Aquela menina é muito linda. Eu acho que
me apaixonei por ela. Parece ser boa gente, pois tem um sorriso perene no rosto
que emana sinceridade com uma perfeição tocante. Eu sei que perfeição não
existe, mas tudo acima do padrão que estabeleço de belo por definição já o é
sublime ao extremo. Perfeição é o corolário das minhas expectativas. Meu padrão
de aceitável está posto em um nível bem baixo, de tal modo que não exijo muito
dos meus amores platônicos, pois eu sou um homem simples. Talvez inseguro. Não
sei. Não importa.
Nem
sei mais o que estou pensando. A beleza dela é arrebatadora e eu preciso pensar
em algo rápido para chamar sua atenção.
A
moça está vindo pela calçada, sozinha, toda sorrisos e radiância. Covinhas em
seu rosto de pele lisa ressaltam sua pureza. Quem sou eu para merecê-la? Ela
está chegando.
–
Oi, bom dia. – cumprimento-a com cordialidade. – Tudo bem?
Ela
passa batido por mim, sorrindo. Não me ouviu, não me percebeu. Tenho certeza de
que minha voz foi alta e audível. A garota dos meus sonhos está indo embora e
talvez este dia seja a minha única oportunidade para atrai-la. Preciso, ao
menos, chamar sua atenção, custe o que custar. Uma pequena atitude impensada,
uma decisão mal tomada, irá mudar completamente o rumo de nossas vidas daqui em
diante. Um laço se formará caso eu escolha a persona correta para evidenciar
aos seus olhos celestes límpidos.
Corro
até o outro lado da rua, pulando por cima de carros estacionados e antes quase
me estatelando em um capô em movimento. Buzinas estridentes surram meus ouvidos
internos, mas isso não importa, pois tudo valerá a pena. Entrando na lojinha de
avatares “Perfil Certo”, pesquiso rapidamente com os olhos por um rosto
atraente. Percorro as prateleiras com destreza e aperto o passo na linha tênue
e iminente entre um passeio tranquilo e uma corrida enlouquecida pela vida. Meu
coração estoura no peito quando eu encontro a face masculina mais bela que
achei.
–
É lindo demais... – digo em voz alta, pois quero que todos percebam que eu fui
privilegiado por ter contemplado tal beleza.
Os
transeuntes não ligam para minha opinião, mas alguns poucos desconhecidos
passam com o polegar levantado e cara fechada ao meu lado. Esses poucos polegares
erguem o meu ânimo e eu grito bem alto:
–
É esse o rosto que eu vou comprar! – faço questão que me ouçam até de fora da
lojinha. Quem sabe o amor da minha vida ouça minha confiança, lá da calçada. – Pessoal,
com isso eu conseguirei conquistar a garota mais bonita que eu já vi!
Agora
são mais polegares que se levantam e se somam à bajulação, enquanto outros nos cantos se tornam irritados e me xingam e xingam tudo e desferem murros na parede, e uns
dum terceiro tipo desabam no chão e choram numa crise existencial escandalosa.
Levo
um tombo espiritual quando noto o preço do rosto em minhas mãos.
É
muito, muito caro. Não tenho cacife para bancar uma coisa tão custosa assim.
Tampouco tenho limite no cartão de crédito para fazer uma aquisição dessas.
Contudo, minha vida depende desse semblante perfeito, sem espinhas, sem
cicatrizes e com poros fechados. Preciso pensar em algo.
–
Já sei! Tive uma ideia brilhante! Eu sou demais! – deixo bem claro que eu sou
um gênio, e com essa autoafirmação me sinto melhor.
Tiro
a roupa no meio da loja e fico nu, com minha genitália pequena pendendo
inutilmente. Tento virar uma estrela e falho miseravelmente, chocando de
costela no azulejo do chão. Minha pança faz um barulho de baleia levando tapa
quando beija a cerâmica gelada e lustrosa. A cena é cômica e sinto pena de mim
mesmo. Acho que me defequei um pouco no calor do momento, e agora várias
pessoas anônimas, cujas faces estão de repente cobertas por véus negros,
apontam para minha situação lamentável no chão. Estão rindo, estou as
entretendo. De um instante ao outro, com minha humilhação, minha máscara está
paga e agora posso vesti-la. Levanto-me, ainda sem fôlego, e visto minhas
roupas, cubro minhas vergonhas. Não preciso passar no caixa, pois agora sou
famoso, sou conhecido por todos daqui e fiz a vida deles melhores por terem
testemunhado tamanha patetada.
Saio
pulando da loja, agora um outro homem. Meu rosto novo e lindo.
Persigo
com obsessão minha desejada, que já está duas quadras à frente, iluminando e
iluminada pela sua própria beleza mesmo de longe e de costas. Ela vai ser
minha!
–
Ela vai ser minha! – corro.
Corro,
corro, ajeitando minha máscara.
Corto
a frente da moça, ajeito a postura, enfuno o peito, ajusto meu timbre de
bazófia, respiro fundo e confiante, e digo a ela:
–
Oi, bom dia.
–
Ooi, tudo bem com você? – ela responde de prontidão, me aprovando.
–
Estou sim. E você? – prossigo a conversa naquele tom firme.
–
Também estou. – ela está sempre sorrindo. – Que bom, né?
–
Sim. Achei você muito bonita, e aposto que deve ser bem interessante, também.
–
Ah, sim. Obrigada.
Ficamos
nos encarando. Meus olhos castanhos ordinários e os azuis abençoados dela. Ela
é tão linda. Não acredito que vou consegui-la. Estou pensando nos nossos
filhos. Eles serão muito bonitos e terão nomes de anjos. Não acredito que eu,
justo eu, esse cara feio, conseguirá uma moça tão elevada e bonita e sorridente
e alto-astral. Seu perfil transparece alegria plena.
Estamos
em silêncio. Estamos parados no meio da calçada.
Preciso
pensar em algo.
–
Então... – digo, coçando a nuca, mas mantendo meu sorriso convidativo. – Como
você se chama?
–
Clara. – responde, feliz.
De
volta, retornamos ao silêncio; e a culpa é toda minha. Não consigo sustentar
essa conversa. Nunca fiz algo assim. Nunca conversei com uma moça.
–
Então... – digo, pensando em algo. – O que acha de nós...
Meu
peito arde e dele um jato de sangue espirra no rosto da mulher. Todavia ela é
tão perfeita que tudo o que a toca não a suja. Realmente intangível. Linda,
ainda sorrindo, mesmo depois de ter enfiado esta estaca no meu coração
pulsante.
Minha
visão borra por trás do meu rosto bonito que vesti. Meus joelhos cedem e sinto
que a energia esvai de meu corpo, logo a se tornar cadáver. Já deitado nas
pedras pontiagudas da calçada, aos pés de Clara – muito perto deles, mas não
permitido a tocá-los – meu último relance do mundo é o sorriso lindo e
indiferente dela. Completamente desinteressada, ela passa por cima de mim como
se eu nunca tivesse existido. Enquanto isso eu sofro, e comigo ela deixa toda a
inconveniência para trás. Eu sou uma inconveniência para ela, devo morrer. Não
tenho direito de existir, pois sou inseguro e insuficiente. Clara caminha, já
na esquina e atravessando a rua toda altiva, fora da faixa de pedestres e sem
ao menos olhar aos dois lados para checar o trânsito. Afinal, ela não precisa
perder tempo com coisas triviais como estas, pois ela é impossível e está correta.
Eu estou errado e deixarei este mundo sabendo que estou errado e orgulhoso em
saber que não incomodei Clara e que ela terá sua chance de ser feliz com outro
cara no seu nível.
Adeus,
minha deusa. Obrigado por me dar uma chance.
–
Desculpa por ser chato... – digo, cuspindo uma torrente de sangue arterial
claro.
E
é no último instante de vida que eu me recordo do rosto sorridente da minha
amada. E é tarde demais, quando estou deixando de existir e deixando tudo para
trás, perdendo todas as oportunidades e todas as oportunidades de ter oportunidades,
que me sinto arrependido.
Minha
vida passou tão rápido e eu a desperdicei. Pra quê?
Fiz
tudo por Clara.
E
a imagem de seu rosto feliz com covinhas assalta minha mente.
Clara,
tão perfeita e tão fria quanto um boneco de cera.
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