terça-feira, 10 de setembro de 2013

Ilusão



Uma lâmpada está diretamente acima dos meus olhos. Estou deitado em um lugar duro. Sinto frio e o silêncio é absoluto. Não consigo me concentrar direito, minha vista está meio embaçada. Uma cabeça de homem aparece, ele está de pé ao meu lado. Não o ouvi se aproximando, talvez minha audição esteja precária.
– Vou começar. – ele diz.
Pelo menos consigo ouvir claramente. Agora que penso nisso, consigo ouvir seus passos. Estou preguiçoso, exaurido.
– Quem é você? – pergunto.
– Meu nome não significa nada. – diz, em tom calmo. – Não importa como você chegou nesta situação. Nós vivemos no presente, o que aconteceu antes disto não é relevante. Nós vivemos situações, uma por vez.
Um calafrio sobe a minha espinha. Forço os meus membros e algo reage contra os mesmos, mantendo-os no lugar. Um frio me sobe o corpo. Percebo que estou nu. Debato-me ainda mais. O homem passa por cima da minha cabeça, perto de mim. Uma sensação estranha me invade as entranhas. Seu rosto aparece novamente, ele é relativamente jovem. Apalpa minhas bochechas com as mãos quentes.
– O que eu fiz para você? – pergunto, com a voz falhando.
– Vocês não sabem das coisas. – passa a mão em minhas sobrancelhas. – O que aconteceu no passado não tem relevância. – empurra minhas pálpebras suavemente e fecha meus olhos. – Vocês não sabem das coisas.
Mexo a cabeça para os lados para não correr o risco de ferir os olhos. O homem se afasta, seus passos são vagarosos. Mexe em alguns objetos. A luz da lâmpada faz minha vista arder. Não adianta eu fechar os olhos, a luz continua a me incomodar. Ainda estou em estado entorpecido.
– Porém, não se adiante para conclusões. Não afirmo que o presente possui significado intrínseco. Vocês gostam de deduzir coisas. Não há sentido. – diz, ainda revirando as coisas.
Meu coração cavalga, quer fugir pelas orelhas. Suo pela testa, ranjo os dentes, forço a mandíbula. O que me segura pelas pernas e braços é frio, talvez metálico. Debato-me com maior violência.
– O que vai acontecer comigo? – pergunto. Ele continua a fazer o que faz. – Fale! – grito.
O barulho de objetos cessam e iniciam-se ruídos de sapato. Debato-me desesperadamente, estou dolorido em todos os músculos. Sinto cãibras nas panturrilhas e cansaço nos braços. Um suor salgado escorre diretamente à minha boca, passando entre meu nariz e meu olho direito. O homem aparece novamente. Sua mão acaricia minha bochecha.
– Preciso mesmo estar nu? É humilhante. – digo.
– Você só se sente humilhado porque quer se sentir assim. – diz, olhando para mim.
 Seus olhos me causam arrepio. Respiro pesadamente. Sinto uma coisa fria na minha bochecha. Essa coisa é pressionada contra mim, lentamente, até que faz uma incisão em minha pele e atinge a minha carne. Grito de dor, mexo-me freneticamente. Acabo causando a abertura do corte até o lóbulo da minha orelha.
– A morte é natural e passageira. Vocês se preocupam demais com isso. Vocês sofrem demais com esse assunto. – caminha pelo meu lado, deslizando a mão pelo meu corpo. Acompanho o seu deslocamento furiosamente, com a mandíbula travada e bufando com força. – Você só sofre quando não aceita isto.
Estou cansado e dolorido. Respiro pesadamente. Minha nuca lateja de enxaqueca. Bufo, arfo. O homem passa a mão pela minha região esternal, pela minha barriga, pelo meu umbigo, pelos meus genitais, pelas minhas pernas e até o meu pé. A partir desse ponto ele dá a volta ao redor de onde estou deitado e passa a mão em sentido ascendente, fazendo o caminho inverso. Sinto-me um lixo.
– Você pode virar um escritor. – digo. – Já pensou nisso? Já pensou que você sabe bem das coisas? Algumas pessoas iriam adorar as suas ideias, eu tenho certeza. Sério.
– Eu não sou seu amigo. – diz. – Vou definir amizade para você, já que você não sabe de nada. Amizade é interesse, vindo de ambos os indivíduos. Vindo de vocês. – diz isso quando já está em meu mamilo direito. – Relaxe o corpo, relaxe a mente.
Chega ao meu lado. Volta a acariciar minha face. Estou cansado demais para resistir. Suado demais. Viro a cabeça de lado para evitar a luz. Uma gota de sangue salgada escorre diretamente à minha boca. Ele passa a mão na ferida, urro e dou um espasmo de dor.
– Eu vou te matar! Eu juro que vou te matar! – berro com a mandíbula tensa.
– Desapegue-se de você. – diz, enquanto aproxima a lâmina de meu nariz. – Você viveu demais. – puxa lentamente a lâmina, a partir do interior da minha narina esquerda.
Parte a narina ao meio. A dor é insuportável.
 – Filho da puta! Desgraçado! Monstro! – berro, minha garganta rasga por dentro. – Eu não vou fazer o que você diz! Você não manda em mim! Lazarento!
– Tanto faz o que você faz. – diz, acaricia o corte da minha narina. Recuo a cabeça contra a superfície dura.
– Cale a boca, imbecil!
Sua face é neutra, não demonstra nada.
– Se você tivesse aprendido algo, você morreria desacreditado da vida. – diz, corta outra narina.
– Seu maldito, demônio! Você vai queimar no inferno!
Acaricia o corte da minha outra narina. Recuo.
– Pare, por favor! – grito com a voz rouca, frágil, e chorando.
– Relaxe. Vocês vivem demais.

sábado, 7 de setembro de 2013

Um dia daqueles



É ele! Até que é bonito, gostei. Vejo um volume na calça dele enquanto anda. Que bom que ele tem uma carteira gorda de dinheiro. Ele usa óculos, deve ser inteligente e culto. Deve ser por isso que é rico. Pelo jeito que anda, tem muita confiança em si. Deve ser por isso que é rico. Legal, me dei bem. Esse dia promete. Quase chegando.
Quase.
Chegou.
            – Oi. – diz.
            – Olá. – digo.
            – Dia bonito.
            – Ah, sim.
            – Beleza.
– Sim.
           Legal. Ele senta de frente para mim. Sorri. A garçonete chega e sorri pra ele. Ele sorri para a garçonete. Ela se inclina e faz um sexo oral nele. Ele fecha os olhos. Ela volta a ficar de pé, segurando o bloco de notas que tinha derrubado no chão, e ele espirra e se desculpa. A garçonete olha para mim e sorri. Ela pergunta:
           – Boa tarde, o que vocês desejam?
      – Eu gostaria de uma pepéca bem molhada. – ele pede. – E chacoalhada no cacete para acompanhar.
           – Um café, por favor. Obrigada. – peço.
         Ela anota os pedidos e se retira. Ele me penetra. Intenso demais, atinge o fundo da alma. Um belo par de olhos verdes, muito interessantes e hipnotizantes. Deixam-me paralisada e desnorteada. Vai ser interessante conhecer melhor esse homem interessante que acabei de conhecer.
         – Então, sua amiga disse algumas coisas sobre você. Sinceramente, eu não esperava que você fosse tão linda. – diz. – Prazer em conhecê-la, meu nome é Caralhos. Como é seu nome?
           – Regina, o prazer é todo meu.
          Ele me pega pela mão e a beija. Seu perfume é doce e sensual, sua mão é macia. Seu cabelo é liso e solto, meio loiro. Bem vestido, bem comportado. Fiquei desnorteada por alguns segundos.
          – Eu gostaria de te conhecer melhor. – ele diz. – Quantos ânus você tem? – sorri de canto. – Brincadeira, eu sei que mulheres não gostam de falar destas coisas. – respira normalmente. – Então, você trabalha?
          – Eu trabalho, sim. Sou dona de uma sex shop. – ele ergue as sobrancelhas. Dou um tempo. – Adoro o meu trabalho.
            A garçonete aparece. Inclina-se para frente.
– Os seios perdidos: uma panqueca bem enrolada e um chocolate quente para o senhor. – deixa com delicadeza os nossos pedidos na mesa. – E um café para a senhorita. Tenham um bom hepatite.
– Obrigado.
A garçonete se retira e rebola em direção a outra mesa. Ele assopra a xícara e experimenta um gole, olhando para mim. Coloca a xícara na mesa, suavemente, e empunha o garfo. Enfia na boca e dá uma comida na panqueca. Pego o meu café pela asa.
– E você, trabalha em que? – pergunto.
Ele mastiga mais e faz sinal com a mão. Pega o guardanapo do meio da mesa e limpa a boquinha. Tomo um gole do café. É cremoso. Ele tem uma pele limpa e uma barba rala.
– Sem querer me gabar, eu tenho um negócio grande. – sorri de canto. – Faço serviços domésticos com preço a combinar de soluções em engenharia.
Ele come e toma mais um pouco. Um casal passa ao nosso lado e nos cumprimenta.
– Carlos, há quanto tempo, rapaz? – diz o homem.
– É mesmo, Paul, desde o natal passado, não? – brinca. – Não vi você por aí, onde você estava?
– Ah, eu estava comendo ela ali no canto, lá na parede. – aponta para um lugar. – É minha noiva, Pau lá. Gozou dela?
– Felicidades, cara. Gozei mesmo.
– Viu, temos que ir agora. Outro dia batemos um papo. Tenho que pegar picles e passar na mão dela à noite, vai ter uma festa e preciso comprar os preservativos. – diz o homem. – Tenho muita coisa para foder até lá.
– Ah, beleza então. Até o próximo anal, então.
           O casal vai embora.
           – Esse cara é uma figura. – diz. Toma mais um pouco. – Então, como eu estava falando, no meu trabalho eu mexo com o pau e enfio nas nádegas sem parar. Sempre quicam no meu saco, mas eu gosto do que eu faço. – mastiga.
           – Entendo. – digo.
          Engulo todo o café, ele larga os talheres no prato. Olha para mim.
           – O que você acha de irmos a outro lugar, agora? Pode deixar que eu pago. – diz.
         Aceno com a cabeça e levantamos. Ele massageia a perna e retira para fora a coisa... Esqueci o nome... Ah, carteira. Ele tira para fora a carteira gigante que tem. Caminhamos ao caixa sem pressa. Ainda é cedo, esse dia promete.
          – Olá. Mesa sessenta e nove. – diz à mulher do caixa. Segura um cartão de crédito na mão.
          – São pinto bunda reais e peito bolas centavos, senhor. – diz a mulher.
          – Vocês aceitam cartão de sexo?
          – Infelizmente, não, senhor pauzudo. Somente aceitamos cabeças de rolas.
          Ele olha para mim com uma cara levemente preocupada.
          – Olha, que vergonha. Eu só estou com o cartão na carteira. – pergunta.
         Abro a bolsa e remexo nas minhas coisas. Tateio lá dentro com os dedos e encontro todo tipo de coisa menos a minha carteira. Eu esqueci em casa.
          – Esqueci a carteira em casa. – digo.
          – Desculpintão. – diz. – Já vejo o que podemos fazer para resolver esse enema.
         Saco a minha submetralhadora israelense da bolsa e metralho todo mundo nessa merda de lugar. Todo mundo grita, agonizando, e esguicha sangue para todo lado. Pedaços de orelha, olho e nariz voam e estatelam-se contra as paredes brancas que se pintam de vermelho escuro em uma arte moderna. As munições caem no chão e vários pratos se quebram. Várias tortas se arrebentam, bolos se desmancham, copos se arrebentam, sopas lavam o chão. A garçonete tropeça e eu mato ela. Mato ele, mato ela, mato a mulher do caixa, mato o padeiro, mato a padeira, crivo todo mundo de bala. Até que gasto tudo o que tenho em todo mundo nessa pocilga.
          Ninguém me segura quando estou de TPM.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Vivendo em pás



Saímos do carro. Vou em direção à porta de trás e, claro, abro a porta de trás. Mas antes paro quase uma dezena de segundos para pensar na vida, brevemente. Não que eu nunca pense na vida – e é exatamente pelo contrário que pensei na vida, aleatoriamente. Na realidade não chega a ser aleatório, porque eu sempre penso na vida. Na minha vida. Já basta a minha vida. Bom, posso pensar na vida do Arnoldo também, sem problemas. Ele é gente boa.
               – Ei, cara, já está tudo pronto! Traga logo estas pás e pare de divagar aí que nem um macaco perdido no espaço! – grita Arnoldo. – Com traje adequado de astronauta!
                 – Sim, senhora. – respondo.
                 Pego as pás e fecho a porta. Jogo uma pá para o cara.
                 – Ei, viado, quase me acertou!
                 – Eu sei, senhor. 
         Eu sou forte mesmo. Ele me espera chegar para que comecemos a cavar. Eu chego e começamos a cavar. Cavamos.
                 – Esse lugar aqui é especial. – diz. – Lembro quando plantávamos aqui. Você lembra?
                 – Ah, sim... Na verdade, não. Não lembro, não.
   – Porra, meu! Não lembra aquela vez em que viemos aqui, quando éramos criança, e plantamos uma árvore?
                 – Ah, lembrei. Só não lembro onde.
                 – Bom, não importa. Continue cavando aí, cara.
                 Cuspo na grama porque tenho vontade. Cavamos.
            Bons tempos aqueles em que não pensávamos na vida. Em que não tínhamos desejos. Somente ficamos descontentes quando temos um desejo, e normalmente desejamos demais. O negócio é parar de pensar muito e parar de desejar muito, viver no presente, deixar que as coisas fluam naturalmente. O que devemos fazer é largar essa natureza ambiciosa. E devemos continuar cavando.
                 – O que significa deixar tudo rolar naturalmente? – pergunto, já ofegante. Embora eu seja forte. – Não vejo sentido nisso. Todo mundo me diz que eu devo parar de tentar apressar as coisas, devo deixar as coisas acontecerem naturalmente.
               Arnoldo pára. Olha a terra na frente dele e a pá suja de terra. Mexe o nariz de um jeito idiota. Está com coceira, provavelmente. E ele espirra. Volta a cavar.
                  – Assim, você é muito inquieto, cara. – Arnoldo diz.
             – Mas se você deixar rolar naturalmente, você nunca terá nada. Quando você tem um objetivo em mente, você deve fazer de tudo para realizá-lo, pois, de outro modo, você não estará contente. – explico. – Se você quer tanto ficar com essa menina, você deve conversar com ela e pensar no que deve fazer para mostrar a ela quem você é de verdade, na esperança de conseguir a companhia perpétua dela até um dos dois ficar de saco cheio do outro.
                 – Você pensa demais, cara. Continue cavando aí. – passa a mão na testa.
                 Continuo cavando. O sol se pondo.
                 Passa-se um minuto. O sol se pondo.
               – Não deixei bem claro. – digo. – Se tudo rolar naturalmente, nenhum dos dois fará nada. Pois, para dar certo, alguém tem que tentar algo. O fato de você conversar naturalmente com a pessoa já é você tentando forçar o resultado. O mais natural que podemos fazer é deixar de desejar as coisas e viver instintivamente.
               – Não sei, cara, você complica as coisas. – respira de cansaço. – Natural é você tropeçar e cair de boca na menina. Sem querer. Do nada. Pronto. Agora...
                 – Continue cavando. – o interrompo.
                 – Exato. Viado.
                 Uma coisa é falar, outra coisa é fazer.
    Uma coisa é querer, outra coisa é poder. Minha vida foi uma pilha de escolhas: ou você quer, ou você pode. Ok, não é sempre assim, admito que exagerei, desta vez. Mas, normalmente é assim que as coisas acontecem. Acredito que percebo isso justamente porque eu quero demais. Estatisticamente, na maioria das vezes irei falhar. Cada pessoa é uma pessoa. Há muitas coisas no mundo para se ter e a vida é muito curta para se obter o mundo inteiro. Portanto, devo parar de desejar muitas coisas.
                 – Gay. – digo.
     Essa é a minha vida: passar a vida pensando na vida.
     Estamos quase atingindo a nossa meta. Só mais uns minutos cavando será o suficiente.
                 – Mas, que merda... Que porra está acontecendo aqui? – diz uma voz dolorida.
                 Sobe um calafrio na espinha. Uma tremedeira nas pernas, uma breve tontura, um barulho de estática nos ouvidos e uma vontade de mijar.
     – Porra, cara, eu disse que devíamos ter matado esse desgraçado! – grita Arnoldo.
     – Caralho porra! – grito.
    – Seus filhos das putas, vou matar vocês dois! O que vocês fizeram comigo?! – grita o homem.
    – Cale a boca aí e volte a dormir! – grita Arnoldo. – Cara, vá fazer ele calar a boca e dormir! – aponta para o homem sentado na grama.
     Corro em direção ao homem numa velocidade filha da puta. Sento a pá na lateral da cabeça gorda dele. Ele capota e tomba para o lado, brutalmente. Eu sou forte demais, só me faltam fôlego e vontade de desenvolver esse fôlego. O homem dorme igual a um bebê. Sua careca é lisa como a bunda de um bebê. Suja de terra como a bunda de um bebê. Sereno. Ofego.
      – Por que você está parado aí, Arnoldo? Continue cavando. – digo.
     Ele fica me olhando por um tempo, tenso, pá empunhada. Respira fundo e abaixa a pá. Foi intenso demais.
     – Nem precisa, cara. Já está tudo pronto. Traga logo esse puto e pare de defecar pela boca que nem um bisão numa esteira. – diz, ofega. – Tomando água fresca pela boca.
     – Sim, senhora.
    Largo a pá e pego o gordo pelas suas axilas. Puxo-o sem esforço até a beirada do buraco que cavamos. Chuto terra na direção do Arnoldo.
     – Ei, viado, quase me acertou.
     – Eu sei, senhor.
                Posiciono-me, adequadamente.
                – Pronto? – pergunto.
                – Claro, cara. Você pensa demais.
                – Ok, gay.          
   Solto o corpo para dentro do buraco. Olhamos o buraco com o retardado dentro. Passa-se um minuto. O sol já se pôs.
    – Esse idiota sabia como rolar naturalmente. – digo.
    Caímos em gargalhadas.
    – Cara, – ponho a mão no ombro dele. – Você é meu melhor amigo.
   Ele pára de olhar para o buraco e olha para mim. Estamos todos sujos de terra nos braços, nas calças, na testa, nas bundas. Sinto a leveza de um trabalho bem feito. Ele tira a minha mão do seu ombro.
    – Você fala demais, Mateus.
    Sorri.