domingo, 17 de novembro de 2013

Nunca mais



– Filha, me ajude!
                Não consigo dizer uma palavra. Nem um adeus. Nem um “eu te amo”. Ela se vai, rapidamente como a lâmina do homem. Careca, musculoso, maníaco, caucasiano vermelho de sangue. Minha mãe cai no chão e o barulho é horrível. Meus joelhos cedem e caio sentada. O homem me olha com um olhar de ira e satisfação. Caminha vagarosamente em minha direção.
                – Não! – viro o rosto e estico o braço. – Não, não! – minha voz trêmula.
                – Agora é a sua vez, sua vadia! – ele diz.
                Com um supetão me jogo contra a parede, a tateio ligeiramente e entro cambaleando no corredor. Meu chinelo se desencontra do meu pé algumas vezes, e quando isso acontece eu me jogo contra uma parede ou outra, repetidas vezes, e corro de corpo curvado, quase caindo, até que caio de joelho nas beiradas das escadas e quebro algumas unhas.
                – Corra o quanto você puder, sua branquela! – ele grita da cozinha. – Eu vou te pegar, te estuprar, te espancar e te rasgar todinha!
                – Não, não... Não... – sussurro para mim, enquanto me apoio fracamente no corrimão.
                Subo as escadas depressa, batendo com a ponta dos pés em uns degraus, usando as mãos para dar impulso. Um chinelo arrebenta e eu jogo o outro desesperadamente para trás, acertando minha cabeça de algum jeito. Ouço os passos tranquilos e raivosos dele contra a madeira da escada. Lá em cima, viro à esquerda, torcendo o tornozelo, e entro no banheiro. Por dentro, me atrapalho e derrubo a chave que estava na fechadura. Ajoelho-me, com os olhos úmidos e o corpo tremendo.
                – Merda, merda, merda, merda... – sussurro, suspiro.  – Merda, merda...
                – Eu vou encher a sua banheira com o seu sangue de vagabunda. Com o sangue do seu pai, do seu irmão e da sua mãe. – a voz se aproxima.
                Encontro a chave, mas acabo empurrando-a para um espaço estreito entre a banheira e a parede. Forço o braço contra esse lugar e sinto poeira e carcaças de insetos gordos. A mão do homem aperta e puxa o meu ombro com violência, bato a nuca na pia.
                – Pare! Por quê?! Por quê? – urro, estapeando o ar.
                – Pare você, desgraçada! – ele me ergue pelo pescoço.
                Balanço os pés no ar, bato com o calcanhar na porcelana da pia. Chuto-o com uma fraqueza surpreendente, e o homem me força contra o espelho. Com a faca, rasga a minha calcinha, pegando de raspão na minha virilha e coxa. A sua mão aperta, sufoca, espreme, machuca.
                – Que delicinha. – ele murmura, olhando para os meus genitais.
                Coloca a faca entre os dentes e mete um dedo em mim. Dou vários socos fracos no seu rosto e ele ri como pode. Corto os pulsos com a faca da sua boca, e logo após enfio a chave no fundo da sua orelha. Ele grita de dor e joga a chave. Caio sentada na pia. Segundos depois a mesma se quebra e eu esfolo as duas coxas nas superfícies fraturadas da porcelana azul. Uns frascos de perfume quebram no chão e outro cai entre meus peitos. Levanto rapidamente e quebro o frasco inteiro contra a sua têmpora. O homem fica tonto e eu o empurro, milagrosamente, para fora do banheiro.
                – Maldita! – grita, caído no chão.
                – Não! Não! – grito.
                Fecho a porta com um estrondo e caio de costas nos cacos de vidro e da pia. Corto-me toda e viro rapidamente. Com a mão sangrenta do perfume, pego a chave e pulo contra a porta. Tranco, milagrosamente, e o homem se joga com brutalidade nela. Caio sentada.
                – Saia daí, sua piranha!
                – Por que isso?! – choro.
                – Saia daí! Cadela!
                Esmurra a porta, por fora. A chave quica nos azulejos.
                – Eu vou te matar agora mesmo! Vou fazer sopa com você, gostosinha! – mete o que parece ser um pé contra a porta.
                – Por que você está assim?! – grito, soluçando.
                – De que adianta eu contar? Você vai morrer! Burra!
                Soca, soca, soca. Gargalha.
                – Sério, pode contar pra mim! Conte! Por favor! – grito, suspirando.
                – Essa foi boa! – ri maliciosamente.
                – Foi uma mulher que te deixou assim?! Foi o seu amigo?! – crava murros no meio da porta, fazendo a maçaneta dançar. – Pare, pare!
                – Conte mais umas piadas para mim!
                Chuta, chuta, chuta. Gargalha com vontade.
                – Você não pode contar com ninguém, o seu erro foi criar expectativas! – digo.
– Você só fala merda, puta merda!
– Eu te entendo, eu sei como é difícil superar isso, mas já vai passar! – grito, próxima à porta, em quatro apoios. Lágrimas e coriza escorrem pelo meu rosto, deixando o sal nos lábios. – Conte comigo! Conte para mim o que aconteceu... Moço!
                Engulo seco. Ele bate com mais intensidade.
                – Você não sabe de nada! Você não sabe quem eu sou e o que fizeram comigo! – sinto ódio em sua voz e, principalmente, em seus golpes.
                – Não posso fazer nada se você não me contar!
                – Acredite em mim, não há nada que você possa fazer a não ser me deixar te matar e te violar, nessa ordem! – a sua voz rasga o meu ouvido.
                O último golpe abre um rombo na madeira. Ele então ri e dá um chute intenso contra o buraco, que o alarga um pouco mais. Pulo para trás e me apresso, de costas e sentada, até bater, novamente, a cabeça na parede. Ele continua a abrir o buraco e me estendo para pegar um pedaço de porcelana pontiagudo. Na primeira vez eu falho, mas na segunda eu seguro o fragmento com dois dedos e o puxo para mim.
                – Vai morrer, vai morrer! Vai sangrar muito! – abre mais. – Vou moer os seus ossinhos, vou pisar na sua garganta!
                O homem enfia o braço de veias grossas em busca da maçaneta cor de latão. Mexe na fechadura por alguns instantes, enquanto ofego, mas não encontra a chave. Meu coração pulsa na garganta.
                – A sorte vai durar pouco! – diz, salivando.
                Soca, chuta. Quebra mais a madeira branca como um animal selvagem.
                – Qual é o seu nome, moço?! – pergunto, com a voz falhando.
                O homem para. Silêncio.
                – Por que você pergunta? – ele pergunta, sua voz ainda agressiva.
                – O seu nome, qual é o seu nome?
                – Eu sei que você perguntou isso, idiota! – bate e sobe o tom da voz no adjetivo. Silêncio por alguns segundos. – Márcio. Isso não muda nada!
Ouço a sua respiração pesada. Ouço meu coração nos dois lados da minha cabeça.
– Quem foi a vadia que machucou o seu coração? – pergunto, tentando fingir uma voz doce e preocupada.
Ele respira mais pesado.
– Bom, já que você vai morrer mesmo, o que custa eu contar?
– Sim. Conte para mim.
– Mônica. – diz, com a voz mais calma. – Michele, Andressa, Gabriela, Carolina, Teresa, Ludicéia, Serena. – sua voz engrossa na medida em que fala os nomes. – Andréia.
Nesse último nome, sua voz é mais suave. Grossa ainda, como uma voz de homem normalmente é, mas suave e macia. Respiro um pouco mais devagar, libero um pouco da pressão em minhas mãos, que latejam. O chão está frio e molhado.
– Elas... Não, todos eles, todas elas, todas as pessoas, ninguém presta! – ele diz. – Ninguém merece a pessoa que eu sou!
– Tenho certeza de que você é uma pessoa maravilhosa, no fundo. – digo, faço careta e uma lágrima percorre a minha bochecha. – Tenho certeza de que essas mulheres não mereciam você.
O ambiente cheira forte. Várias fragrâncias ao mesmo tempo. Estou com enxaqueca e encharcada de suor.
– Eu sempre fui honesto, eu sempre me entreguei, eu sempre ofereci todo o meu amor. – sua voz é melosa. – E o que ganho em troca?! Todas estas desgraçadas pisam em quem eu sou, várias e várias vezes! Espremem até sair tudo para fora! – sua voz é sofrida.
– Coitadinho... Querido, não fique chateado, você é um amor de pessoa e tem um coração enorme. – digo. – Gostei de você, de verdade. Você é bonito, meigo, afetuoso...
Silêncio. Escuto seus suspiros, são como os de uma criança sentida.
– De verdade? – pergunta inocentemente. – Mas eu matei a sua família, pare de me iludir!
– De verdade, meu bem. Você é um amor de pessoa, só que ninguém soube reconhecer as suas qualidades. Na realidade, você é melhor que todas estas filhas das putas.
– Mas, eu amo elas...
– Eu sei, eu sei, e continue assim. Nunca se perde por amar, quem sai perdendo é aquele que não sabe receber o amor.
Ele não diz nada. Escuto seus lamentos, seu choro falhado.
Levanto e me aproximo vagarosamente da porta, mancando por causa da torcida no tornozelo. Abaixo-me e pego a chave, delicadamente. Seu choro aumenta quando ele ouve o barulho da chave raspando no chão. Ele mete um murro contra a porta e eu pulo para trás, sem perder o equilíbrio.
– Você está mentindo! Você não gosta de mim, você é igual a todas elas!
Mete mais murros contra a parede, seu choro é interrompido a cada pancada. Até que ele cessa e ouço a faca cair no chão.
– Moço, você está bem?
Ele demora a responder.
– Mais ou menos. – responde com a voz vulnerável.
– Como vai o seu coração? – pergunto com uma voz acolhedora.
– Mal. Muito mal...
Coloco a chave na fechadura e faço questão de que ele ouça o ruído. Antes de virar o punho, pergunto com a cabeça baixada em direção à fenda na porta.
– Você quer um abraço?
– Sim.
– Bem longo?
– Sim. Longo. Forte.
– Ok, espere um pouquinho aí.
Destranco a porta. Escondo o pedaço de porcelana entre as nádegas e as aperto com força. Puxo a porta devagar e me revelo aos poucos. Ele está cabisbaixo, encostado num canto, e começa a me olhar de cima para baixo. Percorre a minha saia ensanguentada e rasgada, passando pelo restante do meu corpo manchado de sangue. Fita os meus olhos com um olhar úmido, demonstrando uma incrível fraqueza. Caminho um passo por vez, disfarçando o fato de eu estar com as nádegas contraídas, o que não é muito difícil, pois estou mancando. Derrubo a chave no meio do caminho. Assim que o faço, ele fecha os olhos e se joga contra mim.
Ele me abraça forte. Ele chora em meu ombro. Ele balbucia algo.
Passo a mão em sua cabeça. Faço um cafuné com as minhas unhas quebradas. Gentilmente afago as suas costas. Aperto um pouco o abraço, assim que ele faz o mesmo. Seu pranto é descontrolado.
Levo a minha mão até a minha bunda pelada e branca e vermelha.
– Olhe nos meus olhos, Márcio.
Ele se afasta aos poucos, com as mãos descendo até a minha cintura, gentilmente. Sinto arrepios de ojeriza na coluna. E ódio.
– Como é o seu nome, moça? – pergunta-me, olhando nos meus olhos.
– Elisandra. – finjo me importar.
– Desculpa, Elisandra. – seus olhos se enchem de água. – Desculpa por ter te xingado tanto. Você é bonita e legal.
– Eu sei. Eu desculpo. De verdade. – finjo me desculpar. – Nunca mais alguém vai fazer isso com você. Porque eu estou aqui.
Ele limpa os olhos com o antebraço. Finco o pedaço pontudo de pia no seu olho, com as duas mãos.
– Morra, desgraçado! Morra! Morra!
Ele chora com força e vontade. Parece uma criança que caiu da balança.
Forço o pedaço contra a sua cabeça, até que chego à parede e aplico mais pressão. Em meio à sua lamúria patética eu afundo mais o objeto contra o seu crânio, esguichando sangue na minha face. Na minha boca. Nos meus olhos.
Sua mão chega à minha nuca.
Jogo o corpo inteiro contra o que costumava ser o seu olho direito.
Ele alisa o meu cabelo.
– Elisandra... – sussurra.
E seu corpo escorrega na parede. Sutilmente. Cuspo nele. Maldito. Satanás, Demônio, Diabo, Satã, Lúcifer...

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