– Filha, me ajude!
Não
consigo dizer uma palavra. Nem um adeus. Nem um “eu te amo”. Ela se vai,
rapidamente como a lâmina do homem. Careca, musculoso, maníaco, caucasiano
vermelho de sangue. Minha mãe cai no chão e o barulho é horrível. Meus joelhos
cedem e caio sentada. O homem me olha com um olhar de ira e satisfação. Caminha
vagarosamente em minha direção.
–
Não! – viro o rosto e estico o braço. – Não, não! – minha voz trêmula.
–
Agora é a sua vez, sua vadia! – ele diz.
Com
um supetão me jogo contra a parede, a tateio ligeiramente e entro cambaleando
no corredor. Meu chinelo se desencontra do meu pé algumas vezes, e quando isso
acontece eu me jogo contra uma parede ou outra, repetidas vezes, e corro de corpo
curvado, quase caindo, até que caio de joelho nas beiradas das escadas e quebro
algumas unhas.
–
Corra o quanto você puder, sua branquela! – ele grita da cozinha. – Eu vou te
pegar, te estuprar, te espancar e te rasgar todinha!
–
Não, não... Não... – sussurro para mim, enquanto me apoio fracamente no
corrimão.
Subo
as escadas depressa, batendo com a ponta dos pés em uns degraus, usando as mãos
para dar impulso. Um chinelo arrebenta e eu jogo o outro desesperadamente para
trás, acertando minha cabeça de algum jeito. Ouço os passos tranquilos e
raivosos dele contra a madeira da escada. Lá em cima, viro à esquerda, torcendo
o tornozelo, e entro no banheiro. Por dentro, me atrapalho e derrubo a chave que
estava na fechadura. Ajoelho-me, com os olhos úmidos e o corpo tremendo.
–
Merda, merda, merda, merda... – sussurro, suspiro. – Merda, merda...
–
Eu vou encher a sua banheira com o seu sangue de vagabunda. Com o sangue do seu
pai, do seu irmão e da sua mãe. – a voz se aproxima.
Encontro
a chave, mas acabo empurrando-a para um espaço estreito entre a banheira e a
parede. Forço o braço contra esse lugar e sinto poeira e carcaças de insetos
gordos. A mão do homem aperta e puxa o meu ombro com violência, bato a nuca na
pia.
–
Pare! Por quê?! Por quê? – urro, estapeando o ar.
–
Pare você, desgraçada! – ele me ergue pelo pescoço.
Balanço
os pés no ar, bato com o calcanhar na porcelana da pia. Chuto-o com uma
fraqueza surpreendente, e o homem me força contra o espelho. Com a faca, rasga
a minha calcinha, pegando de raspão na minha virilha e coxa. A sua mão aperta,
sufoca, espreme, machuca.
–
Que delicinha. – ele murmura, olhando para os meus genitais.
Coloca
a faca entre os dentes e mete um dedo em mim. Dou vários socos fracos no seu
rosto e ele ri como pode. Corto os pulsos com a faca da sua boca, e logo após
enfio a chave no fundo da sua orelha. Ele grita de dor e joga a chave. Caio
sentada na pia. Segundos depois a mesma se quebra e eu esfolo as duas coxas nas
superfícies fraturadas da porcelana azul. Uns frascos de perfume quebram no
chão e outro cai entre meus peitos. Levanto rapidamente e quebro o frasco
inteiro contra a sua têmpora. O homem fica tonto e eu o empurro,
milagrosamente, para fora do banheiro.
–
Maldita! – grita, caído no chão.
–
Não! Não! – grito.
Fecho
a porta com um estrondo e caio de costas nos cacos de vidro e da pia. Corto-me
toda e viro rapidamente. Com a mão sangrenta do perfume, pego a chave e pulo
contra a porta. Tranco, milagrosamente, e o homem se joga com brutalidade nela.
Caio sentada.
–
Saia daí, sua piranha!
–
Por que isso?! – choro.
–
Saia daí! Cadela!
Esmurra
a porta, por fora. A chave quica nos azulejos.
–
Eu vou te matar agora mesmo! Vou fazer sopa com você, gostosinha! – mete o que
parece ser um pé contra a porta.
–
Por que você está assim?! – grito, soluçando.
–
De que adianta eu contar? Você vai morrer! Burra!
Soca,
soca, soca. Gargalha.
–
Sério, pode contar pra mim! Conte! Por favor! – grito, suspirando.
–
Essa foi boa! – ri maliciosamente.
–
Foi uma mulher que te deixou assim?! Foi o seu amigo?! – crava murros no meio
da porta, fazendo a maçaneta dançar. – Pare, pare!
–
Conte mais umas piadas para mim!
Chuta,
chuta, chuta. Gargalha com vontade.
–
Você não pode contar com ninguém, o seu erro foi criar expectativas! – digo.
– Você só fala merda, puta
merda!
– Eu te entendo, eu sei como é
difícil superar isso, mas já vai passar! – grito, próxima à porta, em quatro
apoios. Lágrimas e coriza escorrem pelo meu rosto, deixando o sal nos lábios. –
Conte comigo! Conte para mim o que aconteceu... Moço!
Engulo
seco. Ele bate com mais intensidade.
–
Você não sabe de nada! Você não sabe quem eu sou e o que fizeram comigo! –
sinto ódio em sua voz e, principalmente, em seus golpes.
–
Não posso fazer nada se você não me contar!
–
Acredite em mim, não há nada que você possa fazer a não ser me deixar te matar
e te violar, nessa ordem! – a sua voz rasga o meu ouvido.
O
último golpe abre um rombo na madeira. Ele então ri e dá um chute intenso
contra o buraco, que o alarga um pouco mais. Pulo para trás e me apresso, de
costas e sentada, até bater, novamente, a cabeça na parede. Ele continua a
abrir o buraco e me estendo para pegar um pedaço de porcelana pontiagudo. Na
primeira vez eu falho, mas na segunda eu seguro o fragmento com dois dedos e o
puxo para mim.
–
Vai morrer, vai morrer! Vai sangrar muito! – abre mais. – Vou moer os seus
ossinhos, vou pisar na sua garganta!
O
homem enfia o braço de veias grossas em busca da maçaneta cor de latão. Mexe na
fechadura por alguns instantes, enquanto ofego, mas não encontra a chave. Meu
coração pulsa na garganta.
–
A sorte vai durar pouco! – diz, salivando.
Soca,
chuta. Quebra mais a madeira branca como um animal selvagem.
–
Qual é o seu nome, moço?! – pergunto, com a voz falhando.
O
homem para. Silêncio.
–
Por que você pergunta? – ele pergunta, sua voz ainda agressiva.
–
O seu nome, qual é o seu nome?
–
Eu sei que você perguntou isso, idiota! – bate e sobe o tom da voz no adjetivo.
Silêncio por alguns segundos. – Márcio. Isso não muda nada!
Ouço a sua respiração pesada.
Ouço meu coração nos dois lados da minha cabeça.
– Quem foi a vadia que machucou
o seu coração? – pergunto, tentando fingir uma voz doce e preocupada.
Ele respira mais pesado.
– Bom, já que você vai morrer
mesmo, o que custa eu contar?
– Sim. Conte para mim.
– Mônica. – diz, com a voz mais
calma. – Michele, Andressa, Gabriela, Carolina, Teresa, Ludicéia, Serena. – sua
voz engrossa na medida em que fala os nomes. – Andréia.
Nesse último nome, sua voz é
mais suave. Grossa ainda, como uma voz de homem normalmente é, mas suave e
macia. Respiro um pouco mais devagar, libero um pouco da pressão em minhas
mãos, que latejam. O chão está frio e molhado.
– Elas... Não, todos eles, todas
elas, todas as pessoas, ninguém presta! – ele diz. – Ninguém merece a pessoa
que eu sou!
– Tenho certeza de que você é
uma pessoa maravilhosa, no fundo. – digo, faço careta e uma lágrima percorre a
minha bochecha. – Tenho certeza de que essas mulheres não mereciam você.
O ambiente cheira forte. Várias
fragrâncias ao mesmo tempo. Estou com enxaqueca e encharcada de suor.
– Eu sempre fui honesto, eu
sempre me entreguei, eu sempre ofereci todo o meu amor. – sua voz é melosa. – E
o que ganho em troca?! Todas estas desgraçadas pisam em quem eu sou, várias e
várias vezes! Espremem até sair tudo para fora! – sua voz é sofrida.
– Coitadinho... Querido, não
fique chateado, você é um amor de pessoa e tem um coração enorme. – digo. –
Gostei de você, de verdade. Você é bonito, meigo, afetuoso...
Silêncio. Escuto seus suspiros,
são como os de uma criança sentida.
– De verdade? – pergunta
inocentemente. – Mas eu matei a sua família, pare de me iludir!
– De verdade, meu bem. Você é um
amor de pessoa, só que ninguém soube reconhecer as suas qualidades. Na
realidade, você é melhor que todas estas filhas das putas.
– Mas, eu amo elas...
– Eu sei, eu sei, e continue
assim. Nunca se perde por amar, quem sai perdendo é aquele que não sabe receber
o amor.
Ele não diz nada. Escuto seus
lamentos, seu choro falhado.
Levanto e me aproximo
vagarosamente da porta, mancando por causa da torcida no tornozelo. Abaixo-me e
pego a chave, delicadamente. Seu choro aumenta quando ele ouve o barulho da
chave raspando no chão. Ele mete um murro contra a porta e eu pulo para trás,
sem perder o equilíbrio.
– Você está mentindo! Você não
gosta de mim, você é igual a todas elas!
Mete mais murros contra a
parede, seu choro é interrompido a cada pancada. Até que ele cessa e ouço a faca
cair no chão.
– Moço, você está bem?
Ele demora a responder.
– Mais ou menos. – responde com
a voz vulnerável.
– Como vai o seu coração? –
pergunto com uma voz acolhedora.
– Mal. Muito mal...
Coloco a chave na fechadura e
faço questão de que ele ouça o ruído. Antes de virar o punho, pergunto com a
cabeça baixada em direção à fenda na porta.
– Você quer um abraço?
– Sim.
– Bem longo?
– Sim. Longo. Forte.
– Ok, espere um pouquinho aí.
Destranco a porta. Escondo o
pedaço de porcelana entre as nádegas e as aperto com força. Puxo a porta
devagar e me revelo aos poucos. Ele está cabisbaixo, encostado num canto, e
começa a me olhar de cima para baixo. Percorre a minha saia ensanguentada e
rasgada, passando pelo restante do meu corpo manchado de sangue. Fita os meus
olhos com um olhar úmido, demonstrando uma incrível fraqueza. Caminho um passo
por vez, disfarçando o fato de eu estar com as nádegas contraídas, o que não é
muito difícil, pois estou mancando. Derrubo a chave no meio do caminho. Assim
que o faço, ele fecha os olhos e se joga contra mim.
Ele me abraça forte. Ele chora
em meu ombro. Ele balbucia algo.
Passo a mão em sua cabeça. Faço
um cafuné com as minhas unhas quebradas. Gentilmente afago as suas costas.
Aperto um pouco o abraço, assim que ele faz o mesmo. Seu pranto é
descontrolado.
Levo a minha mão até a minha
bunda pelada e branca e vermelha.
– Olhe nos meus olhos, Márcio.
Ele se afasta aos poucos, com as
mãos descendo até a minha cintura, gentilmente. Sinto arrepios de ojeriza na
coluna. E ódio.
– Como é o seu nome, moça? –
pergunta-me, olhando nos meus olhos.
– Elisandra. – finjo me
importar.
– Desculpa, Elisandra. – seus
olhos se enchem de água. – Desculpa por ter te xingado tanto. Você é bonita e
legal.
– Eu sei. Eu desculpo. De
verdade. – finjo me desculpar. – Nunca mais alguém vai fazer isso com você. Porque
eu estou aqui.
Ele limpa os olhos com o
antebraço. Finco o pedaço pontudo de pia no seu olho, com as duas mãos.
– Morra, desgraçado! Morra! Morra!
Ele chora com força e vontade.
Parece uma criança que caiu da balança.
Forço o pedaço contra a sua
cabeça, até que chego à parede e aplico mais pressão. Em meio à sua lamúria
patética eu afundo mais o objeto contra o seu crânio, esguichando sangue na
minha face. Na minha boca. Nos meus olhos.
Sua mão chega à minha nuca.
Jogo o corpo inteiro contra o
que costumava ser o seu olho direito.
Ele alisa o meu cabelo.
– Elisandra... – sussurra.
E seu corpo escorrega na parede.
Sutilmente. Cuspo nele. Maldito. Satanás, Demônio, Diabo, Satã, Lúcifer...