quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Nostalgia



É viver todos os tempos ao mesmo tempo,
Sonhando sentir o passado no futuro,
Mesmo certo de que é impossível de
Conseguir seguir adiante para trás.

É um momento de vulnerabilidade,
Quando se sente sensível e bem patético
Ao insistir em perturbar a própria paz,
Martirizando-se e sentindo-se poético.

Não há a habilidade de reconstruir.
Não se desfaz nem se refaz o que foi feito.
Não há como não sentir esse sentimento.

A nostalgia é querer se destruir,
É estar alegre por estar descontente,
É viver um paradoxo constantemente.

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Num futuro distante



Seria uma boa ideia se eu sentasse agora. Não aguento mais andar. Mesmo assim, ainda não descobri quantos andares tem esse lugar, e muito menos quantas lojas. Dizem que a um tempo atrás não era tão absurda essa quantidade de opções, que era impossível realizar uma coisa dessas. Eu não faço ideia de como as coisas eram antigamente.
            Bom, estou cansado demais, vou sentar. Sentei num sofá.
             Eles abusam do teletransporte para tudo. Isso daí realmente facilita a vida, em várias maneiras diferentes. Faz uma década, até onde sei, que essa tecnologia foi inventada. Usam para diversos fins, e alguns deles são muito criativos. Acho que o teletransporte surgiu depois de uma descoberta da mecânica quântica que envolve entrelaçamento quântico. Eu não sei, ao certo, como funciona, porque eu não sei nada sobre física moderna. Usam extensivamente no comércio, por exemplo. É bem dinâmico, poupa custos de logística e facilita o comércio propriamente dito. O teletransporte teve um impacto tão severo que houve necessidade de mudar o sistema econômico mundial para ultracapitalismo. Eu não sei, ao certo, como funciona, porque eu não sei nada sobre economia e sobre política.
            Então, você clica numa tela e a loja se materializa na sua frente, e a que estava num lugar passa a ir a outro lugar onde a loja que se materializou se encontrava. As pessoas dentro da loja se teletransportam juntamente com o instabelecimento – não é mais estabelecimento. É bem dinâmico e legal.
            Agora mesmo acabou de aparecer uma moça ao meu lado, sentada, também, no sofá. Ela é bonita, cabelos longos e escuros e olhos de mesma cor. Levemente rechonchuda no rosto, com bochechas gordinhas e rosadas. Pele bem branca.
            O teletransporte facilita a vida das pessoas, e faz com que elas se comuniquem mais. É uma tecnologia realmente muito bonita. Com o avanço nas pesquisas, ao invés de matéria, transportam-se apenas “dados da matéria”, em algumas aplicações. Isso ocorre, eu acho, pela transmissão de informações eletrônicas de átomos, como números de spin e não sei mais o que. Não sei, ao certo, como funciona, porque não sei nada sobre spintrônica.
            – Oi, tudo bem? Meu nome é Elena, e o seu?
            – Oi, meu nome é Heitor. E você é maravilhosa.
            – Obrigada, você também é.
            Às vezes é inviável transportar pessoas de um lugar a outro, porque envolve riscos de saúde e inconveniências. Nestes casos, apenas se transportam os dados da matéria da mesma. Dizem que o mundo estava ficando cada vez mais silencioso, porque as pessoas, no passado, se isolavam umas das outras, mesmo quando fisicamente agrupadas. Elas utilizavam os chamados smartphones para se comunicarem. Elas só escreviam umas às outras, nem usavam mais as cordas vocais.
            Dizem que o teletransporte salvou a raça humana da misantropia absoluta.
            – Agora eu estou no centro C-12. E você, Heitor, onde está?
            – No M-30. – viro-me um pouco ao lado, no sofá. – Nossa! Isso dá quantos quilômetros de diferença?
            – Não sei, acho que quase atravessa o país. – ela sorri. – Eu sou muito ruim em geografia. – ela ri.
            Elena é um holograma.           Ela não é um holograma, mas esta Elena é um holograma. A Elena real se encontra a milhares de quilômetros de distância, em algum lugar. A Elena virtual se encontra a algumas dezenas de centímetros de distância, logo à esquerda. Eu a olho diretamente nos olhos. É muito fácil fazer isto quando se está distante.
            – Eu estou sentada de verdade num sofá perto do banheiro, e você?
            – Eu também estou sentado de verdade, num sofá no meio do centro, em algum lugar aqui. – devolvo o sorriso a ela.
            – Que legal! Você também faz as coisas de verdade! – ela diz, entusiasmada. – O que você está fazendo no centro, Heitor?
            – Eu gosto de andar por aqui e ver pessoas, mesmo que a maioria de verdade esteja em casa deitada e com aqueles óculos transportadores.
            – Ah, sim! Eu ando de verdade porque eu me confundo com essas projeções aí. Entende o que eu digo?
            – Sim, sim, perfeitamente. – digo, entusiasmado. – Projeção de projeção. Transporte de holograma já transportado. É uma confusão. Transportam tudo de um lado ao outro sucessivamente, sem parar.
            Estou encantado com ela. Seus dentes são bem brancos. Ela pode ter modificado o seu avatar, clareado os dentes e arrumado o cabelo, de modo a parecer mais bonita para mim. Porém, visto que ela costuma andar de verdade, eu acredito que ela seja assim, mesmo, pois, assim como eu, ela talvez não goste de modificar o seu avatar e gosta de ser quem ela é, realmente.
            – Pra falar a verdade, eu tenho medo de teletransportar a minha matéria. Já ouvi falar de alguns acidentes em que as pessoas perderam um braço. Um erro de programação que ocorria ao se teletransportar até uma estação de transporte específica do centro D-06. – ela diz, levemente preocupada.
            – Ah, sim, eu também tenho algum receio. – digo a ela. Ela parece compreender exatamente tudo o que eu falo, como se tivéssemos nascido um para o outro. – Até para transportar os meus dados eu tenho medo, porque dizem que podem ocorrer alguns apagões cerebrais, raras vezes.
            – Credo! Pare de me assustar, seu bobo!
            Ela fica tensa, mas depois de um tempo me vendo rindo ela se une a mim nas gargalhadas. Outras pessoas estão conversando aqui, em forma de hologramas, em outros sofás de convivência. Mas somente eu, talvez, esteja realmente aqui. Hologramas têm uma marca no peito para identificá-los como entes virtuais, os quais recebem punições diferentes dos entes reais na eventualidade de infringirem alguma lei local. Mas agora eu estou muito ocupado apreciando o jeito de Elena para verificar quem se encontra aqui de verdade. Para dizer a verdade, eu não me preocupo com quem se encontra realmente aqui. Não me preocupo com nada desde que chafurdei na paz dessa mulher.
            O jeito da Elena é uma graça. Ela se mexe de uma maneira muito bonitinha, e parece ser bem bobinha. É muito fofa. Está em silêncio, apenas me olhando, sorrindo, com as mãos sobre o seu colo. Estamos virados um de frente ao outro. Estou magnetizado pela sua beleza. É uma beleza surreal de tão bela. Perfeita do jeito que é.
            Ergo o meu braço e o levo até Elena.
            Meu braço a atravessa.
            Ela para de sorrir.
            – Por que você fez isso? – ela pergunta, seu tom de voz mais baixo, consternado.
            – Não sei...
            Eu esqueci que ela é um holograma e não consigo tocá-la. Não consigo sentir o seu cheiro. Não consigo senti-la de qualquer maneira. Ela estava tão próxima de mim que eu esqueci que está tão distante.
            Elena olha para frente e a sua tristeza se transforma em felicidade.
            – Está pronto, amor? Podemos ir, agora? – ela pergunta para a frente.
            Eu olho para frente, aonde ela olha, e esqueço que ela está conversando com alguém que eu não conheço e nem sabia que existia, lá no C-12. Ela estende o braço e levanta-se do sofá, como se tivesse sendo ajudada a se levantar.
            Elena desaparece.
            Permaneço fitando o vazio. Depois de uns poucos segundos, aparece outra moça no sofá. Ela é tão bela que parece artificial. A moça olha para mim e sorri, com os seus dentes impecavelmente limpos, claros e alinhados e maquiagem tão artificial que chega a ser natural. Perfeita.
            – Oi, meu nome é Pandora e estou no M-29! E o seu, moço, qual é?
            Eu me levanto do sofá, com alguma dificuldade, e ando sem rumo. Atropelo e atravesso alguns hologramas no caminho, olhando a algum lugar a lugar nenhum ao mesmo tempo. Ouço a música do ambiente, gerada randomicamente por computador, sem realmente escutá-la. Continuo andando, e percebo que todo mundo tem uma marca no peito. É um círculo vermelho sem graça. Sempre vermelho, sempre sem graça. Que mundo mais fútil, que tecnologia mais terrível. Meu peito está partido e tem dificuldade em pulsar. A raça humana está perdida.