segunda-feira, 30 de outubro de 2017

Proibido de ser

Dor na nuca. Claridade. Acho que estou deitado no chão não sei de onde. Aos poucos me alevanto com os braços, terminando por ficar sentado. Olho ao redor e não vejo ninguém, só umas paredes brancas altas. O teto também é branco, e é reto, e dele vem luzes ofuscantes, por isso não me demoro muito com minhas íris aí. Fico de pé, perdido, confuso, estranhado com a situação bizarra. Moscas volantes dançam na minha visão, tanto por causa da breve luminescência, quanto pelo fato de eu ter me içado rápido demais. Fico um pouco tonto, mas já passa ao passo que eu caminho e analiso essa sala vazia de chão também branco. Há apenas uma porta lá na frente, e mesmo com receio não tenho escolhas, visto que é minha única opção para sair daqui, onde é que aqui seja.
            Giro a maçaneta. Abro a porta.
            É um lugar igual ao de antes, contudo a porta está à direita, bem lá na frente. É um lugar vasto. A porta se fecha sozinha atrás de mim e as luzes se apagam quando dou três passos adiante. Um sentimento pesado de claustrofobia me domina, mesmo que o lugar seja demasiado amplo. Por isso eu volto três passos de ré e bato com a nuca na parede. Viro meu corpo e tateio a superfície, em busca da porta de antes. Vou para a direita esfregando a mão, e não encontro nada. Depois volto pela esquerda esfregando e nada. Nada. Corro esfregando a mão até que bato a testa em uma parede perpendicular a esta. Droga. Volto correndo e passando as duas mãos na superfície para o que era para ser a esquerda, indo em sentido ao lado oposto de antes, e novamente bato a cabeça, porém em outra parede. A porta simplesmente sumiu. A angústia começa a se instalar. Ofego pesado. Não sei mais onde era para ser a direita de quando entrei aqui, onde era para ter uma porta para fora daqui, se é que ainda há alguma porta nessa estranheza. Fecho os olhos, e parece que assim tudo é mais claro do que o breu de olhos abertos. Um horror pelo esquisito se apossa de mim e se soma à angústia. Respiro fundo, tentando me recompor, e me recomponho um pouco. Decido percorrer todos os quilômetros de paredes da sala, colado nas paredes, até achar a suposta segunda porta que deveria ainda existir.
            Já não sei mais de nada.
            Não tenho opções senão andar por todos esses quilômetros cegos.
            Enquanto tateio tudo continuamente, uma ansiedade em mim me diz que, já que sumiu uma porta, pode muito bem ter aparecido uma coisa perigosa e misteriosa protuberante nas malditas paredes. Como um espinho. Ou um espinho envenenado. Mas pode haver mais de um espinho. Então eu corro agonizando, temendo que algo me arrebente as mãos ou os braços, mas querendo que isso acontece tão rápido que eu não possa nem ter tempo hábil para levar susto e ficar só com a parte da dor. Ou pode haver dois espinhos bem finos na altura das minhas órbitas oculares numa parede me esperando para penetrar em meus olhos gelatinosos e me triturar os cérebros no momento em que eu supostamente fosse bater a testa novamente em uma nova superfície desgraçada. Então eu paro de correr e volto a andar. Uma mão temerosa esticada na frente e outra temerosa grudada na parede.
            Coração a mil. Na garganta. Traqueia se fechando. Engolindo seco. Têmporas se comprimindo.
            Solidão. Estou só. Solitário.
            Eu grito. Eu grito muito.
            – Alguém me ajude! – berro.
            Ninguém responde e só ouço ecos e reverberações de meu lamento frouxo.
            – Socorro! – berro novamente. – Tenho medo de ficar sozinho!
            Nada. Nem ninguém. Antes aparecesse um espinho para que eu ficasse menos solitário... Mas que, por favor, não apareça um monstro sanguinário com visão noturna em algum ponto desse átrio medonho. Pelo amor de tudo o que é sagrado...
            – Alguém está aí? – ouço um som.
            Paro de andar. Não sei quantos milhares de metros já percorri.
            Escuto algo baixo, vindo de longe. Viro a cabeça por instinto em direção ao ruído, mas não enxergo nada porque, obviamente, está tudo escuro. Meu raciocínio está começando a falhar. Meu peito quer explodir. Viro a orelha em direção ao ruído, que agora está mais alto. É um gemido de alguém sofrendo. Não. Não é isso. É um rosnar... É uma criatura rosnando! A ferocidade de seu som se converte em babas raivosas na minha mente perturbada. Minhas pernas ficam bambas, quando eu deveria continuar correndo. O som de suas patas me lembram unhas riscando concreto. Com uma força descomunal vinda lá dos confins do terror pelo desconhecido eu, de alguma maneira, corro.
            A ansiedade se instaura.
            A selvageria aumenta atrás de mim, de modo que não consigo mais respirar. E no calor do momento acabo me afastando da parede, tropeço e dou de joelhos no duro, ergo-me num impulso animal e dou uma guinada para a direita, onde talvez a porta deveria estar. Ou um espinho. Ou outro tipo de armadilha. Só quero fugir desse demônio que me persegue. O que foi que eu fiz?! Que lugar é esse?!
            Meu pé pisa em falso e caio num buraco. Dou uma cambalhota no ar e me estatelo de mal jeito. Não sei a profundidade do troço, mas é bastante apertado e faz voltas. É úmido, e nele eu derrapo de ponta-cabeça. Um tobogã dos infernos. Cubro a tampa do meu crânio com os dez dedos e duas palmas. Encolho as pernas numa curva brusca, sempre descente, no receio de a criatura ainda estar me seguindo e desejar morder meus pés com suas presas podres e tetânicas.
            O tubo de pedra me joga pro lado, e pro outro, e me arrebento todo assim, virando que nem uma bola e já todo desorientado. O que é cima?! O que é baixo?! Estou caindo pra cima ou pro lado?! Embolo-me que nem um lixo.
            Choro sozinho. Ninguém sabe onde estou, ninguém vem me resgatar e não paro de cair.
            Aonde estou indo? Eu quero minha mãe... Eu quero colinho... Eu quero cafuné...
            Onde estou?! Cadê meus amigos?! Preciso de consolo emocional. Meu imo arde mais que meus hematomas e esfolados. Isso tudo fede – ou deve feder, porque não sei mais o que é odor e o que é tato.
            Caio de costas com brutalidade em uma superfície mais dura do que as das duas salas de antes. O tranco me faz morder a língua e engolir a lamúria. A vida me coage a cessar com todas as demonstrações de desespero por um instante, pois a dor é maior do que qualquer coisa. Tamanha é que depois de uns trinta segundos ou mais ou menos eu me apercebo de que estou em um lugar aberto e luminoso que nem o dia.
            Inclusive, eu vejo o Sol raiar.
            Aliás, estou na cidade, de volta à sociedade.
            Rolo para pegar uma posição boa e me levanto de supetão, foda-se a vertigem que vem disto. Estou a salvo... Também não estou mais sozinho...
            Avisto pessoas.
            Pessoas!
            – Socorro! – grito a elas, indo a elas. – Alguém me ajude!
            Mancando, vejo que me locomovo numa calçada. Há prédios nos arredores. Esse lugar me é familiar.
            – Oi, vocês aí! – digo a um grupinho.
            É a cidade onde eu moro. Olho para trás só para me certificar de que nenhum animal carnívoro faminto está na minha cola. Olho para baixo para averiguar se há ou não buracos na calçada. Parece ser mesmo a minha cidade onde eu desemboquei com violência a partir do surreal.
             – Oi! – falo, agora em frente ao grupinho de pessoas. Arfo. Estou todo rasgado.
            São dois homens e três mulheres conversando. Fora eles, não observo mais nenhum ser humano aqui.
            – O que está acontecendo? Vocês viram a partir de onde eu cai? – pergunto. – Eu surgi do nada, foi estranho.
            Os cinco indivíduos conversam, me ignorando.
            – Olá?
            Encaro um deles, mas ele não desvia o olhar para mim e dá risadas de uma piada que uma loira bonita contou. Sorrio um pouco, porque foi uma piada boa mesmo.
            – Nossa, que engraçado! – dirijo-me à loira, tentando ser amigável.
            A loira não me olha e todos continuam me ignorando. Fico meio sem jeito e saio de perto à francesa, coçando a nuca pulsante. Ao virar, surge um idoso em minha frente e eu dou uma topada com ele. Quase o derrubo no chão, mas o seguro para que isso não aconteça. Fico totalmente sem jeito.
            – Desculpa, senhor. – digo, franco. – Eu não vi o senhor aí.
            Ele me olha com seus olhos úmidos por trás das lentes garrafais dos seus óculos, e não diz nada. Prossegue com seu caminho, me deixando para trás de maneira indiferente. Acompanho-o com a cabeça, perplexo, parado, e ele vira uma esquina. Quando viro meu corpo novamente, em sentido aonde o idoso veio, há um homem parado com as mãos na cintura, me encarando.
            Eu sinto que ele me enxerga, e por isso me apresso até ele.
            – Oi, senhor! – estendo o braço para cumprimentá-lo. – Meu nome é Francisco e eu estou meio perdido. Você poderia me dizer onde estou?
            Seu olhar me atravessa como se eu fosse um inútil indigno de ser respondido. Meu braço pendente é completamente ignorado, e o cara faz um sinal de negação com a cabeça, como se eu tivesse feito algo errado.
            Estou ficando nervoso.
            – Senhor, eu fui educado com você, o que foi que eu fiz pra você?! – pergunto, preocupado. – Só me diga se não está sentindo um clima meio diferente no ar, um peso, não sei, algo esquisito, porque está muito estranho o meu dia hoje. – digo. Ele não responde. Insisto. – Sério, me ajude um pouco, estou precisando de ajuda. Depois eu paro de incomodá-lo, eu prometo. Só quero uma informaçãozinha, coisa rápida.
            – Suma daqui. – ele profere assertivo, com tom de desprezo.
            Um calafrio percorre meu corpo. O sorriso esmaece em meu rosto.
            – Mas eu não fiz nada... – digo para mim, pois o homem se incomoda e volta para dentro do barzinho.
            Sinto-me sozinho. Solitário. Solidão. Só.
            Viro à esquerda e vejo pessoas do outro lado da calçada. Estão paradas em frente a uma livraria genérica sem nome. Riem demais consigo mesmos. Dou um passo em direção a eles, mas hesito muito e por fim não atravesso a rua. Sinto que é muito errado ir atrás deles e perturbar seu lazer. Será que estou cego pela ansiedade e estou fazendo algo errado? Estou sendo ofensivo? Sou impertinente?
            – Você é muito inseguro. – uma voz feminina diz, ao meu lado. – Saia daqui.       
            – Mas... – digo, engasgando as palavras e querendo chorar. Ofendido. – Eu não fiz nada...
            A mulher se aproxima de mim, altiva. Encara-me por cima.
            – Ninguém gosta de gente que nem você. Você é muito ansioso. Saia daqui.
            Uma lágrima sai pelo meu olho. Sinto-me humilhado. Sinto que a perdi antes mesmo de tê-la perdido, porque minha mera existência é inconveniente. Giro o corpo para me afastar dela, com o choro querendo explodir, e de repente várias pessoas estão vindo para cá, caminhando em ritmo normal do cotidiano. Estão apressadas e acabam me atropelando. Sou jogado para um lado pelo fluxo. Um fluxo contrário aparece do nada e me joga para o outro lado, me esmagando em um sanduíche de pessoas. Ninguém liga para o que estão fazendo comigo. Estou precisando de carinho...
            Buzinas do dia-a-dia brotam no ar a partir do nada, e um vozerio urbano se adensa.
            Alguém me joga dentro de um beco e eu caio deitado. Aponta-me o dedo.
            – Cale a boca! – grita com ódio.
            – Por fa-favor, não brigue comi-comigo... – digo, a face cheia de lágrimas pesadas e aflito amargamente. – Eu só quero um pouco de atenção... Eu sou caren-carente... Não faça assim comigo...
            – Você é um bosta! – o homem me mete um chute na barriga. Perco o fôlego e me retraio em mim. – Ninguém quer saber de imperfeição! Você está manchando essa sociedade! – agarra-me pela gola e atira-me em meio às latas de lixo, que me cobrem de porcarias fétidas, restos de frutas podres, fraldas usadas, absorventes usados, restos de comida, papel higiênico usado demais, dentre outras tranqueiras. – Fique aí, onde você pertence, seu lixo! – cospe em minha cara. Choro se confunde com chorume e saliva alheia. O homem levanta a mão, ameaçando me dar um tapa humilhante e subjugador, mas eu me encolho contra a parede e ele ri. – Patético...
            Ele sai dali sem dizer mais nada. Sem dizer desculpas. Todo cheio de pompa e convicto de que fez a coisa errada. Levanto-me aos prantos, todo machucado e cheio de dores de todos os tipos e volto à calçada movimentada. Absolutamente todos ignoram minha presença. Não posso contar com ninguém. Meu coração foi ferido. Fui excluído só porque, no fundo, não sou impenetrável que nem eles, inabalável que nem eles, alegre e autossuficiente que nem eles, egoísta que nem eles, virtuoso que nem eles... Sinto solidão em meio às pessoas. Aos seres humanos...

Aos seres desumanos...

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