Que bom que o tempo abriu. Os
raios solares vespertinos espantaram as nuvens carregadas para se lamentarem lá
pra lá, bem longe do meu encontro e da minha vida. Uma senhora idosa atravessa
a faixa de pedestres vagarosamente, utilizando seu guarda-chuva na função
bengala. Por trás do para-brisas ainda vejo mais transeuntes passarem; algumas
crianças, alguns adultos, um cara parado fazendo malabarismo com garrafas
vazias de vinho, uma menina loira chorando inconsolavelmente no ponto de ônibus
e borrando a maquiagem tanto que dá pra notar daqui, um cachorro seguindo o
fluxo de humanos, duas crianças conversando e rindo com mochilas nas costas, um
casal sorridente de mãos dadas ao seu filhinho para atravessarem a rua em
segurança, e mais gente do dia-a-dia se locomovendo pela terceira dimensão.
Quem
bom que o semáforo abriu. Não deu nem tempo de o malabarista vir pedir dinheiro
pelo espetáculo a que nem assisti direito. De qualquer modo, estou de janelas
fechadas, me deleitando com meu ar condicionado. Solto o pé da embreagem e
depois do freio. Vou pisar no acelerador e o carro morre.
Claro
que morre.
Giro
a chave na ignição, pisando na embreagem e no freio, e daí solto primeiro do
freio e então piso no acelerador, ao passo que livro gradualmente a pressão que
faço com o sapato social sobre a embreagem, e assim dou uma partida e arranco,
faço uma conversão à esquerda sem dar seta e já piso de volta na embreagem pra
mudar pra segunda marcha. Meu carro tem ar condicionado, mas não tem direção
automática.
Estou
muito aéreo hoje.
Tive
sorte de ter dado um probleminha na linha de produção da fábrica hoje de manhã,
o qual ainda não arrumaram. A qualquer momento meu patrão pode me ligar e
solicitar meu traseiro de engenheiro lá para botar ordem no lugar e verificar o
andamento das coisas.
Nossa,
estou aéreo mesmo! Meu carro não tem “câmbio automático”, e não “direção
automática”. Isto não existe, seu imbecil mentecapto confuso!
Então,
assim que o cara me ligar vou ter que realocar prontamente meu traseiro lá,
senão ele vai quebrar um azulejo na minha cabeça assim que eu pisar naquela
espelunca. Meu chefe é muito estressadinho! E, veja bem, eu disse “espelunca”,
mas sou muito grato pelo meu emprego e pelo meu terno engomadinho. Até hoje eu
não sei por que eu preciso vestir traje social completo – incluindo paletó –
para trabalhar na firma, visto que todo dia, quando chego em casa, tenho que
bater o pó de argila triturada que havia se grudado por eletroestática a partir
do pó de argila triturada em suspensão no ar. Mas, vá perguntar pro meu patrão
por que é que eu tenho que usar terno completo... Vá perguntar...
Sério,
vá lá perguntar pra ele.
Sério,
confie em mim! Pode perguntar pro cara.
Ele
vai levar na boa. Ele vai te responder na boa.
E
quando você virar as costas pra sair do escritório limpo dele vai levar uma
porcelanatada gigante na nuca capaz de macerar o crânio.
O
cara adora ter sua autoridade questionada.
Agora
dou seta pra direita e faço a devida conversão. Cuido para não resvalar com o
farol na barriga protuberante de uma grávida que desponta na beirada da
calçada, ali sobre o meio-fio, prestes a atravessar assim que eu passar com meu
carrão por ela.
Passei
por ela.
Baixo
o negocinho de cima, do teto do carro – aquele negocinho com um espelho –, e
verifico se o meu cabelo – ou o que sobrou dele, graças à calvície despontando
– está de acordo. Meu gel sabor tutti-frutti está ainda funcionando, desde
manhã, pois hoje não suei tanto, porque hoje deu um probleminha na linha de
produção da firma que fez com que, desde manhãzinha, eu não precisasse trab...
–
CUIDADO, FILHO DA PUTA! – uma voz lá fora grita.
Dou
uma guinada no volante e bato a testa no negocinho do teto – tomara que eu não
tenha desarrumado a cabeleira maneira. Olho para trás, desesperado, e vejo um
homem mostrando o dedo do meio pra mim, seu braço erguido lá em cima para
deixar bem evidente o seu descontentamento. Olho para frente e engulo em seco.
Meus dedos estão apertando firmemente a borracha do volante, de modo que suas
articulações reclamam do esforço.
Estou muito
apavorado, hoje. Tenho que me recompor.
Afinal, tenho
um encontro com meu amorzinho daqui a pouco.
(...)
–
Como você está bonitinho, hoje.
–
Obrigado – beijo a sua mão, delicadamente.
Ela
abre um sorrisinho daqueles que povoam aqueles instantes inebriados logo antes
de cair num sonho erótico lindo. Devolvo sua mão com suavidade à mesa, e deixo
a minha sobre a dela, selando nosso momento nas memórias do coração.
Estamos
numa cafeteria e já fizemos nosso pedido. O aroma doce e denso de café se
acomoda em minhas narinas. Inspiro oxigênio para inflar meu peito em sossego
divino. Eu estava muito aéreo, hoje.
Depois que eu vi Clementina – seu nome tão grácil quanto um café quentinho a
molhar as papilas da minha língua –, o pavor foi embora como uma nuvem negra
carregada que ninguém quer arredando o pé da vista de todo mundo.
–
Que bom que deu certo de a gente se ver, meu neném – ela diz, olhando-me nos
olhos e eu nos dela, na sua voz fina, aveludada e apaixonante. – Digo, não foi
muito bom ter explodido aquela esteira carregada de azulejo... Mas...
Ela
se perde toda e fica encabulada com sua trapalhada. Bobinha.
–
Tudo bem, eu entendi o que você quis dizer – digo, sereno e sorrindo de canto
de boca. – Não foi legal um daqueles porcelanatos
ter voado e decepado a cabeça do nosso melhor peão. Mas foi bom que eu pudesse te ver hoje –
completo meu sorriso. – Eu estava com saudades de você, meu bebê.
Clementina
perde toda a vergonha de antes e sorri largamente. Lindinha.
–
Mas a gente se viu antes de ontem – ela diz.
–
E eu acho que isso já é tempo demais.
–
Lindo. Fofo.
Só
está nós dois na cafeteria, sentados de frente um ao outro ao redor desta
mesinha de casal. Ela não é minha
namorada, e ela não é minha esposa, tampouco minha noiva. Porém, ela não é
menos do que estas três coisas, e sim algo mais, algo grandioso, algo cujo
ainda não existe substantivo para categorização de relacionamento. Temos um
vínculo deveras forte, mas ainda assim parece que meu passado me segura lá
atrás, enquanto ela me espera pacientemente lá na frente, de braços abertos
para me acolher num abraço afetuoso.
Não
há muito tempo, eu me divorciei. O nome dela era Ger...
–
Com licença, senhor, senhora.
O
garçom dizendo isto me dá um sobressalto e rompe a nossa bolha colorida
Geraldo-Clementina. Não estamos mais sozinhos na cafeteria, e de repente surgiu
mais uma dúzia de pessoas sentadas, conversando e batendo talher na louça –
como se tivessem prontamente brotados das profundezas recônditas do inferno
para atrapalharem meu encontro divino.
– Aqui estão
seus pedidos – o garçom coloca o pires e xícara na frente de Clementina. – Para
a senhora, um mocaccino. E para o
senhor, um cappuccino com adicional
de chantilly – e coloca o adicional
de chantilly com cappuccino na minha frente.
– Obrigada –
Clementina diz, já soprando seu café.
– Obrigado! –
dou um baita tapa na mesa de propósito, indignado com a interrupção abrupta.
O garçom fica
me fitando, confuso, e logo da meia-volta e vai atender a outros clientes. Dou
uma mesada em sua nuca, mentalmente. Volto a olhar para meu amorzinho, logo em
minha frente.
– Sabe, eu já
te disse que estou apaixonada por você, Geraldo – ela diz, bebericando um pouco
do seu café e queimando um pouco seus lábios pequenos. – E você não tem que se
sentir pressionado, nem nada, para decidir o que fazer a nosso respeito.
– Tudo bem –
consinto, pressentindo o que ela irá dizer. – Só me dê um pouquinho de tempo
até superar o meu divórcio. Faz só dois meses e meio que terminamos, e você
sabe que foi uma coisa bem violenta e traumatizante. Meu coração ainda está
ferido e não possuo uma taxa de recuperação elevada.
Clementina
solta um riso abafado.
– O que foi?
– Você e esse
seu vocabulário de engenheiro!
– O que é que
tem? O que é que eu falei?
– Taxa de recuperação – ela responde,
rindo. Não tem muita graça, mas o amor faz isto com as pessoas. – Taxa. Quem é que fala “taxa”? – ri um
pouco mais. – Só você, mesmo, pra falar um negócio desses.
– Ah, você bem
que gosta.
– Sim, sim.
Adoro esse seu jeitinho.
Seus cabelos
são bastante contempláveis sob a luz do Sol. Que bom que o tempo abriu e os
raios solares vespertinos decidiram aparecer.
– Aquela
mulher era louca... – comento.
Nós dois rimos
juntos.
Jogo meu corpo
levemente para trás, recostando-me na cadeira e curtindo o momento. Cogito
tocar no meu café, mas penso que pode estar muito quente. Clementina tenta
novamente sorver um pouco de seu mocaccino
sem chantilly adicional, nem chantilly na dose padrão – ela não gosta
de chantilly. Assisto à sua
tentativa. Assim que aproxima a orla da xícara do lábio previamente queimado,
eu sinto, por algum motivo inexplicável, que ela está pensando que ainda está
muito quente; e concluiu isto somente pelo vapor onírico quente da bebida
adocicada a beijar-lhe a pele ao redor de suas delicadas narinas clarinhas.
Devolve a
xícara ao pires.
– Eu estive pensando,
na vinda pra cá, numa coisa que está me encucando demais – digo, relaxado na
cadeira.
– Diga, meu
bem – Clementina se aproxima para me ouvir melhor.
– Na nossa
vida a gente sempre segue uma rotina, aquele procedimento que só nós temos e
que só nós sabemos de cor. Obedecemos a uma mesma sequência de ações, a um
mesmo algoritmo de operações, para chegar a um resultado, pois temos certeza,
com base no retrospecto, de que aquela é a rota que dará o resultado pretendido.
Ou, simplesmente, seguimos a mesma rotina porque é mais cômoda, ou porque temos
medo que não existam outras corretas – coço meu queixo de barba feita.
Esqueci-me de desabotoar meu paletó ao sentar, então o desabotoo agora.
– Sim, sim –
Clementina anui com a cabeça, demonstrando genuíno interesse nas íris.
– Então, na
verdade, o que está bagunçando minha cabeça é o seguinte – ajeito-me na
cadeira, sentando mais pra frente. – Sempre seguimos uma sequência específica
de partes do corpo quando vamos tomar banho. Por exemplo, eu primeiro lavo a
barriga, daí as particularidades, daí o rosto...
Paro pra
refletir um pouco: nossa, eu lavo o rosto depois de lavar a bunda! Que horror!
– Daí eu lavo
o cabelo e tal. Enfim... O que eu acho estranho é que nem sempre foi assim.
Alguma coisa aconteceu na vida que, de repente, – estalo o dedo – mudou tudo. A
sequência mudou, por algum motivo, e sem eu perceber. No dia seguinte, eu
estava obedecendo a um algoritmo extremamente diferente daquele do dia
anterior, mas eu nem me percebi, na hora, de que eu havia mudado a ordem das
coisas. E eu suspeito que isso tenha acontecido mais vezes na minha vida – olho
para o céu azul lá fora, por através da vitrine. – Pode parecer estranho o que
eu estou falando, mas com isso dá para perceber como as mudanças na vida são sutis.
A gente fica melhor de repente, sem nos lembrarmos que estávamos bem mal antes,
e por algum motivo que não sabemos exatamente – olho nos olhos de Clementina. –
Por exemplo, antes de você chegar na minha vida eu estava bem deprimido, e já
no outro dia eu estava alegre. Acordei alegre, sorrindo, sorrindo! E, me pergunte: Geraldo, você sempre acordava triste?
Clementina
fica me encarando, e eu fico devolvendo o olhar para ela.
Clementina
beberica um pouco de seu café, agora resfriado – mas, de qualquer modo, ela
está tão vidrada que nem perceberia caso queimasse a boca.
Ficamos nos
encarando por uns segundos, sem ninguém dizer mais nada.
– Em? –
pergunto.
– Oi? –
pergunta.
Silêncio entre
nós.
– Pergunte –
digo.
– Ah, – diz. –
Desculpa – ri sozinha, nervosa. – Geraldo, você sempre acordava triste?
– Sim. Eu
sempre acordei triste na minha vida triste – desabafo, esvaziando o peito que
inflei há vários minutos atrás. Coloco os cotovelos sobre a mesa – Quando eu te
encontrei naquele corredor, no mercado... Quando eu sem querer colidi com o
carrinho com truculência em você e acabei derrubando você sobre a prateleira de
balas de gelatina... Você tentou se segurar em algo sólido para evitar a queda,
mas cair era inevitável naquele momento e você, então, acabou levando metade e
um pouco mais da prateleira chão abaixo, contigo. Bateu a nuca, tive que te
levar correndo ao hospital, largar toda a mercadoria, que deve estar até hoje
largada lá naquele carrinho fajuto de rodinha torta, para fazer uns pontos no
local do corte.
– É, foi um
corte feio.
– Aham, você
quase morreu na hora.
– Verdade,
doeu pra caralho.
– Sim, eu
percebi na hora em que você gritou.
– Boa tarde,
senhores.
Olhamos para o
lado, subitamente assustados. Um homem negro de óculos escuros se sentou numa
cadeira ao nosso lado, a qual nem estava aqui antes, juntando-se a nós na mesa
sem nenhum convite prévio.
– Oi? –
pergunto, incrédulo. – Senhor? Oi? Por acaso você se perdeu dos seus pais?
O homem negro
não diz nada. Não está olhando para nenhum de nós, mas eu e Clementina nos
entreolhamos, perdidos demais nesta cena.
– Os
relacionamentos são coisas divinas, um presente de Deus ao homem – o homem de
repente diz. – Vocês não precisam firmar o contrato humano de casamento, pois
já estão casados no universo, e é isso o que importa.
– O que você
está falando? – Clementina pergunta.
– Vocês dois
possuem algo bonito, raro de se ver hoje em dia. O pessoal, nessa faixa etária
em que vocês estão incluídos, não liga muito para os motivos do coração, e por
isso acaba se afastando do que realmente importa na vida – o homem agora olha
diretamente para mim. – O mundo atual é bombardeado por informações fúteis, por
dados de nenhuma valia, e no meio disto tudo as pessoas se perderam e se
esqueceram do propósito da vida, que é cuidar um do outro. No meio disto tudo,
você encontrou ela, e ela encontrou você – permanece com olhar fixo em mim.
Estou me sentindo estranho. – É irrelevante o que acontecerá no futuro entre os
dois, pois seus corações já se entrelaçaram lá atrás, quando se conheceram. Sua
aura irradia um amor esplêndido. Por baixo desta carcaça de adulto você é uma
criança, que se agarrou à sua essência, que sorveu do éter do afeto que permeia
a existência.
– Senhor,
poderia se retirar daqui? Está nos atrapalhando – digo a ele, em tom firme. –
Não me obrigue a chamar o segurança – eu não se se cafeterias têm seguranças.
– Meu filho,
não perca seus princípios e não se desgarre das pessoas. O que importa é você
se importar com o próximo. Entendê-lo, compreendê-lo, não ignorá-lo. Não queira
deixar o outro sofrendo, enquanto você detém um arsenal de compaixão aí, dentro
de seu corpo adulto, impregnado à sua alma com paixão. Maturidade não é
sinônimo de boa aventurança, tampouco necessariamente uma virtude. Virtude é aprender
a ignorar a dor própria do imo e se voltar às necessidades do próximo. Abrace
as circunstâncias da vida e não deixe passar em branco o poder de ajudar o
outro a viver, de fazer parte da vida do próximo. Ainda não é tarde para você
fazer a escolha correta.
– Basta, já
deu! – digo, furioso. – Vou chamar o segur...
O homem
levanta-se de supetão, arrastando a cadeira com as costas das pernas e
balançando tudo de frágil que há sobre a mesa. Ergue a cabeça para a vitrine e
anda de lado, que nem um siri tímido. Segue em diante, indiferente aos seus
arredores, e passa pela porta de entrada da cafeteria. No momento em que ele
pisa seu pé descalço imundo lá fora, no mundo de fora, na calçada...
No momento em
que ele sai daqui...
Alguma coisa
entra aqui...
Alguma coisa
aconteceu na vida que, de repente, mudou tudo.
Pode parecer
estranho o que o homem estava falando, mas com isso tudo que aconteceu agora
deu para perceber que como as mudanças na vida são sutis. Estou me sentindo
muito mais próximo de Clementina, por um motivo que não sei exatamente. Este
dia foi um dia marcante. Uma pequena cafeteria, uma pequena mesinha de casal ao
lado da vitrine que dá para a rua movimentada da tarde, e um pequeno papo com
um homem aleatório... Não sei o que aconteceu, mas estou me sentindo muito bem
– melhor do que nunca.
– Clementina –
coloco minha mão sobre a mãozinha dela. – O dia em que eu te conheci, foi um
dia marcante na minha vida. Você mudou minha vida completamente, e sou muito
grato por isto – meus olhos marejam de emoção, meu coração entala na garganta.
– Eu só queria dizer que eu te am...
Meu celular
toca no bolso. E vibra, vibra bastante. O toque dele é de uma gravação que fiz
um dia, de eu arrotando e peidando o alfabeto. Todo mundo que está sentado nas
outras mesas olha para cá, espantados. Retiro o celular do bolso e leio o nome
na tela, em meio a flatulências e liberações gasosas de boquinha: Marcelo
Lazarento.
É o meu patrão
me ligando.
– Amor, – tiro
o olhar da tela brilhante do meu celular caro e fito Clementina. – Vou ter que
voltar pro trabalho.
E eu nem
sequer toquei no meu cappuccino.
(...)
Rimos
muito juntos, no meu carro. Estou a caminho de deixar Clementina em sua casa,
rapidamente, para então pegar a rodovia e seguir para a fábrica, para terminar
este dia esquisito com a cabeça ainda íntegra, não detonada pelas mãos e
cerâmicos duros do Marcelo, O Desgraçado. Gargalhamos ao vento – abaixei as
janelas e desliguei o ar condicionado –, recordando um ao outro as coisas que o
homem estranho nos disse.
–
Será que o cara estava chapado? – pergunto, rindo demais.
–
Talvez estivesse! – Clementina responde, acompanhando meu divertimento. – Agora
entendi por que ele estava usando óculos escuros! Devia estar com olhos bem
avermelhados de maconha!
Cuspo
uma risada no vidro para-brisas, e logo me inclino, rindo, para limpá-lo com o
paninho. Volto a sentar e esterço o volante à esquerda, ligando a seta com
antecedência – agora estou bem mais ligado ao mundo, diferentemente de como eu
estava antes de encontrar meu neném fofo e bom de cama.
–
Você ouviu o que ele disse: abrace as circunstâncias da vida e não perca tempo,
e faça logo parte da vida do outro – ela comenta, se esforçando para puxar no
banco de dados do cérebro. – Ou algo do gênero, sei lá.
–
Ok, e o que isso tem a ver com qualquer coisa? – pergunto, sem entender nada.
–
Ué, ele disse que é pra você parar de se enrolar e se casar logo comigo!
–
Com certeza – confirmo, ironicamente.
–
Ele disse também pra você ignorar a dor própria e atender às minhas
necessidades. Viu só? Ele entende das coisas! Ele diz que é pra você esquecer o
que aconteceu com sua ex-esposa e seguir em frente, comigo, e se casar logo! –
ri.
– Com certeza...
– confirmo, agora sem nenhum pingo de sarcasmo.
Pensando
bem, aquele cara era bem peculiar, e sua presença era bem bizarra. Ele saiu do
nada, depois, e não conversou com mais ninguém. Aliás, eu nem me lembro de
tê-lo visto entrar na cafeteria, em primeiro lugar. Sem falar que algo mudou
dentro de mim, assim que ele se levantou e se mandou embora. Parecia mais um
anjo que tocou as nossas vidas para nos unir, um profeta, um sacerdote místico
barbudo descabelado agindo em prol da nossa união, nos casando ali mesmo e
naquela exata hora. Selando o nosso amor com palavras.
–
Se bem que... – digo, ainda um pouco enuviado com o que aconteceu conosco lá,
naquela mesa. – Ele parecia mais um arauto celestial, um ser divino que
simplesmente apareceu ali pra nos aproximar mais.
Clementina
vira o rosto para olhar para mim. A princípio pensei que ela estaria com uma
cara de reprovação, pensando que eu sou louco em dizer uma coisa dessas, mas
não é isso o que vejo nela. Eu viro o volante e faço uma conversão à direita,
bem perto da casinha dela. Consigo ver nas pupilas de Clementina, nas janelas
de sua alma, sem a necessidade de ela proferir nenhum som, que ela me entendeu
completamente. Eu sei que ela se aproximou mais de mim, depois de hoje, apesar
de que já estivera antes loucamente apaixonada por mim – o que deixara bem
claro e desambíguo ao me dizer várias vezes, durante estes poucos e intensos
dois meses em que nos conhecemos, que me ama.
Mudo
para a quarta marcha.
–
Clementina, eu sinto que estou amando você – digo, terna e singelamente. – Você
gostou da nossa tarde juntos?
Uma
mulher berra e o meu carro dá um solavanco violento. Por um momento perco
controle da direção, e no outro momento percebo que quem gritou foi Clementina,
horrorizada com o que acabou de acontecer. A primeira coisa que faço é meter o
sapato no freio, cantando e deixando camadas dos pneus no asfalto atrás de nós.
Abro a porta com a mão trêmula e não consigo sair. Esqueci-me de remover o
cinto de segurança. Tateio o negócio, à procura do botão para desafivelar o
troço, e vejo que a porta do passageiro está aberta. Por um segundo pensei que
perdi Clementina, mas depois vejo que ela está correndo até lá na frente, onde
uma pessoa está deitada no chão.
Atropelei
alguém.
Dou
um pulo pra fora do carro, mas não consigo sair, porque esqueci o cinto
afivelado no troço. Meto qualquer dedo no botão e me libero da pressão no
peito. Agora pulo de volta para fora e bato a tampa da cabeça no carro.
Lembro-me de Marcelo, e como eu o odeio. Eu não deveria odiá-lo, mas, sim,
ajudá-lo a amainar o estresse do cotidiano industrial.
Um
pensamento nefasto percorre a minha cabeça: será que eu atropelei meu patrão?
De
repente já estou quase chegando ao corpo deitado, ao lado do qual Clementina
chora, ajoelhada no asfalto. Só está nós dois na rua, sem nenhum outro
movimento de carro. E, do nada, já estou ajoelhado ao lado de Clementina,
amparando-a, passando a mão em suas costas, porque não gosto de vê-la sofrer.
Engulo em seco e, só então, decido olhar para o corpo estirado.
É
uma mulher, e seu peito está subindo e descendo freneticamente. Noto seu
desespero em procurar ar tragável, nos seus movimentos repetitivos curtos do
peito. Só depois de analisar bem é que vejo que ela está com uma abertura no
peito, evidenciando uma costela quebrada, que provavelmente perfurou seu
pulmão. Minha cabeça lateja e o mundo mergulha em silêncio completo, dentro do
silêncio de antes da rua desolada, como se eu estivesse no lugar daquela mulher
sofrendo de sua aflição.
Observo,
catatônico, a fratura exposta horrível, apavorante. De lá jorra sangue pelas
laterais do seu corpo, sujando suas roupas e o asfalto. Sua vida esvai por um
buraco lancinante, fechando-se em claustrofobia. Ergo meus olhos arregalados ao
rosto da mulher, e os olhos dela me encontram no momento certo; incisivos,
cortantes, pontiagudos, atravessando a minha carne e penetrando no meu cerne.
Atacando meu emocional, sem se importar com meu físico. Os olhos dela,
esticados para baixo, quase que estrábicos neste posicionamento, sem conseguir
mexer sua cabeça, imploram por ajuda – porque sua boca tartamudeia e não
consegue dizer nada, mas só tosse mais da sua essência viscosa vermelha. Mas eu
não sei o que fazer. A mulher tem toda sua maquiagem borrada, e gorgoleja no próprio
sangue. Clementina está me olhando... Eu nunca vi tanto pavor no rosto de uma
pessoa antes... Ela está mais assustada do que a moribunda...
E
a moribunda se rende às circunstâncias impostas pelo universo, fitando o céu
cinzento coberto de nuvens com seus olhos agora mortos.
Continuo
encarando o rosto do cadáver diante de nós, e agora é minha vez de tartamudear.
–
Eu... Eu... É... Não... Não s-sei...
Não
consigo formar nenhuma coisa que tenha nexo. Não consigo transmitir mensagens.
Não consigo confortar minha companheira com palavras e nem verbalizar e
transmitir o meu horror a ela.
Continuo
encarando o rosto da mulher.
Um
rosto familiar.
Um
rosto familiar...
De
repente, dezenas, centenas de pessoas preocupadas brotam do nada ao nosso
redor, como se o inferno tivesse chegado em peso a partir do ar; rompido uma
membrana mística tênue que separa dimensões paralelas – dimensões que estão tão
próximas umas das outras, mas ao mesmo tempo tão distantes. A bolha incolor que
envolvia eu e Clementina se estoura, e agora eu percebo que a rua já estava
movimentada e nada deserta quando o acidente ocorreu... As vozes dizem “o que
aconteceu?”, “Jesus Cristo!”, “Ela se jogou na frente do carro, eu vi!”, “Ela
quis se matar, e este homem não desviou a tempo”...
Agora
eu percebo que o mundo nunca foi só nós dois...
Sempre
houveram pessoas transitando por aqui, inclusive quando ainda estávamos no
carro e eu mudava a marcha...
Quando
atropelei este rosto triste...
Era
aquela menina que chorava no ponto de ônibus.