quarta-feira, 29 de junho de 2011

Simplesmente

Coincidência macabra a manhã em estilo britânico, desoladora só pelo visual. Como a ironia divina não pára por aí, uma garoa malévola serve para banhar as lacunas da serenidade que ainda resiste e habita o intrínseco de cada cabeça. E como toda garoa desgraçada que se preze, o frio, em hipótese alguma, se ausenta. Perguntem-me as horas para eu responder “depende”.
Um casal – de partilha de dedos e línguas – de moças pseudo-intelectuais discute sobre a morte. De fato, não há momento mais oportuno que este, já que uma nuvem negra paira meu peso e outras mais acinzentadas penduram-se no oceano negativo acima. O céu. De certo modo transpiro e inspiro o ambiente arredor, não é algo que a razão simplesmente determine em uma grande cardinalidade de premissas.
                Uma senhora caduca lambe com a palma o orvalho de bafo das janelas do ônibus. Só de tentar pensar em ter noção da incomensurável biocenose destas crostas úmidas, imagino que qualquer são se sinta minúsculo o suficiente para enxergar a babaquice em esfregar a mão numa droga de vidro desses. O rastro que fica incita maior ojeriza.
                O ônibus nunca parou tanto e nunca andou tão devagar. Talvez seja a pressão que molesta a minha massa encefálica. Talvez o motorista seja lerdo, ou também tenha deixado de fazer dois exames da faculdade para voltar correndo a casa, querendo que o mundo rotacione um pouco mais devagar, pelo menos hoje. Aposto tudo na primeira opção, pois, como disse, o tempo é relativo.
                Ou me concentro na conversa mórbida das lésbicas, ou tento encontrar outro passatempo. Deixo-me esquecer todas as fórmulas e teorias da querida ciência para, por ora, tentar me agradar com o desagradável. As nuvens deterioradas, a brisa sádica e o pessoal indiferente. Começo a suspeitar que o Sol morreu. E me esforço para não rir da situação explosiva precedendo o nascimento duma estrela-bebê, igual à dos Teletubbies. Então volto ao ônibus e escuto “morte é legal, tipo assim, poesia” em voz soprano.
                É ótimo, por vezes somente bom, fingir que nada é real e que nada precisa realmente acontecer, mas acontece que isso é irreal e perdi o ponto. Levanto e depois de dois mil anos paro numa quadra a quatro ou quatrocentas quadras longe de casa.
Se caminho pela calçada, o efeito esteira é mais notável. Se corro pela calçada, navalhas glaciais cortam a carne mais macia. Se ando pela rua, provavelmente um ser caridoso ou embriagado me livre da verdade que vem – na verdade eu vou. E de qualquer jeito, é visível uma ambulância de sirene ligada de través no asfalto e através do meio-fio da fachada donde durmo e tomo banho, enfim, donde moro. Alguns estilhaços de vidro no chão e uma cadeira de praia retorcida sobre algum local não muito perto do sangue. Rostos tensos do pessoal, minha mãe de idade brigando com o motorista. As portas traseiras da ambulância escancaradas, uma mulher assustada negra e magra lá dentro segurando o que sobrou do braço de um homem africano forte e ferido. Sangue lá dentro também, mas nenhuma voz. Ninguém realmente está lúcido.
A cena se concretiza ao passo que o tempo passa, não passa. Sinto o cheiro de algo que deu errado e, na pele, a iminência de protesto em massa. O vozerio é intenso e minha mãe chega a arranhar a cara do motorista rapaz, com um raio de ira e unhas. A vizinhança, certamente inconformada, a doma com força para evitar mais poças vermelhas, porque as lágrimas e fúria simplesmente não param assim, simplesmente com atos e palavras e boa educação de última hora. E violência até satisfaz os anseios profundos, mas só gera mais desgraça, mais ainda quando descontrolada. Só para complementar, membros decepados não crescem de novo com apologias.
Eu tirava o estojo da mochila para escrever na prova da faculdade, como todos os outros jovens humanos, quando o celular tocou. Disseram que era urgente que eu voltasse para casa. Só ouvi isso, porque a balbúrdia e cagada distorciam a mensagem. Odeio jovens. E por mais calmo que eu pareça, eu viro comentarista quando estou nervoso. O Bruce Banner vira o Hulk e eu viro o Comentarista.
Agora, com a minha mãe chorando no meu ombro e meu pai deitado na calçada de frente da casa, percebo quão estúpido é dar a todos confiança.  De manhã, como meu pai é amante do frio e do universo, ele senta numa cadeira baixa e velha, recostado no portão e à mercê do próprio desejo. Ele diz que pensa em buracos negros e imagina como seria algum outro buraco. É difícil de imaginar que uma ambulância apressada, conduzida por um homem jovem inexperiente, possa, um dia, lhe arremessar com cadeira e tudo ao outro lado da vida. E quem sofre somos nós, os que ficam no mundo.

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