sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Para sempre



Alcanço um copo de cerveja para ele, trincando de gelado. Eu, como de costume, e como não gosto de cerveja – porque me faz mal no estômago e na cabeça –, encho um copo com metade de gelo e a outra metade com aquela vodca cara de ocasiões especiais.
                – Vou colocar uma eletrônica aqui, tudo bem pra você? – pergunto, de pé e com o copo na mão.
              – Você que sabe. É a tua casa, né? – Francisco responde, bebendo cerveja, sentado na cadeira.
                Ligo o rádio com a mão esquerda e vejo a minha aliança dourada. Com a mão direita eu viro o copo na boca. Sento na cadeira, de frente a ele. Sorrio. Saiu meio frouxo, mas o que vale é a intenção. Ele me fita nos olhos, com o copo de cerveja na boca, e depois deixa o copo na mesa, onde já tem uma rodela de água. Ajeita o relógio, ajeita a pulseira.
                – Não fique assim. – digo.
                – Não vai ligar o rádio?
                – Mas, eu já... – olho em direção ao rádio.
                O display está aceso, mas nenhum som sai. Levanto e aumento o som, mas nenhum som sai. Apalpo os meus bolsos, por algum motivo. Fico parado.
                – O pen drive. – ele diz.
                Tiro o pen drive do bolso de trás e o coloco no rádio. Ponho uma eletrônica bem alucinada, deixo no modo aleatório e volto ao redor da mesa, bebendo vodca pura mesmo antes de assentar a bunda. Ele não gosta de destilados. Fito ele nos olhos, esboço um sorriso melhor dessa vez. Ele pega o copo.
                – Pare com isso.– bebe. – Você não tem obrigação de fazer nada, entenda. – arrota.
                Aquele bafo de cerveja me acerta o rosto.
                – Muito alto. – diz.
                – O quê?
                – O som. A música. – aponta para o rádio.
                Bebo um dedo e meio de vodca e levanto o traseiro. Diminuo o som. Sento. Bebo. Olho ele nos olhos. Ele estala os dedos, enquanto olha para o copo de cerveja.
                – Então, você não quer falar nada? – pergunto.
                – Não mesmo. – verifica as unhas. – Eu só quero ficar quieto.
                – Eu não vou sair daqui. Não posso deixar você sozinho.
                – Eu só quero ficar quieto, não sozinho.
                Ele levanta o copo e observa a umidade na mesa. E depois observa as gotas de água escorrendo pelas curvas do vidro. Ele gosta dessa música que está tocando agora, eu que mostrei para ele pela primeira vez. E daí ele baixou a discografia do artista e sempre ouve, talvez. Viro o resto de bebida na garganta e abro a geladeira para pegar mais vodca. Cara. Para ocasiões estranhas. Estou um pouco tonto, já. Quase derrubo um pouco do líquido para fora. Pego a garrafa e o copo e volto à mesa. Bebo um pouco.
                – Eu me lembro do primeiro dia em que ouvi música no escuro, com os fones de ouvido, deitado na cama. É uma experiência totalmente diferente do que ouvir com as luzes acesas. Mas só pelas primeiras vezes, depois você se acostuma e não é mais tão imersivo assim. – digo.
                – Você deixou a porta aberta. – aponta para a geladeira.
                Sentado mesmo, estico o braço e fecho a porta. Ouço umas garrafas, potes, panelas e coisas se mexendo lá dentro com o impacto. Talvez umas frutas também, mas são macias demais para se ouvir. O copo de Francisco está vazio.
                – Um dia eu xinguei uma menina que eu amava muito de interesseira. Não foi bem um xingo, na verdade. – bebo um pouco mais e preencho esse pouco do copo com a garrafa. – Mas ela me deu um tapa na nuca, na frente de todo mundo. – rio.
                Tateio a mesa em busca da tampa da garrafa. Não a encontro. Deixo aberta mesmo. Minha mão está molhada.
                – Alcance esse copo aí. – diz, se debruçando na mesa. – Você quer me deixar pior, falando essas merdas?
                – Não, não. – alcanço o meu copo a ele. – Não sei.
                Tem uma poça de vodca na mesa. Devo ter derrubado e não percebi. Puxo a garrafa para perto de mim. Tomo um pouco, direto do gargalo. Minha vista começa a ficar meio embaçada e engraçada.
                – Qual é o seu objetivo? – ele pergunta, chacoalhando o gelo.
                – Eu quero te mostrar que nem sempre vivemos grandiosamente, e que há sempre novas pequenas coisas na vida que nos deixam felizes. Pare de pensar no passado. – digo, tentando me concentrar nos olhos dele, mas ele só observa os gelos. – E no futuro.
– Pra você é fácil falar isso. – diz, mata tudo a bebida em uma virada.
– Beba comigo. – me estendo e encho o copo dele e a mesa também. E ele, também, mas sei que não se importa.
Volto ao meu lugar. A mesa chacoalha e o gelo também. Deixo a garrafa no meu colo, talvez molhando a minha calça com o seu fundo molhado. Não importa. Não quero saber disso. Francisco gira o copo constantemente. Ele não é casado, ele não namora, ele sempre quis alguém. Começa a chorar.
– Eu me lembro de quando nós brincávamos no parquinho de diversões. – soluça. – Um dia eu quebrei a perna.
– Eu também me lembro desse dia. Eu juro que eu quase me caguei de rir.
Ele ri chorando. Cobre o rosto com as mãos. Começa a falar algumas coisas por de trás delas, mas não consigo ouvir direito. O som sai abafado por causa do choro, dos suspiros e, claro, das mãos na frente da boca dele. Ouço salgadinho e vídeo game. Ele só pode estar falando das nossas tardes de jogatina, dos tempos que já passaram.
Tudo passa.
Levanto desajeitadamente e coloco a vodca na bancada ao lado da geladeira. A garrafa se estilhaça no chão, bem ao lado da sua tampa que estava ali desde o princípio. Ao lado do pé da minha cadeira, que acabo chutando ao tentar me locomover. Contorno a mesa vagarosamente, ziguezagueando, me apoiando. Ponho a minha mão no ombro de Francisco.
– Eu não quero morrer! Não quero! – ele grita.
– Calma, calma. Estou aqui.
– Eu quero me casar, quero ter uma família!
– Calma, você tem a mim. – agacho ao seu lado, perco o equilíbrio momentaneamente e me apoio no chão com o braço. Volto à posição normal de gente agachada. – Sou seu amigo. – digo ao seu lado, no nível de seu ombro.
– Eu sei, mas eu quero ter tantas coisas, eu quero fazer tantas coisas! – berra.
– Eu sei... Não sei o que falar pra você. – uma lágrima escorre do meu rosto.
Levanto, forçando o seu ombro para não me espatifar e me quebrar com tudo no chão. Ele continua chorando como uma criança que perdeu os pais de vista.
– Levante. – digo.
– Não!
– Levante. Por favor.
– Não! Quero ficar sozinho! Saia daqui!
– Cale a boca e levante esse corpo inútil daí e me dê um maldito abraço, seu desgraçado! – grito.
Ele salta em minha direção, oscilo um pouco, e me aperta com força. Seu copo ainda está cheio. Sua cadeira acaba de cair no chão e faz um barulho enorme. Fecho os olhos e os braços com força. Eu me lembro de quando eu conheci ele, eu xinguei e bati nele. Engraçado como quem eu achava que era meu maior inimigo acabou se tornando o melhor amigo que posso ter. A música que está tocando é bonita.
              Minha vista turva, meu corpo entorpecido.
Os braços de Francisco escorregam por mim. Ficam pendidos ao seu lado. Arrasto-o até a minha cama, ajeito o seu corpo como eu faço com os meus filhos, quando dormem assistindo filme comigo. Beijo a sua testa como eu faço com a minha esposa, quando tenho que partir ao trabalho.
Todos morreremos algum dia, para sempre.
Sento no chão, com as costas na cama, e choro com as mãos no rosto.
               

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