quarta-feira, 14 de maio de 2014

Sem rumo



Eu bebi demais. Sequei uma garrafa e daí peguei outra ali de perto, e então andei mais e achei outra abandonada de alguma coisa forte, bem alcoólica, e virei tudo na boca, babando e bebendo. Não tinha ninguém para ver a cena. Antes disso não me lembro de nada. E acabo de perceber que estou segurando uma garrafa de vodca vazia. Não sei se essa é a segunda ou a quarta garrafa que esgotei, e não sei se estavam quase cheias ou quase vazias.
Caio no chão.
A noite esfria quando entra em contato com os meus cortes nas mãos que acabei de fazer. Deixo os cacos de vidro para trás e continuo andando na rua vazia, cambaleando. Chego perto de postes com frequência, mas os desvio a tempo. Minha vista embaçada não discerne objetos ou criaturas a mais de cinco metros de distância. Tropeço constantemente no meio-fio, alternando entre rua e calçada.
Caio no chão.
Mais em diante, encontro uma garrafa com algum líquido, no meio da calçada. Eu tenho muita sorte de encontrar algo assim por aqui. Antes de pegá-la eu a chuto acidentalmente. Com mais cuidado eu me aproximo e chuto de novo a bendita. E de novo. E caio de novo no chão. E não tem ninguém para ver esta cena. A barulheira que eu faço nessa luta é ridícula. Bebo o conteúdo, que é muito patético.
Vomito tudo no chão.
Meu corpo é tomado por espasmos dolorosos no abdome. A garrafa rola até se encostar a um muro. Os pelos dos meus braços levantam-se em conjunto devido ao calafrio. Lágrimas escorrem. O som que sai da minha boca é um misto de soluço com tosse. O vômito se junta ao sangue de uma das minhas mãos – direita ou esquerda – que me sustentam na posição de quatro apoios, na qual eu me contorço. É ridículo. Não há mais dignidade neste mundo.
Prossigo me escorando pelas paredes, raspando a pele e as roupas contra diversos tipos de superfícies. Ao chegar na esquina, me estatelo no chão por conta de falta de parede, pousando brutalmente em uma ossada. O mundo está perdido. Não há vísceras, nem sangue, nem trapos, somente ossos. Isso é impossível. Forço a vista na caveira. Por algum motivo ela me parece familiar. Por algum motivo ela me faz pensar que é igual a um amigo meu que eu amo muito.
Quantas coisas destroem o nosso amor?
Isso parece um sonho.
Esqueci-me de quando foi a última vez que estive em tamanho silêncio. Absolutamente nada faz ruído. Estou tonto e surdo, e não sinto nada fora um aperto insano no coração. É surreal. Eu bebi demais.
Continuo andando rua abaixo, às vezes me embalando sem querer. A densidade de ossos aumenta na medida em que eu caminho. Cachorros, gatos, ratos, cavalos. Crianças, adolescentes, adultos, idosos. Animais, humanos. Apenas resquícios de algo que já teve vida. Espalhados por todos os cantos, de várias maneiras. Como se houvesse algum humor nisso.
Quantas coisas destroem a nossa história?
As luzes dos postes que restam piscam. A brisa se torna mais intensa e frígida com o tempo. Qual a importância do tempo depois disso tudo?
Um choro de homem aumenta gradativamente.
Procuro por todos os lados, abraçado em uma pequena árvore para não cair. Movimento a cabeça rapidamente, e isso aumenta a minha tontura.
Caio no chão. Bato a cabeça no chão.
O homem está sem uma perna. No lugar dela há apenas uma porção do seu esqueleto. Não consigo raciocinar direito nesta situação e nunca fui muito bom em biologia, mas devem ser a tíbia e a fíbula e, claro, os ossos do seu pé. Ele chora mais de pavor que de dor. A dor que ele experimenta, porém, deve ser algo de uma natureza totalmente diferente das dores que sentíamos quando o mundo ainda era normal. Tive sorte de não ter sido pego ainda. Tenho pena desse homem. Tento o máximo que posso para chegar a ele, mas eu bebi demais mesmo. Mal consigo me ajudar, mas mesmo assim eu persisto, rastejando.
Isso parece um pesadelo.
Quantas coisas destroem a nossa vida?
Uma sensação completamente estranha me invade, subitamente, no corpo inteiro de uma vez só. Meus músculos se tensionam até me petrificarem. A brisa muda, fica densa e diferente. O grito do homem agora rasga os meus ouvidos e me recorda uma criança perdida dos pais. Com uma força espantosa, gastando grande parte da energia que me resta, eu viro meu pescoço para o final da rua deserta. É tudo inédito, peculiar e assombroso para mim que parece que eu fiquei sóbrio de repente. A cor do vulto esguio é algo que foi escondido da humanidade por milênios. Eu não sei se devo chorar, gritar, ferver de fúria, gargalhar ou me render. Estou completamente sem reação.
Algo dentro de mim me impulsiona até a segurança de um caminhão imenso. Talvez o instinto de sobreviver. Embora eu não veja vantagens em continuar a viver nesse mundo. Aos poucos a minha memória de como a vida era antigamente esvai. Nós éramos idiotas ao brigarmos entre si. Ao nos machucarmos. Ao nos matarmos por motivos insignificantes. Nossos filmes e histórias de terror, nós achávamos isso tudo divertido e dávamos o nome de entretenimento. A raça humana nunca se sentiu tão patética quanto agora, frente a uma ameaça de extinção.
Enquanto ainda me escondo debaixo do caminhão, ainda com a vista embaçada e com os sentidos entrelaçados, observo o homem se debatendo de agonia. E então um clarão ensurdecedor e um som de deixar cego. Após isso, sobrou apenas o esqueleto dele. É inexplicável. Simplesmente desapareceu. É impossível. Indefeso. Eu me urinei nas calças. E me dá uma ânsia de vômito.
Quantas coisas nos restam?
E o caminhão some