quinta-feira, 3 de junho de 2010

Anjo da Morte


O intervalo é curto que não dá tempo para fumar um baseado na companhia de minha presença. A desgastada rotina é acionada no exato momento em que viro a chave entrouxada na ignição. Dando partida na joça velha do estado, reinicio o ciclo e passo pelos caminhos triviais. As mesmas prosaicas vias, avenidas, ruas e toda porcaria que é nomeada só pelo fato de ser solo recoberto de asfalto.
Simplesmente mastigo o baseado e cuspo toda a bola de tabaco. Diria que faz parte de hobby particular.
No primeiro ponto de ônibus, entram um homem trabalhador, vestido formalmente, uma mulher trabalhadora, vestida formalmente, e uma menina gostosa, vestida vulgarmente. Atualmente, catorze anos vividos são  sinônimos de experiência sexual adulta. Peitos suculentos e bundas torneadas envelhecidas por uma dúzia e mais um par de conjuntos de dúzia de meses. Dá vontade de apertar e dar tapas. Vadia.
Pensando em sacanagem ao passo que dirijo, avisto algum bêbado aleatório caído, banhado em líquido esverdeado e ácido chamado vômito e outro viscoso vermelho-sangue que o ser humano quis denominar de sangue. E  vestido formalmente. Um cidadão.
Vejo também outro ponto, logo adiante. Paro o ônibus novamente e entram um idoso, vestido  de cinza e quase virando cinzas, e uma mãe com criança nos antebraços e pressionada contra os caídos bustos. A pessoa e a pessoinha as duas vestidas de azul. Quase despercebida, outra criança de quatro anos, vestida de conjunto de Hello Kitty, segura fortemente o vestido azul-bebê da mulher do bebê.
Odeio crianças. Pirralhada.
Podem me chamar de ranzinza, vão tomar no cu.
A moça e pirralhada assentam-se ao fundo, porém o velho continua de pé, ao meu lado.
– Que dia quente hoje né? – disse enquanto desferindo ato clichê em sua testa: dorso da mão descrevendo linha horizontal para remover uma exsudação que sequer existiu.
Não respondo.
– Parece que vai acabar o mundo, tá cada dia mais quente. – sacode a blusa de velho para frente e para trás. Ou para lá e para cá, não sei o que está acontecendo, me concentro no caminho que sigo.
Nem sei por que.
– Virge Maria, dá arrepio em falar nisso. – acrescenta, fazendo sinal da cruz.
Ignoro e dirijo.
Pergunto-me se ele notou que estou me lixando para sua tentativa de criar laços afetivos articulando palavras mais inúteis que atrativas ou se ele está mesmo falando com minha pessoa menos atrativa e mais inútil ainda.
Furos de telejornal: “Um motorista de ônibus a menos no mundo”, “Cadáver contorcido nas ferragens que aparenta ser de motorista de ônibus que vestia algo azul e preto” ou até “Motorista de ônibus morreu”.
E daí?
Há algo estranho à frente. Um tapete colorido gigante feio pra caralho. E como um lampejo realmente iluminado que paira sobre minha consciência e logo alça vôo para bater em muro qualquer, lembro que hoje é Corpus Christi. Feriado ou não de algo que nem sei sobre o que se trata.
Odeio estes tapetes, só trancam o trânsito. São ridículos. Os seres, que o ser humano patenteou de seres humanos, que confeccionam toda esta confusão, são patéticos. Caminham no tráfego, implorando morte.
O ser da terceira idade fala e cuspe enquanto manobro o veículo coletivo. Banguela e cheirando a mofo, típico de terceira idade. Agacha-se com as palmas nas costas e num simples momento de ato retoma a juventude, re-encaixando a dentadura.
– Essa dentadura vive caindo! – pega-a novamente em durante uma nova e sucinta queda. – Viu só?
Volante para lá e para cá e história de como alguém perdeu os dentes investindo em minha consciência, um próximo ponto me aguarda. Vejo rappers e emos juvenis nas duas calçadas que definem um asfalto de nome rua. Vestidos de roupas largas e justas, respectivamente. O paradoxo urbano da futilidade pueril.
O tapete se estende até onde a vista não alcança. Serragem, tampinhas, recicláveis e parafernálias coloridas vão se embaralhando e entrelaçando com a minha compreensão.
Filho da puta! Saia da frente!
– Filho da puta! – retiro a cabeça do interior do transporte coletivo estatal, para a esquerda e passando o que hoje já foi vidro da janela e agora guardado encontra-se. – Suma daí!
– Desculpe cara! Malz ae, manolo!
Desculpe o caralho, manolo o cacete! O próximo que se enfiar vai virar purê. Vai abraçar o diabo. Abraçar as rodas. Virar tapete. Unir-se ao asfalto.
Não sei por que fazem estes tapetes de merda no meio da porra da rua! Não sei  por que fazem! Futilidade total! Caterva de desesperados!
– Você é antipático demais rapaz! – uma voz que experimentou sessenta e dois anos ataca-meda direita. – Não dá a mínima para as pessoas! Não respeita idosos! – cale a boca, velho escroto.
Já no ponto, somente sobe um escoteiro de dez anos talvez, vestido de escoteiro. O ponto positivo da coisa é que o velho retardado desceu do ônibus. Aleluia! Cheguei ao ponto e o velho saiu. Glória!
– Olá senhor! – cumprimenta cordialmente o escoteirinho disciplinado.
– Vou ligar a porra do ônibus, faz o favor de sentar?
Com certeza ficará melhor para suportar a artilharia da rotina. Tudo calmo. Dá para respirar ar de novo.
O menino senta e agora geme entre os finos músculos dos braços escondidos pela frágil pele infantil. Consolado pela multidão, recebo maus olhares.
Fanáticos por futebol. Odeio.
Plena Copa do Mundo, naquele cu de mundo chamado África. “Brasil × Zimbábue”. Segundo cochichos, está no segundo tempo, três a zero para o Brasil. Esses perebentos do Zimbábue não servem para nada mesmo. Queria ter o prazer de erguer uma bandeira do Zimbábue e gritar: “Zimbááábue!”.
Uma suástica faria menos tumulto que uma bandeira do Zimbábue.
Outro ponto.
Subiram um mano, um emborrachado, um mendigo e um gay. Que podridão. Todos degradando pelas vestimentas.
O bêbado pára ao meu lado. Impressionantemente, fica de pé, com uma garrafa de 51 meio na mão. Eu mereço isto!
– Esse ônibus vai pra Honda? Onde fica a Honda? – engole gole e se desequilibra por segundos.
– Não senhor. Não vai pra Honda. Não sei onde fica a Honda.
Honda? Que Honda?
– Eu vi um periquito comendo bolacha, daí falei pra ele: “Ei seu periquito Trakinas!”. – legal.
– Legal. – legal...
– Daí eu... #BLERG#
– Filho da puta!
O cara vomitou!
Freio brusco do ônibus, tranco o trânsito. Ironicamente ajudo o feriado de certo modo. Pego o moiado noiado, como diriam os adeptos do colóquio, e o empurro escada abaixo com a sola do pé em gesto imperioso e muito mais que satisfatório. Fecho a porta. Viva!
– Que é isso motorista? Tranca a rua e joga o pobre coitado na maior frieza! – fala o rapper degradante.
Ignoro. Impossível ignorar o sabor nasal acre que me acoberta.
– Não me ignore! – glória!
Muito engraçado, ninguém reclama dos idiotas do Corpus Christi.
– Pare de incomodar, quer ser culpado de homicídio múltiplo? Quer que eu bata a porra do ônibus numa loja e inicie uma merda dum incêndio? – desfiro bordoadas frenéticas e carregadas no volante, pobre volante. – É cego e não viu o idiotão ali fora cuspir fel em mim? Quer provar um pouco dessa porra?
– Desculpe, senhor. – recua.
Desculpe o caralho. Sente-se e cale essa boquinha de chupar pinto. Vá brincar com o seu grupinho urbano jovem: “+flds”, “Betas”, “USB”, “PQP”... Seu círculo social com denominações desnecessárias. Onde já se viu tamanha imbecilidade?! Mereço isso!
A rotina continua e paro em mais pontos, sob olhares sombrios dos passageiros e nojeira ácida. Sobem crianças, saem gostosas. Sobem gostosas, saem emos. Todos vestidos informalmente. Sempre na mesma monotonia de cores, ironicamente coloridas. O rapper idiota desce, entra outro. Uma merda repõe a outra. Legal!
Pelo menos não entram idosos caducos e bêbados filhos da puta para defecarem em meus ouvidos. Viva!
Os tapetes perlongam-se pelos traços delicados do horizonte. Parecem não acabar. Pelo retrovisor, uma dupla de idiotas com malas escolares alaranjadas me perseguem. Ó o desespero dos rapazes.
Há há há!
Um garoto de rua começa a dançar funk carioca, em meu caminho, me desafiando. Pensa que não sou capaz de passar por cima. Continue a dançar, pequeno garoto. Fique onde está, dançando. Isso, baixe as calças e dê tapinha nesta sua bunda branca. Dance até eu ganhar velocidade.
– Meu Santo Cristo de Nazaré! O motorista atropelou alguém! – exalta a mãe-azul.
– Quietos, agora será como eu quiser! – atravesso qualquer tentativa de alvoroço. – Sem pontos de ônibus sem tolerância. Estava  me segurando para não me explodir.
Sorrio.
Ah, como um sorriso traz luz ao dia.
– Só mais um recado, tenho uma pistola e muito bem carregada!
Ah, que alívio. O piá-de-bosta já não é mais humano e faço o que bem entender. A primeira coisa que me vem em mente é passar por cima daqueles tapetes inúteis. Aleluia!
Os maratonistas das malas recuaram ou pela submissão ao esforço ou pela submissão ao terror.
– Moço, pare! Assim você vai atrop...
Disparo contra o teto já é o suficiente para calar a horda. Passo por cima de tapetes, massacro indivíduos, faço panquecas, decoro o asfalto e comemoro o feriado do meu jeito. Algumas pessoas irão ao paraíso, fizeram tapetes lindos! Glória!
– Podem me chamar de ranzinza, vão se foder! – vale a pena ressaltar o ressalto que dei ao verbo de fornicação coloquial.
Retiro todo o odor desagradável que misturou ao meu ser, o cheiro remanescente de bêbado transeunte, o produto de uma noite muito agitada ou uma manhã de perdas imensas.
Resumindo: tiro até a cueca e fico simplesmente pelado.
E estou me lixando para isto.
Idiotas gritando: “Brasiiil!”. Já eram.
Bêbados golfando. Já eram.
Emos, pirralhos com balões, palhaços com balões, pedintes. Trogloditas. #PLOFT# Aleluia! Uma cabeça alada! É um milagre!
– Tio, pale de fazê is... – uhuul!
– Alguém mais quer levar bala do homem nu? Alguém mais quer ter o mesmo fim que esta criancinha? Querem 33 milímetros de ódio e poder? – hahahaha!
– Você é louco! Vou ligar para a pol...
Lá se foi a dona azulada. O bebê caiu e a cabeça abriu igual a uma abóbora. Viva!
Nunca me passou pela cabeça que a Desert Eagle que herdei do vovô viria a ser útil. Jogada na mesa da sala, pronta para ser disparada para cima, para baixo e para os lados. Que bom!
– Continuam a desafiar? Quem avisa amigo é, tenho mais um pente guardado aqui! – aponto com o cano da arma para minha calça no piso do veículo. – Vão querer chumbo? – viva!
Calem-se! Não agüento esta putaria. Trabalho como escravo, agüento baixarias das mais diversas e nem tempo para respirar tenho! Nem tempo para pitar! Vou atropelar todos. Fanáticos por futebol, crentes, piás-de-bosta e bebuns empoçados.
Divertido.
– Tá quente hoje, né pessoal? Querem nadar um pouco? – eba!
– Não tá quen...
Pow no emuxo!
Tudo que preciso fazer é pisar com força no acelerador e derrubar o corrimão de proteção contra quedas.
Sou o monstro da sociedade, fruto da cretinice. Cria do capitalismo, libertador de almas. Limpador da piscina da humanidade. Sou o anjo da morte.
Ai, como eu queria poder ler a manchete de amanhã.
“Homem nu de sapatos e meias sociais e pistola implantada no corpo e também ferragens retorcidas de ônibus é encontrado boiando no rio ‘Quebra Perna’ mergulhado em cadáveres múltiplos e mutilados formando uma bela obra de arte e uma excêntrica carnificina urbana regada a litros e mais litros de o que seres humanos decidiram dar o nome de sangue.”
E.
Fim.