quinta-feira, 21 de julho de 2011

Vá em paz

– Já adianto que o meu discurso, senhoras e senhores, não acrescentará nada, ou muito pouco mesmo, à opinião e ciência que os senhores já têm a respeito do falecido. Meu objetivo é apenas o de comover e abalar as almas daqueles que ainda não se aperceberam totalmente da situação presente, e inflamar mais ainda os sentimentos do restante, com a ressurreição de minhas melhores memórias, pois é isso o que se espera de um evento deste calibre e densidade. Sintam-se à vontade para lamentar, se possível, senhoras e senhores.
       Muito se fala do nosso querido Astolfo, agora que está mais parado e mais morto. Antes falava-se das coisas ruins do rapaz. Neste contexto predominantemente os aspectos mais notáveis de sua aparência mórbida, sórdida e repulsiva. Morreu da mesma maneira que veio ao mundo, tão pequeno e asqueroso como um feto e enfiado na barriga de uma vagabunda. Ninguém sabe o que aconteceu ao certo, mas com certeza plena e pura ele era um rapaz lindo, por dentro.
           Ele tinha Progeria, uma doença genética desgraçada que fez com que Astolfo não tivesse lá muita expectativa de vida, quantitativa e qualitativamente. Não era um patinho feio. Era a coisa mais horrível que já vi na vida, sinceramente. Até morto ele é mais palatável. Não dava para saber ao certo a idade do indivíduo. Sua boca falava uma coisa, enquanto o que eu via dizia: isso daí é um velhote. Acho que nem ele, pobre alma, sabia ao certo a droga da idade. Mas o que é a idade senão uma ferramenta numérica abusada pela estatística? Digo, além de uma medida de desenvolvimento biológico, o que mais nos diz a idade, senão numerais cardinais?
Ele era um bom garoto mesmo. Feio como o calcanhar de maracujá elevado ao cubo. O irmão dele, o pedófilo da Kibon, é o filho da puta mais gostoso do mundo.
Eu costumava brincar com ele. Mas por pena, não por vontade. Tentei dar um pouco de infância ao garoto, mas o que consegui foi deformar ainda mais seu rosto com uma pedra maciça de perto dos trilhos velhos de trem da nossa linda cidade nostálgica. Foi acidente, claro, mas não por isso deixou de ser engraçado.
Astolfo era uma criança boa. O seu irmão que o diga. Tiveram pouco contato, mas era um contato intenso e direto. Daqueles de deixar marcas e com potencial para mudar o rumo da vida. No entanto, o seu irmão foi gentil e compreensivo, sempre respeitando os limites – não tanto as necessidades – do menino. Analogamente ao respeito e amor mútuos de dois amantes pelados, sempre pelados, numa cama grande.
Burro de doer. Um limítrofe. Por vezes esquecia até o nome, o coitado do Astolfo. Retardado, estúpido, idiota, de bom coração. Não tão corajoso porque suas pernas eram muito finas e frias. Um bom garoto. E mais feio ainda depois da segunda pedrada. Nem o sangue dele saía direito, de medo de entrar em contato com o exterior do menino.
Ninguém sabe ao certo como ele morreu. Mas, de qualquer jeito, já iria morrer. Nem recordava mais como comer sopa, e sua infra-estrutura era uma merda moída. Tipo aquelas poeiras que se juntam em cima do armário, que não tem nada de bom para oferecer senão uns espirros – verdadeiros orgasmos nasais. É coisa pouca que quase ninguém nota e, sinceramente, só depois de morto que vejo o real valor sentimental desta criatura amaldiçoada pelo próprio Satanás e Deus no momento do parto.
Não choro muito por ele, pois era horroroso. Acredito que ninguém aqui chora muito por ele pela mesma óbvia razão. Nunca conseguimos se acostumar com uma coisa visualmente perturbadora deste nível. De qualquer jeito, um garoto de bom coração, no sentido figurado da palavra. Apesar de eu amá-lo mais agora, eu o amava até quando isto estava vivo e com um pouco mais de ossos e menos cor. Minimamente, mas pouco. Um bom garoto mesmo.
Vá em paz, Astolfo.

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