segunda-feira, 15 de outubro de 2018

Azul rima com lugar nenhum


Não há como falar de vida sem mencionar a morte. Uma coisa define a outra e nunca se desvinculam. Esta dicotomia não se desfaz e é eterna, por mais que sejamos frágeis e efêmeros. A vida e a morte perduram e não mudam; são as únicas honestidades que a realidade nos dá, transmitindo a mensagem com um tapa na cara.
                Era pra ser um cruzeiro divertido com meus amigos, até que o troço afundou e levou consigo noventa ou noventa e cinco por cento dos passageiros, querendo eles ou não. O restante dos que não se afundaram pela sucção da grande massa penetrando no imenso volume de água e caindo vagarosamente às profundezas escuras e frias e de pressão inconcebível para qualquer crânio... Aqueles que sobreviveram a esta sucessão de eventos catastróficos ainda assim sofreram tragédia e ficaram nadando sem prumo. Uns ficaram parados no local, esperando que alguma entidade divina viesse resgatá-los numa rede, e outros se desatinaram para qualquer lugar, guiando-se pelo Sol. Mas o Sol muda de posição constantemente, então logo este pessoal deve ter se perdido nesta bússola traiçoeira e morrido de desespero.
                Isso aconteceu há dois dias.
                Eu não consigo pensar direito mais. Estou muito cansado. Fatigado. Não aguento mais, porém não enxergo terra firme. Fico mexendo as pernas e braços sem pensar direito, no piloto automático, nadando que nem cachorrinho. Não sei se estou naufragado; se naufrágio exige que a pessoa esteja desertada em uma ilha, que nem naquele filme famoso que eu vi uma vez só, na infância; ou se estar perdido no meio do oceano já basta. Eu não sei o que é naufrágio.
                Eu não sei.
                Eu não sei de mais nada.
                Não consigo pensar. Estou muito cansado. Queria poder dormir. Queria comer mais uma vez o bolo de chocolate que minha mãe sempre faz. Meus músculos ardem em brasa e todo meu corpo chora de cãibra. Pele enrugada e esquisita por causa do sal. E aquele sentimento iminente de que vai vir um peixe estranho e gigante por baixo de mim e me despedaçar entre os dentes agudos.
                Eu não sei.
                Só queria poder pegar minha filhinha no colo – aquela filha que provavelmente não vou ver nascer. Só queria poder reviver algumas memórias e lugares com meus pais, contar as piadas de humor ácido com meus amigos – que agora são cadáveres no fundo do mar – e poder beijar novamente minha ex-esposa. Queria poder redescobrir o amor em uma nova mulher e entrar em papos filosóficos com minha possível alma gêmea, encontrando profundidade nela e chegando à conclusão de que em piscina rasa só entra criança ou pessoas com medo de se afogar. Mas a única profundidade que me resta é o grande vazio do oceano.
                Isto tudo pelo que estou passando...
                Eu só queria descansar...
                Perdi o foco do raciocínio. Meus neurônios já estão desistindo. O que eu estava falando? Minha noção está mais perdida do que eu geograficamente. Não consigo nem lembrar o número do quarto em que eu estava hospedado.
                Isso tudo pelo que estou passando...
                É apenas uma circunstância da vida.
                Não se define vida sem tanger a morte. Um é a causa e o efeito do outro. Um depende do outro para existir. São conceitos...
                O que eu ia falar?
                Minhas coxas estão doendo. Eu só queria comer uma coxinha e fechar os olhos. Conceitos... Abstratos demais... Só dá para entender o que é a vida quando a morte está chegando... A vida é querer caminhar no parque num dia ensolarado e respirar fundo, encher o peito de ar. Viver é diferente de sobreviver, mas também depende disto.
                Eu não sei...
                O que estou pensando? Não faz muito sentido. Esse dia está muito ensolarado e minha cabeça pulsa de dor. O Sol queima minhas retinas. Queria poder usar mais uma vez aqueles óculos de Sol bonitos que minha vó me deu antes de partir. São óculos caros, polarizados, cheios de estilo, ou, como os jovens dizem: “descolados”... Porém, poderiam ser óculos nada funcionais e, como os antigos dizem, “bregas”, que eu ainda quereria usá-los; porque foi minha avó que me deu com todo o seu coração.
                Viver...
                Viver é usar óculos de Sol... Viver é poder usar óculos de Sol... Viver é poder se esconder do Sol e escolher entre sombra ou... Ou Sol...
                Viver é não estar só... No meio do oceano e pensando em morte.
                Morte é se dar conta de que todas estas filosofias vão ser sepultadas comigo e nunca alcançarão outra vida... Pois viver é compartilhar...
                Eu só queria ter alguém comigo agora para poder dizer o quanto eu... O quanto eu queria continuar a viver. A voltar atrás e fazer as coisas de maneira diferente, a ter uma chance de recomeçar as coisas e a fazer coisas novas e cometer de volta os mesmos erros para chorar sozinho encolhido no quarto e soluçar... E respirar fundo e encher os pulmões de ar fresco... E voltar a pensar que tudo...
                Que tudo vai melhorar, porque um coração partido não é o fim da vida, que é um pequeno obstáculo apenas e que dói mesmo, mas, como meu avô falecido me dizia, “essas dores não são nada comparados à dor de corno”... Não...
                Estou dando risada.
                Meu abdome está se rasgando por dentro, tamanho é o esforço que faço para me manter flutuante nesta porcaria de água. Tudo azul, tudo azul.
                Ele dizia que “eu te amo muito, meu netinho. As dores que você sente servem para mostrar a você que você está vivo...”, e uma dorzinha ou outra sempre é boa para reafirmar a existência... Mas quando a existência se resume a dores, qual é o sentido de continuar sobrevivendo?
                Eu estou cansado...
                Desisto de mexer meus braços... E pernas...
                Eu vou ceder, e descer.
                Relaxo. Não adianta resistir. Não há motivos para prosseguir. Não...
                Não há sentido nos movimentos biomecânicos...
                Respiro fundo e meus peitos se enchem de água. Uma parte de mim esperava por oxigênio, e esta parte se assustou com a substância que me preencheu. Tento tragar ar, mas o ar está diferente e mais espesso. O desespero me inunda. Só que estou cansado demais para sentir medo. A paz... Acho que a encontrei. Não quero morrer. Quero sentir dor mais uma vez. Quero chorar sobre as lembranças daqueles que eu amei. Quero morrer logo.
                Sentindo-me profundo...
                Pro fundo...
                Eu só queria poder ver aquele filme famoso mais uma vez.