Não há como falar de vida sem
mencionar a morte. Uma coisa define a outra e nunca se desvinculam. Esta
dicotomia não se desfaz e é eterna, por mais que sejamos frágeis e efêmeros. A
vida e a morte perduram e não mudam; são as únicas honestidades que a realidade
nos dá, transmitindo a mensagem com um tapa na cara.
Era
pra ser um cruzeiro divertido com meus amigos, até que o troço afundou e levou
consigo noventa ou noventa e cinco por cento dos passageiros, querendo eles ou
não. O restante dos que não se afundaram pela sucção da grande massa penetrando
no imenso volume de água e caindo vagarosamente às profundezas escuras e frias
e de pressão inconcebível para qualquer crânio... Aqueles que sobreviveram a esta
sucessão de eventos catastróficos ainda assim sofreram tragédia e ficaram
nadando sem prumo. Uns ficaram parados no local, esperando que alguma entidade
divina viesse resgatá-los numa rede, e outros se desatinaram para qualquer
lugar, guiando-se pelo Sol. Mas o Sol muda de posição constantemente, então
logo este pessoal deve ter se perdido nesta bússola traiçoeira e morrido de
desespero.
Isso
aconteceu há dois dias.
Eu
não consigo pensar direito mais. Estou muito cansado. Fatigado. Não aguento
mais, porém não enxergo terra firme. Fico mexendo as pernas e braços sem pensar
direito, no piloto automático, nadando que nem cachorrinho. Não sei se estou
naufragado; se naufrágio exige que a pessoa esteja desertada em uma ilha, que
nem naquele filme famoso que eu vi uma vez só, na infância; ou se estar perdido
no meio do oceano já basta. Eu não sei o que é naufrágio.
Eu
não sei.
Eu
não sei de mais nada.
Não
consigo pensar. Estou muito cansado. Queria poder dormir. Queria comer mais uma
vez o bolo de chocolate que minha mãe sempre faz. Meus músculos ardem em brasa
e todo meu corpo chora de cãibra. Pele enrugada e esquisita por causa do sal. E
aquele sentimento iminente de que vai vir um peixe estranho e gigante por baixo
de mim e me despedaçar entre os dentes agudos.
Eu
não sei.
Só
queria poder pegar minha filhinha no colo – aquela filha que provavelmente não
vou ver nascer. Só queria poder reviver algumas memórias e lugares com meus
pais, contar as piadas de humor ácido com meus amigos – que agora são cadáveres
no fundo do mar – e poder beijar novamente minha ex-esposa. Queria poder
redescobrir o amor em uma nova mulher e entrar em papos filosóficos com minha
possível alma gêmea, encontrando profundidade nela e chegando à conclusão de
que em piscina rasa só entra criança ou pessoas com medo de se afogar. Mas a
única profundidade que me resta é o grande vazio do oceano.
Isto
tudo pelo que estou passando...
Eu
só queria descansar...
Perdi
o foco do raciocínio. Meus neurônios já estão desistindo. O que eu estava
falando? Minha noção está mais perdida do que eu geograficamente. Não consigo
nem lembrar o número do quarto em que eu estava hospedado.
Isso
tudo pelo que estou passando...
É
apenas uma circunstância da vida.
Não
se define vida sem tanger a morte. Um é a causa e o efeito do outro. Um depende
do outro para existir. São conceitos...
O
que eu ia falar?
Minhas
coxas estão doendo. Eu só queria comer uma coxinha e fechar os olhos.
Conceitos... Abstratos demais... Só dá para entender o que é a vida quando a
morte está chegando... A vida é querer caminhar no parque num dia ensolarado e
respirar fundo, encher o peito de ar. Viver é diferente de sobreviver, mas
também depende disto.
Eu
não sei...
O
que estou pensando? Não faz muito sentido. Esse dia está muito ensolarado e
minha cabeça pulsa de dor. O Sol queima minhas retinas. Queria poder usar mais
uma vez aqueles óculos de Sol bonitos que minha vó me deu antes de partir. São
óculos caros, polarizados, cheios de estilo, ou, como os jovens dizem: “descolados”...
Porém, poderiam ser óculos nada funcionais e, como os antigos dizem, “bregas”,
que eu ainda quereria usá-los; porque foi minha avó que me deu com todo o seu
coração.
Viver...
Viver
é usar óculos de Sol... Viver é poder usar óculos de Sol... Viver é poder se
esconder do Sol e escolher entre sombra ou... Ou Sol...
Viver
é não estar só... No meio do oceano e pensando em morte.
Morte
é se dar conta de que todas estas filosofias vão ser sepultadas comigo e nunca
alcançarão outra vida... Pois viver é compartilhar...
Eu
só queria ter alguém comigo agora para poder dizer o quanto eu... O quanto eu
queria continuar a viver. A voltar atrás e fazer as coisas de maneira
diferente, a ter uma chance de recomeçar as coisas e a fazer coisas novas e
cometer de volta os mesmos erros para chorar sozinho encolhido no quarto e
soluçar... E respirar fundo e encher os pulmões de ar fresco... E voltar a
pensar que tudo...
Que
tudo vai melhorar, porque um coração partido não é o fim da vida, que é um pequeno
obstáculo apenas e que dói mesmo, mas, como meu avô falecido me dizia, “essas
dores não são nada comparados à dor de corno”... Não...
Estou
dando risada.
Meu
abdome está se rasgando por dentro, tamanho é o esforço que faço para me manter
flutuante nesta porcaria de água. Tudo azul, tudo azul.
Ele
dizia que “eu te amo muito, meu netinho. As dores que você sente servem para
mostrar a você que você está vivo...”, e uma dorzinha ou outra sempre é boa
para reafirmar a existência... Mas quando a existência se resume a dores, qual
é o sentido de continuar sobrevivendo?
Eu
estou cansado...
Desisto
de mexer meus braços... E pernas...
Eu
vou ceder, e descer.
Relaxo.
Não adianta resistir. Não há motivos para prosseguir. Não...
Não
há sentido nos movimentos biomecânicos...
Respiro
fundo e meus peitos se enchem de água. Uma parte de mim esperava por oxigênio,
e esta parte se assustou com a substância que me preencheu. Tento tragar ar,
mas o ar está diferente e mais espesso. O desespero me inunda. Só que estou
cansado demais para sentir medo. A paz... Acho que a encontrei. Não quero
morrer. Quero sentir dor mais uma vez. Quero chorar sobre as lembranças
daqueles que eu amei. Quero morrer logo.
Sentindo-me profundo...
Pro fundo...
Sentindo-me profundo...
Pro fundo...
Eu
só queria poder ver aquele filme famoso mais uma vez.