domingo, 8 de outubro de 2017

Bonecos de cera

Aquela menina é muito linda. Eu acho que me apaixonei por ela. Parece ser boa gente, pois tem um sorriso perene no rosto que emana sinceridade com uma perfeição tocante. Eu sei que perfeição não existe, mas tudo acima do padrão que estabeleço de belo por definição já o é sublime ao extremo. Perfeição é o corolário das minhas expectativas. Meu padrão de aceitável está posto em um nível bem baixo, de tal modo que não exijo muito dos meus amores platônicos, pois eu sou um homem simples. Talvez inseguro. Não sei. Não importa.
            Nem sei mais o que estou pensando. A beleza dela é arrebatadora e eu preciso pensar em algo rápido para chamar sua atenção.
            A moça está vindo pela calçada, sozinha, toda sorrisos e radiância. Covinhas em seu rosto de pele lisa ressaltam sua pureza. Quem sou eu para merecê-la? Ela está chegando.
            – Oi, bom dia. – cumprimento-a com cordialidade. – Tudo bem?
            Ela passa batido por mim, sorrindo. Não me ouviu, não me percebeu. Tenho certeza de que minha voz foi alta e audível. A garota dos meus sonhos está indo embora e talvez este dia seja a minha única oportunidade para atrai-la. Preciso, ao menos, chamar sua atenção, custe o que custar. Uma pequena atitude impensada, uma decisão mal tomada, irá mudar completamente o rumo de nossas vidas daqui em diante. Um laço se formará caso eu escolha a persona correta para evidenciar aos seus olhos celestes límpidos.
            Corro até o outro lado da rua, pulando por cima de carros estacionados e antes quase me estatelando em um capô em movimento. Buzinas estridentes surram meus ouvidos internos, mas isso não importa, pois tudo valerá a pena. Entrando na lojinha de avatares “Perfil Certo”, pesquiso rapidamente com os olhos por um rosto atraente. Percorro as prateleiras com destreza e aperto o passo na linha tênue e iminente entre um passeio tranquilo e uma corrida enlouquecida pela vida. Meu coração estoura no peito quando eu encontro a face masculina mais bela que achei.
            – É lindo demais... – digo em voz alta, pois quero que todos percebam que eu fui privilegiado por ter contemplado tal beleza.
            Os transeuntes não ligam para minha opinião, mas alguns poucos desconhecidos passam com o polegar levantado e cara fechada ao meu lado. Esses poucos polegares erguem o meu ânimo e eu grito bem alto:
            – É esse o rosto que eu vou comprar! – faço questão que me ouçam até de fora da lojinha. Quem sabe o amor da minha vida ouça minha confiança, lá da calçada. – Pessoal, com isso eu conseguirei conquistar a garota mais bonita que eu já vi!
            Agora são mais polegares que se levantam e se somam à bajulação, enquanto outros nos cantos se tornam irritados e me xingam e xingam tudo e desferem murros na parede, e uns dum terceiro tipo desabam no chão e choram numa crise existencial escandalosa.
            Levo um tombo espiritual quando noto o preço do rosto em minhas mãos.
            É muito, muito caro. Não tenho cacife para bancar uma coisa tão custosa assim. Tampouco tenho limite no cartão de crédito para fazer uma aquisição dessas. Contudo, minha vida depende desse semblante perfeito, sem espinhas, sem cicatrizes e com poros fechados. Preciso pensar em algo.
            – Já sei! Tive uma ideia brilhante! Eu sou demais! – deixo bem claro que eu sou um gênio, e com essa autoafirmação me sinto melhor.
            Tiro a roupa no meio da loja e fico nu, com minha genitália pequena pendendo inutilmente. Tento virar uma estrela e falho miseravelmente, chocando de costela no azulejo do chão. Minha pança faz um barulho de baleia levando tapa quando beija a cerâmica gelada e lustrosa. A cena é cômica e sinto pena de mim mesmo. Acho que me defequei um pouco no calor do momento, e agora várias pessoas anônimas, cujas faces estão de repente cobertas por véus negros, apontam para minha situação lamentável no chão. Estão rindo, estou as entretendo. De um instante ao outro, com minha humilhação, minha máscara está paga e agora posso vesti-la. Levanto-me, ainda sem fôlego, e visto minhas roupas, cubro minhas vergonhas. Não preciso passar no caixa, pois agora sou famoso, sou conhecido por todos daqui e fiz a vida deles melhores por terem testemunhado tamanha patetada.
            Saio pulando da loja, agora um outro homem. Meu rosto novo e lindo.
            Persigo com obsessão minha desejada, que já está duas quadras à frente, iluminando e iluminada pela sua própria beleza mesmo de longe e de costas. Ela vai ser minha!
            – Ela vai ser minha! – corro.
            Corro, corro, ajeitando minha máscara.
            Corto a frente da moça, ajeito a postura, enfuno o peito, ajusto meu timbre de bazófia, respiro fundo e confiante, e digo a ela:
            – Oi, bom dia.
            – Ooi, tudo bem com você? – ela responde de prontidão, me aprovando.
            – Estou sim. E você? – prossigo a conversa naquele tom firme.
            – Também estou. – ela está sempre sorrindo. – Que bom, né?
            – Sim. Achei você muito bonita, e aposto que deve ser bem interessante, também.
            – Ah, sim. Obrigada.
            Ficamos nos encarando. Meus olhos castanhos ordinários e os azuis abençoados dela. Ela é tão linda. Não acredito que vou consegui-la. Estou pensando nos nossos filhos. Eles serão muito bonitos e terão nomes de anjos. Não acredito que eu, justo eu, esse cara feio, conseguirá uma moça tão elevada e bonita e sorridente e alto-astral. Seu perfil transparece alegria plena.
            Estamos em silêncio. Estamos parados no meio da calçada.
            Preciso pensar em algo.
            – Então... – digo, coçando a nuca, mas mantendo meu sorriso convidativo. – Como você se chama?
            – Clara. – responde, feliz.
            De volta, retornamos ao silêncio; e a culpa é toda minha. Não consigo sustentar essa conversa. Nunca fiz algo assim. Nunca conversei com uma moça.
            – Então... – digo, pensando em algo. – O que acha de nós...
            Meu peito arde e dele um jato de sangue espirra no rosto da mulher. Todavia ela é tão perfeita que tudo o que a toca não a suja. Realmente intangível. Linda, ainda sorrindo, mesmo depois de ter enfiado esta estaca no meu coração pulsante.
            Minha visão borra por trás do meu rosto bonito que vesti. Meus joelhos cedem e sinto que a energia esvai de meu corpo, logo a se tornar cadáver. Já deitado nas pedras pontiagudas da calçada, aos pés de Clara – muito perto deles, mas não permitido a tocá-los – meu último relance do mundo é o sorriso lindo e indiferente dela. Completamente desinteressada, ela passa por cima de mim como se eu nunca tivesse existido. Enquanto isso eu sofro, e comigo ela deixa toda a inconveniência para trás. Eu sou uma inconveniência para ela, devo morrer. Não tenho direito de existir, pois sou inseguro e insuficiente. Clara caminha, já na esquina e atravessando a rua toda altiva, fora da faixa de pedestres e sem ao menos olhar aos dois lados para checar o trânsito. Afinal, ela não precisa perder tempo com coisas triviais como estas, pois ela é impossível e está correta. Eu estou errado e deixarei este mundo sabendo que estou errado e orgulhoso em saber que não incomodei Clara e que ela terá sua chance de ser feliz com outro cara no seu nível.
            Adeus, minha deusa. Obrigado por me dar uma chance.
            – Desculpa por ser chato... – digo, cuspindo uma torrente de sangue arterial claro.
            E é no último instante de vida que eu me recordo do rosto sorridente da minha amada. E é tarde demais, quando estou deixando de existir e deixando tudo para trás, perdendo todas as oportunidades e todas as oportunidades de ter oportunidades, que me sinto arrependido.
            Minha vida passou tão rápido e eu a desperdicei. Pra quê?
            Fiz tudo por Clara.
            E a imagem de seu rosto feliz com covinhas assalta minha mente.
            Clara, tão perfeita e tão fria quanto um boneco de cera.

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