segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Um pedaço de mim


– Vai fazer isso ou não?
       Esse é Mike, amigo meu. Para fazer isto é necessário ter equilíbrio emocional, ou simplesmente não ter emoções. É uma coisa muito impactante, porém excitante. É legal, legal.
– Bom, veja o que você vai fazer aí. – diz Mike – Só não me atrapalhe que isso dói pra caralho. Tem alguma ideia de o que posso usar?
Pessoas como nós são repudiadas, somos monstros. Sinceramente, eu não vejo nada de errado nisso. Sério mesmo. Estou vivendo a minha vida ao máximo, sem anseios, intensamente. Isso quando estou chapado ou bêbado. Ou chapado e bêbado, como agora. As emoções, sóbrias, não ajudam muito. As sensações também não. Digo para Mike tentar a marreta que eu guardo num baú velho.
– Não acredito que você até hoje não sabia que a minha perna esquerda é uma prótese. – eu não fazia a mínima ideia – Quando os médicos perguntaram, eu falei que fui atropelado por um trem. Cambada de ingênuos!
Mike disse que é muito complicado fazer pelo método direto. Apesar de rápido, é muito complicado. Há várias complicações, como infecções, náuseas, risco de morte dependendo do tamanho da tara, entre outras porcarias.
– Cara, falando a verdade, nunca pensei em fazer desse jeito. – exalta Mike – Uma maneira tão engenhosa e louca.
Sim, muito engenhosa. Há certas coisas deste mundo que só podem ter vindas de mentes insanas. Como o humor negro e o sarcasmo.
– Cadê a porcaria do baú?
Orientando, digo para ele andar reto e virar na primeira direita. Assim que entrar na salinha, há um compartimento debaixo do tapete de pele de urso sintética, a chave está em uma gaveta trancada. A chave da gaveta está acima do armário francês de mogno. Meio alto, mas passe a mão por cima, com cuidado para não perder a chave. Não se esqueça de lavar a mão empoeirada. Insista que abrirá os cadeados enferrujados... Ah, e não ligue pro cheiro.
– Não tem merda nenhuma de marreta. – grita Mike da sala – Puta que o pariu! Que cheiro nojento!
– Tente então o martelinho ortopédico. No baú mesmo. Vai ser mais complicado, mas acho que dá certo com insistência. Pelo menos para matar gato serve.
– Achei. – muito alegremente Mike volta, cantando “Another Brick in the Wall”. Segurando o martelo, diz: – Não quer uma ajudinha aí, mesmo? Eu sei que você é novato e é difícil. Certeza de que vai fazer por este método?
– Não, muito obrigado. Farei por este método sim. Deixe eu me concentrar.
Mike é um depravado. Além deste fetiche, é por pessoas com membros amputados. Segundo ele, é a melhor bosta do mundo. Sinceramente, eu acho nojento ver pessoas com membros amputados. Esta tara por aleijados é o que chamam de “Acrotomofilia”.
– Da outra vez que eu fiz por este método seu, na perna, não foi nada bom. – aconselha Mike – Fui parar no hospital, só porque minha mãe chegou em casa e viu o sangue todo derramado. Falei que foi um acidente na marcenaria do meu pai. Ingênua.
Mike ri. Não tenho desculpas a inventar. Afinal, não há um porquê para esconder algo de alguém.
– Antes da perna, para coisas menores, como orelha ou dedo, não teve muito problema. – alerta-me com a sua experiência e sabedoria – Ah! Este martelinho vai dificultar as coisas, até agora não fez nenhum roxo ou vermelhão. – balbucia.
Digo que dá certo, e que insistência é a chave. Se não fosse pela insistência seríamos apenas fetos mal-formados abortados. Lavados de sangue e placenta, cheirando a merda e carniça. Ou até embriões nojentinhos. Ou um caviar, vai saber.
– Da vez que fiz na orelha, eu falei que fui atacado por um cão. – conta Mike – Especificamente, eu estava voltando da padaria, à tarde, e fui atacado por um pit bull.
Outra tara do nosso querido amigo Mike é a coprofilia, ou seja, comer e brincar com bosta. Ele deve ser um sujeito muito curioso, colecionador de fetiches, de bosta e de coisas horrivelmente nojentas. O engraçado é que ele odeia teratofilia, que é atração por pessoas deformadas, semelhante à acrotomofilia. Odeia pessoas deformadas. Estranho. Engraçado.
– Quando eu fiz no dedo, reciclei a desculpa da orelha, só que desta vez era um bull terrier. Acreditaram mesmo assim. – continua Mike. – Se bem que é esperar muito deles que não descartem a hipótese da apotemnofilia. Muito provável, sequer não sabem da existência disso.
Ele tentou algumas outras parafilias, mas não gostou. Tipo necrofilia, emetofilia, urolagnia e pregnofilia. Necrofilia é a transa com cadáveres, e é bem popular. Emetofilia é excitação com o ato de vomitar ou receber vômito, enfim, tudo que envolva alimentos mal-digeridos e peristalse reversa. Urolagnia, urofilia, ondinismo ou “chuva dourada”, está relacionada ao mijo que sai dos genitais. E pregnofilia ou maieusofilia é o sexo com gestantes.
– O seu filho não pode ser um monstro depravado. Ele precisa ser um moço bonitinho e comportado. – complementa Mike – O cidadão da sociedade moderna não aceita sujeiras vindas das suas crias. De acordo com o padrão bonitinho, todos têm que seguir uma força superior e ter as três refeições na hora certinha. Cabelo lambido, roupinha engomadinha.
Não gostou de mijo e vômito, é nojento, ele disse. Fezes são infinitamente melhores... Só não tentou sadomasoquismo porque “é muito normal e sem graça”. Hipster... Vejo que ele está quase no fim, e eu sequer comecei o negócio aqui.
– É tudo culpa da bunda que é o sistema. – ele diz.
– Engraçado. – digo.
Ele terminou. E eu sequer ameacei começar. Que vergonha de mim. Não quero ser um menininho bonito que limpa o fiote direitinho, como mamãe ensinou. Eu quero falar palavrão! Mas é difícil se o inconsciente tende a ir ao lado oposto, segundo o programado.
– Cara, foi foda, mas eu terminei. Se quiser uma ajuda aí dê um grito, vou lá tirar algumas fotos para recordação. – Mike sai da cozinha e vai ao meu quarto.
– Eu disse que insistência é a chave. – mais uma vez minha teoria foi confirmada e reforçada – Obrigado, agora sei que dá para foder braços, além de assassinar gatos, com esse martelinho fajuto.
Esse método novo resume-se basicamente em fazer qualquer coisa a fim de necrosar o membro desejado. Deste modo os médicos não têm outra opção a não ser partir para o corte, para a extração da parte putrefeita, podendo ser um braço, uma perna, ou até um simples dedinho. A lei diz que médico algum tem autorização de desmembrar alguém cujo membro a supostamente ser atorado encontra-se totalmente sadio. Lógico que é um processo nada instantâneo, mas é mais seguro.
– Tirei as fotos, ficaram iradas. Colocarei no meu facebook! – já disse para ele que é uma coisa perigosa fazer isso. Não se sabe se existe um estuprador homossexual acrotomófilo na cidade que usa facebook para espiar as pessoas. – Certeza mesmo de que não quer uma mãozinha, Jack?
Na realidade eu não quero uma mãozinha. Este método que tento fazer, segundo apotemnófilos, monstros como nós, é o mais perigoso. Pegue um objeto cortante, de preferência com bastante fio, e macete. Só isso. Mike já cortou o pênis, alguns dedos do pé e da mão direita via este método. Curto e grosso. O minguinho e anular da esquerda, um mamilo, e também um pedaço da orelha.
– Posso usar o seu computador para upar as fotos?
– Já que pediu com jeitinho e se comportou como um mocinho bonito, sim. – respondo, em tom cínico.
– Qual é a senha?
Informo que a senha é “código”.
– Valeu!
Realmente é um troço muito difícil de se fazer. Mesmo que ansioso pelo resultado, não encontro aquela força de vontade e frialdade que me falta. Quem sabe alguns goles a mais ajudem. Talvez este seja o vírus pro meu sistema operacional entrar em pane.
Vou em direção à geladeira e viro um copo de uísque. Como o treco é bão, viro outro. E outro. Como um pedaço de bolo de maconha também. Já deve estar mofado, infestado de fungos, mas que se foda. Agora deixo de ser o garotinho do cu limpinho. Do sovaco asseado e que dorme antes da meia-noite para não ver porcaria na tevê. Chega de Discovery Kids!
– Cara, já percebeu a beleza de um rouxinol? – pergunto – Uma ave solitária que canta escondido, assim como eu. Nunca me ouviu cantando, né?
– Ahn?
– Nada.
– Quer que eu ponha uma música clássica? – sugere Mike – Música clássica sempre dá um clima requintado no ar, deixa tudo normal, mesmo que estejamos nadando em sangue. Além do mais, Ludwig Van Beethoven nunca é demais.
Sim, peço para colocar aquele vinil daquele armário, no toca-discos que herdei do meu avô. Peço também para me alcançar aquele coquetel verde da porta da geladeira, vamos ver do que se trata. Eu sempre me esqueço de fechar a maldita porta da geladeira. Deve ser por isso que a conta de luz vem em valores exorbitantes.
Eu descobri que tenho apotemnofilia – embora soando ser, não é uma doença – quando prendi a mão no portão elétrico de casa. No mínimo, interessante. Para melhores esclarecimentos, este desvio da conduta de um bom cidadão patriotário alienado, ou seja, apotemnofilia, é um fetiche nada usual. Sem mais delongas, gostamos de auto-mutilação.
– Tome essa merda de coquetel e fique com o telefone a postos, Mike, não se sabe a cagada que pode acontecer. Ainda mais por ser um corte deste tamanho.
– Ok. – Mike diz, tomando um gole do treco esverdeado – O que é que é isto?
– Sei lá.
Um, dois, três...
– AAAAAAAAAAAAAAAA!!
– PUTA QUE O PARIU! VOCÊ FEZ ERRADO, PORRA!

De acordo com Mike, fiquei apagado durante uma semana. O impacto foi muito grande que eu desmaiei de imediato. Antes disso, eu gritei pra caralho. A única coisa que recordo é a bela sinfonia n° 3 de nosso querido Beethoven tocando ao fundo, em todo o seu esplendor, com estilhaços duma garrafa meio-cheia, meio-vazia de líquido verde dançando no chão de madeira cabriúva. Lembro também que a sensação de ouvir música clássica chapado é ótima. Algo parecido às melodias do Pink Floyd, quando sóbrio.
– Aleluia! Acordou! – exclama Mike – Eu estava ficando preocupado, amigo.
– Bom dia, flor do dia. – saúdo.
– Sua família veio aqui. Eu falei que você estava cortando grama com um tesourão.
– Não precisava. Mas, obrigado.
Sem mais delongas, falo a ele que preciso de um favor. Mesmo sendo ambidestro, não possuo a mão direita, nem os dedos indicador, médio e anular da esquerda. É impossível de escrever assim. Por sorte ele possui ainda a mão e o braço esquerdo. E é canhoto.
– Vejo que conseguiu, parabéns! – eu digo, sobre o braço os médicos removeram dele.
– Cara, é tão massa ficar sem um braço e sem uma perna. Você devia tentar na próxima vez! – este é o Mikão!
Eu digo para ele pedir uma caneta e um papel A4 em branco àquela enfermeira gostosa do corredor, escorada no balcão. Agradeço a ele por ter me enfiado neste mundo superficial de prazer extremo. A sensação de não ter uma mão é legal. O interessante vai ser experimentar uma vida nova sem o membro. Não sei como segurarei um simples copo. Divertido.
– Tá na mão! HAHAHAHAHA! – Mike e o seu bom humor!
– Cara, aquele dia eu nem tomei um gole sequer daquela merda verde. Queria saber tanto o que é que era, mas eu não tomei nada. HAHAHAHA!
– Era estranho... Tinha gosto de merda com mijo. – Mike comenta, gargalhando. – O finalzinho deixava um gostinho amargo de rúcula com certa adstringência.
Ele ainda segura o papel na mão, o amassando ao passo que contrai e expande o abdome sucessivamente, rindo.
– Cuidado com o caralho! Não amasse, porra! – exalto, me referindo ao papel.
– Opa, foi mau cara. – Mike não aparenta estar arrependido, mas que se foda.
– Agora, preste bastante atenção no que irei ditar. Escreva com letra cursiva legível, arranje um envelope  e uma caixinha de papelão. Ponha um selo de rouxinol bem grande e bonito. Acredite, esse selo significa muito. Se puder, dê uma perfumada, com um aroma amadeirado. Despache ao seguinte endereço...


"Docinho de coco,
Parece pouco,
O tempo que nos aparta.
Saibas, menina:
Deixastes marca.

Esquecestes
Memória
Em mim.

Carla de meu amor
Dás-me força,
Para com força
Golpear a dor.

Não me mata,
Docinho de nata.
Não assim,
Léguas de mim.

Anseio que escutes
Minha escusa,
Com tuas orelhinhas,
Docinho de uva.

Anseio poder ouvir,
Com meus ouvidos,
Teu perdão,
Docinho de milho
Com mamão.

No selo, um rouxinol,
Como aquele,
Naquele aquilo,
De encontro nosso,
Docinho de mirtilo.

Venha a este canto,
Junto a mim.
Amo-te ao pranto,
Docinho de amendoim.

Volta moça.
Tornar-nos-emos
Único “só um”,
Docinho de rum. 

Não me obrigues
A cortar em pedaços
Meu coração em pedaços.
Docinho de ourives,
Gema rara.

Não me obrigues
A tirar naco
De carne tua,
Conservar comigo,
Docinho de figo.

Docinho canibal,
Adoro-te
Sem igual. 
 
E sobre pedaços,
Sofrimento assim,
Envio-te amor,
Um pedaço de mim.”

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