quarta-feira, 8 de junho de 2011

De repente tudo muda

Tenho medo de abrir a porta, mas mesmo assim a minha mão gira na maçaneta. A minha outra mão está forçando a chave na fechadura, inconscientemente, e quando abro a porta, conscientemente esmurro a parede procurando o interruptor. É inteligente entrar em casa porque vem vindo uma chuva tropical daquelas. Ui que medo!
            Ufa, liguei a luz. Lar doce lar. Lar vazio lar, não adianta nem perder tempo gritando sozinho chamando alguém, pois, afinal, estou sozinho. Não é por ciência, é uma coisa intuitiva, quando você não sente ninguém por perto. É ruim que essa intuição às vezes falha, justamente na hora em que temos a ciência de que não há mais ninguém naquele escurinho, e daí sentimos a vibração próxima de outro corpo e nada. Só um susto, um baita susto.
            Aliás, não estou completamente sozinho, pois saindo da minha casinha, mas ainda no mesmo terreno, e subindo as escadas velhas, vai ter um velho lá em cima, na casa da minha avó que está viajando. O velho fica ali de graça em troco de cuidar da casa, é de confiança dos meus avôs, mas é estranho, nunca conversei com ele. E muito provavelmente nunca irei. O problema, na verdade, nunca é essencialmente ficar sozinho.
            Antes de ir à cozinha arremesso a mala e a chave no sofá, nesta ordem. Logo depois estou fazendo a mesma técnica de acionar a lâmpada do teto, porém sutilmente e também sentindo o arrepio de que algo pontudo, negro e áspero vai me agarrar. Nada crítico, é só a intuição. É uma intuição mais profunda que diz quando devo ignorar essa primeira intuição falha. Na verdade eu nem gosto muito de intuição e muito menos de matemática. Física então, ixi. Eu vivo pra me divertir.
            Bem na hora em que pego um copo da gaveta, para tomar leite, cai um raio sei lá aonde, mas bem perto com certeza que chega a tremer as bases. E o pior, detona a eletricidade.
Estou no escuro. Estou sozinho.
No escuro. E sozinho.
Meu Deus... Não enxergo os meus pés ou mãos, sou um estranho para mim mesmo. O calafrio não ajuda, e a chuva que começou também não ajuda em nada. Meu Deus! Meu Deus eu quero sair daqui da casa meu Deus! Cadê meu pai Deus do céu!
            Corro bem desajeitado e derrubo umas banquetas e, não acredito, estou chorando junto com o céu. E grito junto com os trovões, é bem assustador isso sim! E continuo andando e bato e viro, de modo que nem lembro mais para qual parede estou encarando. Então eu ando pra frente só e bato na mesa de vidro bamba, que por uma formiga não cai no chão, ao contrário de mim, que levanta de volta e sai correndo – andando tremendo – e pula sem querer pelo sofá, chegando à porta de entrada e saindo de casa.
            Ainda estou no terreno da minha casa e da minha avó, o vento é forte aqui, ai ai. E está bem molhado e preto também. Corro para a garagem onde é um pouco mais iluminado pela lua cheia, mas é aberto o bastante para se duvidar de cada canto a qualquer segundo. Ofegante, uma voz rouca me diz:
            – Garoto.
            Credo!
            – Que susto, senhor Jarvas! – arfo.
            – Sem saco... Luz.
            Ele estremece um pouco e se fecha no abrigo dele, parece que tenta não mostrar que está com frio. É uma imagem meio embaçada pela escuridão, e dá para ver a ponta do nariz branco do velho esquisito. Ainda respirando pesado eu lembro que o meu celular está comigo e disco para o meu pai. Com a pouca iluminação da tela do celular dá para ver o tapa-olho do rosto pálido do velho assustador.
            – Pois é. – diz, acendendo um cigarro na concha da mão.
            – Deve ser né?
            Paro um minuto para tentar gostar da chuva, mas é muito violenta. As pancadas sonoras bem fortes e bisonhas. Eu não queria ser o chão, coitadinho dele.   Sinto uma vibração morta chegando por trás, e um calor de fumaça também. O cheiro de nicotina vai ficando mais forte, mas não estou tão assustado com o senhor, embora minha cabeça diga outra coisa completamente contrária.
            Jarvas bate a mão no meu ombro de um jeito amigável e reconfortante, olhando para a chuva magnetizado. Esqueceu até do cigarro e dos trovões e do vento frio que corta o peito. Com os olhos desfocados me pergunta:
            – Quantos anos você tem, rapaz?
            – É... Catorze.
            E ficamos em silêncio. Não fecham três minutos e o carro do meu pai buzina fora do portão elétrico. Atravesso extasiado a chuva, até um portãozinho do lado, esqueço que a água molha. Esqueço também que o portão está fechado. Meu pai buzina irrefreavelmente, consigo ouvir o motor do carro ligado. A chuva é pesada, abafando o som do toque do meu celular, apenas percebo a vibração constante lá. Quando vejo que não ouço, lembro que o frio é ruim e volto encharcado ao abrigo da garagem, com o telefone gritando notas.
            – E agora, tô sem chave! Tem chave aí Jarvas?!
            O velho de um ímpeto vasculha o bolso da jaqueta e me estende a mão moribunda com um molho tilintando, pressionando o cigarro com os lábios.
            – Valeu! – pego e mergulho na chuva novamente.
            Abro o portão desprendendo extrema força e o vento completa o trabalho fechando-o com um ensurdecedor estouro. Dou a volta por trás do carro, passando pelo cano de escape que aquece momentaneamente as minhas canelas e me arremesso como uma mala no banco de passageiro.
            – Fechou bem a casa, filho?
            – Sim. – mexo no cinto de segurança. – Aquele Jarvas é um carinha legal.


(...)


O saco maior do que ser impelido a cuidar da casa dum amigo chato é não sabê onde o amigo chato guarda as droga das comida. Odeio gente e odeio a porra do presunto, tão desgraçado que nem sabor tem, aquela porcaria. E minhas cadeira tão virada num estrume de merda. Já deram o que tinham que dá, correndo de malandro fiadaputa e correndo em fiadaputa malandro. Essas cagada são legal quando são nos otro, na verdade.
            Até que enfim uma coisa que presta nessa geladeirinha do inferno! Salame é bom pra caralho! Fica um bafo de porco, mas um cigarro resolve uma coisa dessas. Agora farta achá a droga da faca. Digo, a faca certa, porque o desgraçado do meu amigo – deve ser amizade – tem faca até pra trepá com a muié. E olha que ele já tá véio. Magine antes como que era então.
            Mas é só falar em netão que chega o neto do lazarento. O piá com cara de bunda que não sabe fechá uma droga de um portão sem fazer estardalhaço. Adolescentes desajeitados. E seus sacos, digo, modinhas cretinas.
            É uma noite caótica linda hoje, a qualqué hora vai cai o mundo. Gosto do frio porque ele é diferentão. E o salame não é bonito mas foda-se, como mesmo assim a porcaria deliciosa. Gordura pra entupir minhas artérias, ou sei lá o que. Sempre quis ao mínimo sabê escrevê direito, mas nunca saí da porcaria da favela. Isso aqui pra mim é um castelo pintado de diamante, ou sei lá se dá pra derretê essas joça.
            Um treco bão de ficar aqui de bobeira é poder usar o pacote inteiro de canal de putaria do velho amigo velho. É mais amigo dos velhos tempos que amigo velho, nem sei pra onde ele foi depois de pará de comprar as droga comigo. Droga, filho, é uma droga. Nem pra dar dinheiro serve.
            Dizem que é falta de higiene... Higiêne... Igíene... Igene... Sei lá que porra, é falta de higene comê e fazê sexo com a palma ao mesmo tempo. Mas tô com tanta fome e apetite sexual que quero enfia esse salame no buraco... Da boca, pra comê.
            Puta caralho! Acabô a luz!
            Ah é, têm uma porta ali na direita... Esquerda... Pra lá de cá. Dá pra ir andando bem devagarzinho que é só um lance de escadas bem curto que dá para a garagem, e logo estarei numa parede pra observar e ouvir a tristeza da natureza. Me sinto um poeta. E o salame que fique aí nas merda de todos da poltrona, perdi a fome.
            Encosto o saco na parede, opa, encosto a nuca na parede e dá para relaxar e até gozar se dé bobeira. Na verdade dá pra fechar os zóio porque as zoreia não dá, o pirralho fica gritano sem parar lá na casa dele, logo ali a uns metrinho daqui. Só pelo fato de o garoto estar por aí já me deixa seguro, é que tenho medo de ficar sozinho, até no campo, na praia – odeio praia. É vergonhoso falar isso, mas todos têm os seus defeitos. Olha que poeta! Um dia vô ficar famoso, pode ter a porra da certeza.
            E já chega o cara cuspindo ar que nem um insano, arqueado um porquinho pra baxo.
            – Garoto.
            Ele pula.
            – Que susto, senhor Jarvas!
            – Sem saco... Luz.
            É bem estranho eu não gostar de pessoas e ao mesmo tempo depender delas para que eu me sinta confortável. Na verdade não é nada pessoal, eu acho, mas não gosto de pessoas. Só de pessoa. Pelo menos uma pra me dexa confortável, tipo agora, daí dá para eu ver a chuva surrando o chão vagabundo que nunca sai do lugar. Que vida.
            E pra outras coisas também sou meio contraditório. Se bem que eu posso até gostar do frio, mas não é por isso que vô quere ficá tremendo pra cacete. Mesmo assim fecho o abrigo lentamente, porque o piá tá zoiando pra mim. Ele pára e liga pra alguém. Logo fala pau, opa, pai e bláblébló e apagão e que exagero gigante em. Como que alguém pode ter medo do escuro? Que coisa ridícula. A luz que é feia. Meu buraco no zóio que é lindeza.
            – Pois é.
            Acendo um cigarrito.
            – Deve ser né?
            O que que deve ser, paiaço? Nada a vê o que ele tá falando.
          Ele pára e faz uma rotação no eixo – é eu sei dumas coisa, não sô tão idiotão – e fica encarando a chuva. Parece que não consegue conseguir gostar, sinto que tenho que dar uma ajuda pra ele pra gostar de uma coisa boa (a chuva e as tristeza da natureza). De início fico só fumando no meu canto e coçando a bunda e a cavidade de onde era zóio, nessa ordem. Depois decido me aproximar, fazer um esforço e tentar conseguir gostar de gente, pra mostrar pro rapaz como é que se faz pra gostá de uma coisa. O meu primeiro passo, embora bem forçado, é bater no ombro do piá. Daí eu faço a mágica implicitamente, tipo, só fico me admirando com a chuva como é o meu usual, dum jeito que tenho certeza de que ele vai me olhar e pensar nisso com profundeza. Pensar mais sobre gostar da chuva e do frio e da escuridão e sei lá mais quais coisas. Minha perna podre, minhas cadera podre. Dor e saco.
            Sem tirar os olhos do frio, os ouvidos dos relâmpagos, o saco da calça e a podridão da boca, falo:
            – Quantos anos você tem, rapaz?
            – É... Catorze.
          Adolescente o caralho, é só um pré-adolescente sem pêlo, eu acho. Se for do jeito que era antes, deve de ser. Só que as mulher de hoje em dia são mulher já com dez anos, tanto que já não vejo o claramente o conceito de pedofilia. Nem o propósito de se preocupá com uma coisa dessas, nada a vê.
            Ficamo em inércia total por talvez um minuto.
            Uma buzina do cacete não pára de chiar. Dói as zoreia que vô dizê uma coisa em.
            Ah não... É o pai do piá...
            O piá já tá lá no portão desesperado pra sair, e agora?
            Ufa, o piá desistiu...
            – E agora, tô sem chave! Tem chave aí Jarvas?!
            Hesito um pouco mas não quero parecer mal-educado na frente dele, mesmo que ele tenha meio que me forçado a dar a chave. Gritando assim comigo, o fiadaputa.
– Valeu! – pega e mergulha na chuva novamente, bate o portão.
E tudo pára.
O garoto saiu daqui e já consigo ouvir o carro funcionando e indo até. A porta da casa dele tá batendo com o vento e as janela também. Dá pra ouvir o barulho das cortina correndo e tudo começa a se comprimir bastante, meu peito principalmente. E torção na garganta que lacera o coração. Não consigo me mexer... Tô sozinho... Aquele filho da puta... Ingrato... Insensível desgraçado, adolescente do caralho... Ah...
Não acredito ainda nisso, tô sozinho...
Tô chorando, isso dói dói mesmo.
Não acredito ainda nisso...

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