor, mas não parece. Não sei como os primeiros humanos associaram o amor ao coração, sendo que o coração só serve para bombear sangue e as emoções são coisas intangíveis e não ficam realmente concentradas num só órgão, porém distribuídas por todo o éter do indivíduo. Sim, compreendo por que eles associaram o coração com o amor, porque é isso o que estou sentindo, mas a minha cabeça não consegue entender a conexão entre esses fatos.
A moça afasta os lábios dos meus, e por coincidência afasto os meus lábios dos dela. Será que foi coincidência mesmo, ou eu sabia que ela se mexeria, porque ela sabia que eu sabia que ela se mexeria? Foi bem surreal... Era como se nos entendêssemos. Como se fôssemos uma coisa só durante aquele beijo. Unos. Será essa a definição de amor? Tudo se resumir a uma coisa só? Amor é união.
– Humm... – gemo. – Isso foi bom.
– Sim. – ela sorri.
Seu rosto é a coisa mais linda que eu já vi na vida. Certeza. Seu rosto é amor.
Ficamos nos olhando, procurando vida um no outro através dos portais das pupilas dilatadas.
– Acho que isso é ser humano. – digo, também sorrindo.
– Sim. – ela sorri mais. – O ser humano existe para espalhar o amor.
– Sim. E nós podemos fazer tantas coisas juntos. – digo, com uma felicidade que não cabe em mim.
Minha felicidade transborda pelos olhos e pela boca e encontra a felicidade transbordante da mulher. As duas coisas abstratas se combinam entre nós numa metáfora poderosa, quando se beijam imaginariamente no ar. Felicidade mais felicidade é igual a êxtase. Amor é êxtase. Amor é várias coisas, porque dois representa o infinito. Amor atiça a curiosidade, a criatividade, a alegria, a humanidade.
– Eu lembro também que o ser humano gostava de outra coisa também. – digo, bastante revigorado do tédio que era minha vida. – Além do amor... Tinha outra coisa bem parecida com isso que era bastante importante, também.
– O que será que era? – pergunta, curiosa. – Sexo?
– Não, não, sexo é amor. Digo, amor é sexo. – corrijo-me.
Olho para o lado e cruzo os braços. Cruzar os braços auxilia a concentração na pesquisa de memórias, também.
– Lembrei. – digo, orgulhoso de mim. Isso é a “auto-estima” que eu recuperei. – Os humanos também gostavam da “morte”.
Automaticamente a minha mão se ergue e aperta o pescoço minúsculo dela com força. Sem querer, mas querendo, aperto bem forte mesmo o pescoço dela. Ela não move os olhos. Cravo meus dedos mais adentro da sua frágil pele, entornando algo roliço que há dentro da garganta. Está meio escuro, mas a pele dela está bem mais roxa do que antes. Circulação sanguínea localmente interrompida? Consigo enxergar com mais clareza agora porque me sinto mais vivo do que nunca. Mais vivo do que num beijo.
– O amor cega. – digo, sorrindo. – A morte esclarece.
Ficamos nos olhando, procurando vida um no outro.
– O amor cria dúvidas, a morte levanta certezas. – faço um discurso épico. – Nunca me senti tão bem! – ela nem se esforça para levantar as mãos e tentar tirar a minha mão do seu pescoço. – A morte é definitiva, é única, é só uma. O amor é um monte de porcarias abstratas que ninguém entende, tampouco entende ou consegue tocar com os dedos. O que há de mais concreto do que a morte?
De repente, seus olhos se arregalam. Sinto que ela sente uma coisa inédita que acabou de recuperar. Ela sente o medo. Mais precisamente, ela sente o desespero. Eu sei o que ela está sentindo porque esse é um momento bastante íntimo entre duas pessoas. Ao contrário do amor, isso daqui é uma coisa só e não pode ser várias. É quando duas pessoas se tornam uma só, quando, assim como no amor, eternizam um momento naquele dado instante. Do nada, suas mãos se erguem e freneticamente começam a bater em mim em qualquer lugar que alcança. Levo bofetadas na face, unhadas na orelha, chutes na perna, socos no coração, etecetera. Oxigenação insuficiente?
– Por que queremos definir tudo? Qual é a verdade da vida? Por que queríamos conhecer a verdade? Por que queremos conhecer a verdade? – entoo, numa música improvisada. – Ó, essa é a filosofia osculando a arte! Uma cena linda de se contemplar! Mas não há pares de olhos e corações para testemunharem esse marco! Que pena! – nas minhas veias a “poesia” percorre.  
Ela não quer morrer. Ela lembrou tudo o que a vida era. Na iminência da morte, a vida revive. A pessoa acorda, as coisas passam a fazer sentido. Eu sei disso porque ela sabe disso. Vejo através de seus olhos. O nome disso é empatia: sentir o que os outros sentem. Eu nunca estive mais vivo, assim como ela também nunca esteve mais viva. Ela não consegue respirar, não consegue nem tossir. O que eu estou espremendo é a sua laringe. Lembrei-me disso da minha infância, das aulas de ciências. Ela vai morrer. Isso o que eu vejo são as veias dos meus antebraços. Tão escondidas, porém tão bonitas.
– Ser e estar! A vida! A vida é ser e estar! Ser o que é, e estar como está! O ser vivo está vivo! Ser é estar! A vida! Não sei o que é, todavia apenas está sendo! – grito muito. – Três vivas à vida! Urra! – fecho mais o punho. – Urra! – urro, exaltado. – Urra! – coloco mais energia nos músculos do meu corpo humano.
Ela vai morrer.
Eu vou viver!
Vejo nos seus olhos que ela morreu. Claro que morreu, ela parou de se mexer. Largo o seu cadáver no asfalto partido com desprezo. A noite caiu. Formigamento? Sim, fiz muita força. Fadiga muscular. Lembro que preciso me alongar, e lembro que me esqueci de que eu tinha que ter feito um “aquecimento” antes deste exercício físico. Agacho-me e pego uma pedra qualquer próxima aos meus pés. Cutuco o corpo com a ponta afiada. Sangue correndo pelo corpo. Estou me sentindo o máximo. Isso se chama “poder”. Só que minha barriga dói.
– A verdade da vida é o poder. – filosofo. – Estou com fome. – estou falando sozinho.

Eu amo ser humano.