Seria uma boa ideia se eu sentasse
agora. Não aguento mais andar. Mesmo assim, ainda não descobri quantos andares
tem esse lugar, e muito menos quantas lojas. Dizem que a um tempo atrás não era
tão absurda essa quantidade de opções, que era impossível realizar uma coisa
dessas. Eu não faço ideia de como as coisas eram antigamente.
Bom,
estou cansado demais, vou sentar. Sentei num sofá.
Eles abusam do teletransporte para tudo. Isso
daí realmente facilita a vida, em várias maneiras diferentes. Faz uma década,
até onde sei, que essa tecnologia foi inventada. Usam para diversos fins, e
alguns deles são muito criativos. Acho que o teletransporte surgiu depois de
uma descoberta da mecânica quântica que envolve entrelaçamento quântico. Eu não
sei, ao certo, como funciona, porque eu não sei nada sobre física moderna. Usam
extensivamente no comércio, por exemplo. É bem dinâmico, poupa custos de
logística e facilita o comércio propriamente dito. O teletransporte teve um
impacto tão severo que houve necessidade de mudar o sistema econômico mundial
para ultracapitalismo. Eu não sei, ao certo, como funciona, porque eu não sei
nada sobre economia e sobre política.
Então,
você clica numa tela e a loja se materializa na sua frente, e a que estava num
lugar passa a ir a outro lugar onde a loja que se materializou se encontrava.
As pessoas dentro da loja se teletransportam juntamente com o instabelecimento
– não é mais estabelecimento. É bem dinâmico e legal.
Agora
mesmo acabou de aparecer uma moça ao meu lado, sentada, também, no sofá. Ela é
bonita, cabelos longos e escuros e olhos de mesma cor. Levemente rechonchuda no
rosto, com bochechas gordinhas e rosadas. Pele bem branca.
O
teletransporte facilita a vida das pessoas, e faz com que elas se comuniquem
mais. É uma tecnologia realmente muito bonita. Com o avanço nas pesquisas, ao
invés de matéria, transportam-se apenas “dados da matéria”, em algumas
aplicações. Isso ocorre, eu acho, pela transmissão de informações eletrônicas
de átomos, como números de spin e não sei mais o que. Não sei, ao certo, como
funciona, porque não sei nada sobre spintrônica.
–
Oi, tudo bem? Meu nome é Elena, e o seu?
–
Oi, meu nome é Heitor. E você é maravilhosa.
–
Obrigada, você também é.
Às
vezes é inviável transportar pessoas de um lugar a outro, porque envolve riscos
de saúde e inconveniências. Nestes casos, apenas se transportam os dados da
matéria da mesma. Dizem que o mundo estava ficando cada vez mais silencioso,
porque as pessoas, no passado, se isolavam umas das outras, mesmo quando
fisicamente agrupadas. Elas utilizavam os chamados smartphones para se
comunicarem. Elas só escreviam umas às outras, nem usavam mais as cordas
vocais.
Dizem
que o teletransporte salvou a raça humana da misantropia absoluta.
–
Agora eu estou no centro C-12. E você, Heitor, onde está?
–
No M-30. – viro-me um pouco ao lado, no sofá. – Nossa! Isso dá quantos
quilômetros de diferença?
–
Não sei, acho que quase atravessa o país. – ela sorri. – Eu sou muito ruim em
geografia. – ela ri.
Elena
é um holograma. Ela não é um
holograma, mas esta Elena é um holograma. A Elena real se encontra a milhares
de quilômetros de distância, em algum lugar. A Elena virtual se encontra a algumas
dezenas de centímetros de distância, logo à esquerda. Eu a olho diretamente nos
olhos. É muito fácil fazer isto quando se está distante.
–
Eu estou sentada de verdade num sofá perto do banheiro, e você?
–
Eu também estou sentado de verdade, num sofá no meio do centro, em algum lugar
aqui. – devolvo o sorriso a ela.
–
Que legal! Você também faz as coisas de verdade! – ela diz, entusiasmada. – O
que você está fazendo no centro, Heitor?
–
Eu gosto de andar por aqui e ver pessoas, mesmo que a maioria de verdade esteja
em casa deitada e com aqueles óculos transportadores.
–
Ah, sim! Eu ando de verdade porque eu me confundo com essas projeções aí.
Entende o que eu digo?
–
Sim, sim, perfeitamente. – digo, entusiasmado. – Projeção de projeção.
Transporte de holograma já transportado. É uma confusão. Transportam tudo de um
lado ao outro sucessivamente, sem parar.
Estou
encantado com ela. Seus dentes são bem brancos. Ela pode ter modificado o seu
avatar, clareado os dentes e arrumado o cabelo, de modo a parecer mais bonita
para mim. Porém, visto que ela costuma andar de verdade, eu acredito que ela
seja assim, mesmo, pois, assim como eu, ela talvez não goste de modificar o seu
avatar e gosta de ser quem ela é, realmente.
–
Pra falar a verdade, eu tenho medo de teletransportar a minha matéria. Já ouvi
falar de alguns acidentes em que as pessoas perderam um braço. Um erro de
programação que ocorria ao se teletransportar até uma estação de transporte
específica do centro D-06. – ela diz, levemente preocupada.
–
Ah, sim, eu também tenho algum receio. – digo a ela. Ela parece compreender
exatamente tudo o que eu falo, como se tivéssemos nascido um para o outro. –
Até para transportar os meus dados eu tenho medo, porque dizem que podem
ocorrer alguns apagões cerebrais, raras vezes.
–
Credo! Pare de me assustar, seu bobo!
Ela
fica tensa, mas depois de um tempo me vendo rindo ela se une a mim nas
gargalhadas. Outras pessoas estão conversando aqui, em forma de hologramas, em
outros sofás de convivência. Mas somente eu, talvez, esteja realmente aqui.
Hologramas têm uma marca no peito para identificá-los como entes virtuais, os
quais recebem punições diferentes dos entes reais na eventualidade de
infringirem alguma lei local. Mas agora eu estou muito ocupado apreciando o
jeito de Elena para verificar quem se encontra aqui de verdade. Para dizer a
verdade, eu não me preocupo com quem se encontra realmente aqui. Não me
preocupo com nada desde que chafurdei na paz dessa mulher.
O
jeito da Elena é uma graça. Ela se mexe de uma maneira muito bonitinha, e
parece ser bem bobinha. É muito fofa. Está em silêncio, apenas me olhando,
sorrindo, com as mãos sobre o seu colo. Estamos virados um de frente ao outro.
Estou magnetizado pela sua beleza. É uma beleza surreal de tão bela. Perfeita
do jeito que é.
Ergo
o meu braço e o levo até Elena.
Meu
braço a atravessa.
Ela
para de sorrir.
–
Por que você fez isso? – ela pergunta, seu tom de voz mais baixo, consternado.
–
Não sei...
Eu
esqueci que ela é um holograma e não consigo tocá-la. Não consigo sentir o seu
cheiro. Não consigo senti-la de qualquer maneira. Ela estava tão próxima de mim
que eu esqueci que está tão distante.
Elena
olha para frente e a sua tristeza se transforma em felicidade.
–
Está pronto, amor? Podemos ir, agora? – ela pergunta para a frente.
Eu
olho para frente, aonde ela olha, e esqueço que ela está conversando com alguém
que eu não conheço e nem sabia que existia, lá no C-12. Ela estende o braço e
levanta-se do sofá, como se tivesse sendo ajudada a se levantar.
Elena
desaparece.
Permaneço
fitando o vazio. Depois de uns poucos segundos, aparece outra moça no sofá. Ela
é tão bela que parece artificial. A moça olha para mim e sorri, com os seus
dentes impecavelmente limpos, claros e alinhados e maquiagem tão artificial que
chega a ser natural. Perfeita.
–
Oi, meu nome é Pandora e estou no M-29! E o seu, moço, qual é?
Eu
me levanto do sofá, com alguma dificuldade, e ando sem rumo. Atropelo e
atravesso alguns hologramas no caminho, olhando a algum lugar a lugar nenhum ao
mesmo tempo. Ouço a música do ambiente, gerada randomicamente por computador,
sem realmente escutá-la. Continuo andando, e percebo que todo mundo tem uma
marca no peito. É um círculo vermelho sem graça. Sempre vermelho, sempre sem
graça. Que mundo mais fútil, que tecnologia mais terrível. Meu peito está
partido e tem dificuldade em pulsar. A raça humana está perdida.