terça-feira, 3 de agosto de 2010

Pedaços de ti

O corpo está na minha frente, a faca na minha mão. É frio e pálido. Faca também é fria, mas com pouco mais de cor.
– Bonitinha, né Carla? – este é Frank, obcecado por morte. Veio de Minnesota para fazer intercâmbio, ou  isto é apenas mais uma desculpa para continuar a “propagar arte pelo mundo” – Peguei numa festa funk. Levei a tonga pra casa, ingerimos um sachê de Spanish Fly. Dois, na verdade, mas um pra cada. O engraçado é que comigo a porcaria nunca funciona.
Realmente o corpinho é firme. Nádegas pouco flácidas, porém comestíveis. A melhor parte para comer é a região do músculo glúteo, bem carnuda. Dependendo da pessoa, a carne varia de doce a amargo. Um naco da barriga dela me delicia o paladar com sabor adocicado, tendendo pro amargo.
– Depois que chegamos ao meu apartamento, logicamente fiz um sexo animal. Usei chantilly e parti para um pouco de bondage. – bondage, para os leigos, é um fetiche que consiste em imobilizar o parceiro. Experiência sadomasoquista. Frank é expert nisto – Quando terminei a penetração, deixei-a amarrada. Falei que era uma garota má e que pessoas más devem ser punidas... Ainda não acredito que ela deixou um estranho amarrá-la. Isso requer muita confiança por parte do casal.
Gentilmente pego o instrumento talhante, vulgo faca, e desenho um “jogo da velha”. Convido Frank e ele aceita quase que imediatamente, com água na boca. Uma criança com água na boca.
– Par ou ímpar? – Frank infantil.
– Não precisa dessa putaria, sou o X e comece logo.
– É divertido brincar com criancinhas. A coisa ruim é que não param de se mexer, arranhar e gritar com aquelas vozes agudas e irritantes. – Frank desenha uma bolinha na parte superior direita da grade. – A única coisa ruim de brincar com uma de doze anos, é tirar o sangue da fantasia de palhaço. Essa criançada...
– Às vezes não entendo essa sua filosofia de vida. – pego a faca da sua mão.
          Arqueólogos encontraram registros desse tipo de jogo quando escavavam no templo de Kurna, datados do século XVI a.C. Porém, acharam informações de que já era jogado em outras partes do mundo antigo, como na China e na América pré-colombiana. O nome e número de riscos variam de acordo com o país. Na China era chamado de “Luk Isut K-I” e em países ingleses é popular e atualmente conhecido como “tic-tac-toe”.
– Tudo bem que a idiota estava com tesão e era um tesão, mas foi muito idiota por ter deixado amarrá-la... Ganhei! Vamos outra? – comemora Frank, agitando a faca no ar.
– Desenhe a grade no outro peito. – aponto.
– Ui, que nojo! Desenhe você! – encolhe-se e estende a mão para que eu pegue a faca.
            Pego o objeto reluzente e faço dois riscos paralelos verticais e dois paralelos horizontais, perpendiculares aos outros dois iniciais.

– Agora sou a bolinha, embora seja uma circunferência, e não um círculo segundo a definição de bola para duas dimensões espaciais... – dou a faca a ele. – Pode começar! – Frank me encara com uma interrogação na cara. Logo depois escarifica um X no seio.
Também conhecido como “jogo do galo”, o ‘jogo da velha” tem nome vindo da Inglaterra. Em finais de tarde, mulheres tinham o hábito de se reunirem para botar a conversa em dia e fazer crochet. Como havia também idosas no local, começavam a jogar este simples jogo, apelidado mais tarde de jogo da “velha”. O crochet era de extremo desconforto a elas, devido as suas visões prejudicadas pela idade, provavelmente de presbiopia ou quem sabe ceratocone.
– Ganhei!  – grito e levanto os braços.
– Ah! Cuidado com a faca!
          Presbiopia é o endurecimento do cristalino dos olhos por uso excessivo. Responsável pela “acomodação visual”, mudança do foco do globo ocular. Começa a surgir tal problema normalmente pelos quarenta anos de vida. O cristalino atua como lente biconvexa e é a acomodação que auxilia na formação de imagens na retina, proporcionando a visualização nítida de objetos de diferentes distâncias, em olhos normais.
– Eu costumava brincar de jogo da velha comigo e a escrever belas poesias em minhas vítimas. – comenta Frank. – Bons tempos aqueles.
– Sei.
– É verdade! Eu sei escrever poesias! – exclama.
            Eu podia pedir para ele fazer uma agora mas seria muita crueldade.
– Por que teve nojo de desenhar a grade?
            – Tá brincando, né? – fica sério. – Olhe para ela! Já morreu faz tempo! – continua. – Uns Xs ou bolinhas eu aturo, mas a grade?
– Tá bom, vou mudar de assunto: Olho tem consistência de gelatina de morango, não recomendo comê-lo.
– Sei... – isto não foi irônico. – Mas, uma vez me falaram que é de limão.
– Foda-se a gelatina. Foda-se a merda do olho, com gosto de gelatina de merda.
– Ué? Não é mais morango?
– É a consistência... Ah, foda-se.
          Ceratocone é deformação na córnea. De tanto coçar o olho, este acaba adquirindo aspecto cônico, desfocando imagens e prejudicando a vista. Pode acontecer com todo mundo e é comum em adolescentes para depois de uma a duas décadas piorar.
– Uma vez coloquei uma foto da pele das costas de uma jovem no facebook. Escrevi uma sátira à população americana e tomei no cu. – bate com a mão direita no dorso da esquerda.
– Essa porra de facebook é uma porra. E você também é cabeça-dura... Como consegue essas vadias funkeiras cavalas?
– Tenho charme natural.
– Ou elas não têm auto-estima... E “tomar no cu” é assim, ó. – faço copinho com uma mão e bato no topo dele com a palma da outra, que segura a faca.
            A córnea é o envoltório transparente que protege os olhos. Lubrificada por lágrimas e pálpebras. Junto ao cristalino, foca a luz, que entra pela pupila e vai à retina. A pupila, “menina dos olhos”, é negra e situa-se entre a córnea e o cristalino, no centro da íris. Sua função é “adaptação visual”, contrair e dilatar, regulando entrada de luz... A pupila dilata mais que o normal quando em overdose, quando usamos certos colírios e quando olhamos à pessoa amada.
            Cortei a mão...
            – Frank... Cagada.
            – O quê? – está olhando para o teto.
            – Olhe aqui. – mostro a mão. – Pegue o álcool ali. – aponto com a faca para um armário.
            – Ô, caralho! O que você fez aí? – pergunta assustado.
            – Não tá óbvio? Cortei com a faca! “Tomei no cu”. – simulo o sinal de tomar no cu de volta mas paro e lembro da tragédia. – Agora pegue a droga do álcool.
            Frank se desencosta da parede e estica o braço para pegar a garrafinha de álcool e joga para mim. Quase a derrubo no chão e ele dá uma risadinha.
            – Cavalo. – comento, enquanto derramo o líquido no ferimento.
– Bloquearam a bosta do meu perfil no facebook e tive que pagar uma baita propina pra lei... Mesmo assim não desisti, criei outro e coloquei a foto de uma mulher pelada morta, escrito: “Não vendem peitos na mídia? Que tal material novo para saciar o desejo?”. Fiz com bisturi e tomei no cu novamente. – bate uma palma no dorso de outra mão.
– Cabeça-dura. – sussurro. Jogo o álcool para ele.
– Ouvi isso. Para sua informação, minha arte precisa de platéia. – recoloca a garrafa onde estava. – Isso é óbvio!
            A retina retém e traduz imagens ao cérebro através do nervo óptico. Tem cones e bastonetes, que reconhecem cores e níveis de luminosidade, respectivamente. A imagem formada inicialmente é invertida. É arrumada no cérebro... Médicos dizem que cérebro tem uma textura semelhante a pasta de dente, porém discordo. Para mim, parece mais tofu.
– Agora me alcance aquele rolo de gaze. – aponto para a pia com a faca. – Você sabia que o olho humano normal é uma esfera perfeita? – informo Frank.
– E você sabia que o aparelho de medir pressão arterial é o esfigmomanômetro? – Frank me informa. Pego o rolo de gaze que vem voando em minha direção.
           A íris é a cor dos olhos, tendendo a ser uniforme neste quesito. Apenas em raros casos de anomalias genéticas há uma diferença de cores, o que se chama “Heterocromia Iridium”. Pode ser parcial, quando há mais de uma cor em um olho só, ou total, quando há cores diferentes, só que em olhos distintos. Ocorre frequentemente em gatos domésticos. Minha avó tinha isso. Esta funkeira... Não.
– Deve-se usar com o braço levantado ao nível do coração para não dar uma falsa pressão. Mede-se em centímetros de mercúrio, do sistema usual de medidas. O primeiro número indica a sístole do coração, e o segundo é a diástole. O movimento sistólico é uma contração que bombeia o sangue para fora do coração, e o diastólico é o relaxamento que enche o coração de sangue. – Frank sabichão sobre esfigmocaralho.
– Tó. – jogo a gaze em direção à pia, já enfaixei minha mão e o branco começa a ficar vermelho.
            Para corrigir problemas oculares, há lentes específicas a usar. Míopes e presbíopes necessitam de lentes esféricas divergentes, e no caso dos dois problemas coexistindo, lentes bifocais. Hipermetropia, esférica convergente. Ceratocone, não há lente. Astigmatismo, lentes cilíndricas para a correção. Para o estrabismo, a “vesguice”, lentes prismáticas são solicitadas.
– Esses números somados correspondem ao nível de sangue jorrado para cima, pelos movimentos sistólicos e diastólicos, não devem passar de vinte centímetros, o que seria uma pressão normal, atingindo o centro do crânio. Pressão alta, acima de vinte centímetros, bombardeia o cérebro violentamente, causando cefaléia. – Cefaléia é o termo médico para dor de cabeça – Se não for fazer nada com esse corpo me dê, tenho algumas experiência necrófilas a testar. – Resmunga Frank.
– Espere, tudo tem sua hora. – explico. – Junte ali, por obséquio, o rolo que era pra tá na pia e tá no chão por causa da minha boa mira. – aponto com a mão da atadura.
– Tem cerveja? – pergunta, abaixando-se para pegar o rolo.
– Geladeira. Não nesta, aquela da churrasqueira. – depois que o oriento, a gaze atirada por ele quica e cai no chão. Frank sai rumo à sala de churrasco – Cuidado ao abrir para não derrubar a bunda, por favor! E também os narizes e orelhas em conserva! São frágeis pra caralho!
           De todos os problemas, os únicos adquiridos no decorrer da vida são a presbiopia, ceratocone e astigmatismo. O resto, quem tem já nasceu com. Provavelmente não notara indícios de hipermetropia e/ou miopia porque não precisou usar intensamente os olhos para estudos e coisas do gênero.
Analiso a cagada vermelha em minha mão, um perpendicular ao seu comprimento e nas costas dela. Frank volta com cervejas pilsen, douradas e brilhosas, de modo que sua voz começa baixa e vai aumentando:
– Pressão baixa, abaixo de vinte centímetros, é incapaz de bombear o sangue ao cérebro, não o oxigenando, gerando fadiga. Caso as pressões saiam do compasso, acontecendo simultaneamente, o coração pára. Aí é só com desfibrilador ou pancada forte para “reviver”, o que geralmente acaba quebrando costelas. Uma morte teoricamente linda... Isso foi seu estômago? – faz cara de curioso e aponta com o indicador para minha barriga magrela.
– Do nada me deu um caralho de fome! – respondo-o. – Pegue a porra da gaze, caralho!
– Caralho o caralho, muié. – inclina-se e põe uma garrafa de cerveja no chão. Joga o rolo e acerta bem no meio da pia. – Cesta!
– Estou impressionada. – ironia de primeira.
– Dê uma lambida nessa muié, muié. Olhe pra ela, implorando para ser lambida! – aponta para o cadáver ao mesmo tempo em que se inclina de novo para pegar a garrafa e puxa as calças para cima.
– Ela está morta. Mortos não imploram por nada. Se implorassem, pediriam para você se foder. – meu estômago ronca.
– Sério? Ela está morta? Ó meu deus! O que foi que fiz! – Frank com sua ironia de quinta categoria.
– Dê-me uma cerveja e pare de tagarelar. – estendo a mão que não segura a faca, que também não está com uma enorme fenda, e que também não está toda vermelha.
            Num movimento de abrir um zíper, abro o ventre do cadáver, do pescoço à vagina ainda suja de esperma, permaneço com o braço esticado. Pela minha experiência, deduzo que tinha uns quinze anos, uma pubescente cegada pelo tesão dos hormônios. Pergunto a Frank quão velha era.
– Tinha quinze anos, o nome era Bruna. – lógico, sou foda. – Depois de meter, ainda amarrada e amordaçada, peguei clorofórmio e derramei em seus olhos. Gemia de dor a pobre coitada. – Frank conta cada história, como a que já dissecou uma vaca putrefata na estrada. Acho que é mentira. – Brinquei um pouco dando vassouradas e arranhando algumas partes do corpo. Por algum motivo, ri demais. Escalpelei-a com um cutelo e joguei vinagre nas chagas. Para conservá-la bem, joguei formaldeído e a trancafiei no frigorífico. Não me considero um psicopata, sou apenas um artista sofisticado... Além do mais, estou fazendo um favor a todos. – retira a tampinha e engole um gole de cerveja. – Você sabe que formol é cancerígeno, né? Limpou bem?
– Que tipo de canibal pensa que sou? Sempre limpo meus corpos antes de comer... – fico in-con-for-ma-da. – Obrigado por temperar a carne com vinagre... Antes que pense que sou hipócrita, não consegui limpar todo o sêmen. Melhor, fiquei entediada pelo esforço. Esfreguei, esfreguei, esfreguei... E esfreguei e nada. – explano. – Por acaso você tem uma mangueira de porra aí? – desenho círculos com a mão desmunhecada do braço estendido, apontando a área genital dele.
– Vou considerar isso como elogio... Aconselho a não ingerir o olho, a não ser que goste de uma irritaçãozinha na garganta.
– Nem se preocupe, odeio gelatina... Quero dizer, olho.
– Não seria melhor depilá-la ao invés de tentar limpar?
– Ui, que nojo! – faço careta. – Cerveja! – balanço a mão. Ele retira um abridor do bolso e me entrega ambos. Abro e bebo um pouco. Arremesso o abridor a ele.
– Cavala!
– Vou considerar isso como elogio. – bebo mais, do gargalo.
Fizemos um acordo, ele mata, eu como. Deste modo, ambos nos divertimos e amenizamos o perigo de ele ser preso ou eu ser espancado até a morte excruciante pela vítima. Corto o topo do seio em que Frank ganhou, com suas “bolinhas”, e o levo à boca. Mastigo e degluto, movimentos mecânicos básicos da digestão. A sorte é que a vagabunda não tem silicone, o que é uma coisa espantosa pra atualidade. Se tivesse, ia dar a maior cagada ao cortar. Ano passado cacei uma stripper com três litros e meio em cada... Puta merda que excesso de futilidade.
– Já pensou em assar?
          Pensando bem, essa idéia até que seria boa. Agradeço a Frank e vou à churrasqueira preparar a grelha e o fogo. Ele vem atrás e faz o favor de carregar a Bruna desalmada e sangrenta, de cérebro exposto e lindas íris azuis. Digo para tomar cuidado para não derrubar os órgãos, principalmente o intestino grosso. A-do-ro intestino grosso.
– Eu lia coisas aleatórias em livros e encontrei uma coisa que talvez lhe interesse. – diz Frank, arrastando a carne morta. – Gourmet como você é, deveria saber que os astecas preparavam um prato exótico com carne humana, o tlacatlaolli. E era acompanhado de milho. Com gostinho levemente adocicado. – conclui: – Não estou dizendo nada, apenas transmitindo a informação dada no livro! – toma tanta cerveja que consigo ouvir o líquido se movimentando em sua garganta.
           Dessa eu não sabia. Jogo algumas lenhas no fogo e acendo algo que segundos depois se tornará um fogaréu. Frank ergue o corpo, como se estivesse carregando uma noiva pelada e de cérebro exposto, e coloca-o num bloco enorme de mármore que tenho ali. Talho em tiras a nádega esquerda da moça.
– Como conseguiu passar pela barreira óssea do crânio? – Frank pergunta, olhando para o cérebro quase inexistente da menina.
– Insistência é a chave... E antes que me ataque com palavras fúteis, nem pense em comparar isso, – aponto para a jovem. – Com isso. – aponto para o pênis dele que está guardado numa cueca e calça e alterno entre isso e a vagina da moça. – Você não viu o estado daquela porra! Nem pense em me chamar de hipócrita.
Continuo a retalhar. Terminando, coloco as fatias na grelha. Agora é só aguardar e ir virando para não torrar. Pego a garrafa de bebida alcoólica fermentada e tomo mais um pouco do doce-amargo sabor.
– Há outras coisas interessantes, sobre como morrer eletrocutado. – fala a enciclopédia-falante-até-demais. – Certamente conhece o fio-terra, mas não de suas “aplicações”. – gesticula aspas. – Digamos que estou bêbado e descalço e quero mijar de uma ponte. Se acertar um fio de luz abaixo, viro torrada. Supondo também que esteja limpando, sobre uma escada, uma parede. A água faz rastro ininterrupto do chão à minha mão, e ao mesmo tempo seguro numa luminária acesa ligada à parede, com a outra mão. Pof!
– E se não estiver bêbado?
– Ahn? – toma um gole da cerveja.
– Nada, deixe quieto. – tentativa de piada ridícula falida.
            Há diversos relatos de canibais. Um japônes, Issei Sagawa, matou e deglutiu sua professora. Alegou que tinha gosto de atum cru. Albert Fish, assassino de crianças americano, falava que a pirralhada tinha gosto de vitela, bem macia. O alemão Armin Meiwes não apreciou o pênis cozido do engenheiro Bernd Brandes, cujo qual ele dividiu a iguaria, antes do recém-eunuco bater as botas. A carne era difícil de mastigar. Brandes insistiu para que arrancasse seu pênis a dentadas, porém Meiwes tentou com uma faca. Estava sem fio, tentou uma segunda e assim vingou decepar o tubérculo genital.
Brandes também não gostou do próprio pau.
– Realmente, física é fascinante. Sabe a teoria do caos? Aquela que diz que uma coisa faz outra acontecer, que faz outra acontecer, formando uma cadeia de eventos. Os possíveis fins são imprevisíves, portanto caóticos. – certamente Frank tem muito tempo livre para achar isso – A aplicação mais famosa está no “efeito borboleta”. Há uma frase que explica bem a teoria: “O bater das asas de uma borboleta num lado do mundo pode gerar um tornado no outro”.
             “O açougueiro mestre”, em alemão: “Der Metzgermeister”, como é conhecido Armin Meiwes. Guardou num freezer o corpo de Brandes, depois de dar um beijo e remédio calmante a ele. Alimentou-se de vinte quilogramas de carne diariamente, durante meses, tomando vinho também. Para dar um ar mais refinado, talvez. “A carne tinha gosto de porco, um pouco mais amargo e forte, mas muito bom”, disse o canibal. Após o engenheiro adormecer, o açougueiro mestre deu algumas facadas no pescoço da “vítima apotemnófila” e a pendurou num gancho de açougue, para drenar o sangue e dissecar.
– Já pensou em como deseja morrer, Carla? – filosofa Frank, intrigado e com mão no queixo e traga uma boa parcela da garrafa garganta abaixo. – De modo bem artístico, quero morrer em público, nu, e comprimido por uma prensa gigante, enquanto envolto por bromélias, rosas e orquídeas perfumadas... Adoro rosas... Com um charuto cubano aceso na boca, soltaria a máxima: “No que a vida é feia, a morte compensa em suas belezas”, ao mesmo tempo que desenhando desenhos amorfos com a fumaça branca. – termina a descrição da cena. – A morte é algo assim: dor física e prazer mental. Imagine só, depois disso nada mais virá. Alguns ficarão comovidos com sua ausência eterna, o desespero da vida acaba ali. É só você e o seu conforto, submissão ao destino. Chocante, talvez, porém muito gostoso. – toma cerveja. – Isso é muito gostoso também. – encosta o indicador de carne e osso fino e longo na garrafa grossa e comprida e de vidro em sua outra mão.
– A vida acaba ali? Mas, e a eternidade? – bebo.
– Eternidade? – risadinha debochada. – Deus não existe, filha.
             Digo a ele que desejo morrer comida viva à força. Sem garfos, sem facas, só dentadas e unhadas. Excitante. Neste momento, sinto um cheiro engraçado, horrível... É da nádega. Pelo jeito já está bom. Ofereço um naco ao Frank, ao mesmo tempo em que despejo líquido fermentado dentro do meu corpo pela cavidade bucal.
– Você sabe que não gosto dessa merda... Mas, já que insiste alcance-me aquele pedacinho ali, parece suculento. – coloca um prato perto de mim.
             Gourmet como sou, experimentei das mais diversas iguarias. Desde larvas de bicho-da-seda a cérebro de macaco. Como também carne de canguru ao vapor e aranhas assadas no espeto. Churrasquinho de gato e testículo de boi. Casu Marzu, queijo podre de leite de ovelha com larvas de mosca, e Kopi Luwak, café feito de grãos cagados pela civeta, pequeno animal que se assemelha ao gambá.
– O que aconteceria se, da noite pro dia, invertêssemos as cores do semáforo? Digo, verde para vermelho e vice-versa. Não seria tudo tão belo e caótico? – Frank expele comentário mais que aleatório. – Caos instantâneo, não? Porém, só funcionaria se invertêssemos em só alguns, deixando os outros normais. Só para confundir mais...
– E se eu desse um tiro para cima?
Uma coisa que pessoas não entendem: Sêmen é nutritivo. Além disso, são dotados de propriedades culinárias impressionantes. Uma receita ótima é um suco muito protéico, que não usa derivados de animais, para a alegria dos vegetarianos ecobabacas. Embora não use derivados animais, não deixa de ser natural. O preparo é fácil. Jogue os seguintes ingredientes no liquidificador: Um copo de pedaços de kiwi, uma banana madura, um copo de leite de soja, alguns cubos de gelo e três colheres de sopa de sêmen. De preferência gelado... Aconselho Frank a tentar isto, aproveitar sua mangueira.
– Ô parada boa pra cacete! A partir de hoje, adoro comer bunda! Se soubesse que era tão bom, teria começado faz tempo. – sabia que iria se maravilhar com minha carne. É lógico. – Alcance-me o molho Rosé, o Shoyu e o Curry.
– Rosé é pra salada. – digo, alcançando os outros dois.
– Foda-se. – abre as tampas.
– Nunca coma pênis! Confie no Armin Meiwes! E em mim! – estendo a mão para lhe passar o Rosé, já que insiste.
– Quem é esse cara? – pega a insistência concretizada.
– Não importa! Confie nele! – comento.
– Confiar em desconhecidos? Tá parecendo aquele papo de Jesus Cristo e seu paraíso. – coloca um pouco de bastante de cada molho no pedaço generoso de nádega. – Blábláblá sou três e Éden.
– Confie em mim, então.
            O mais engraçado de Meiwes, é que entrou em um bate-papo da internet, escreveu: "procurando homem para abater". Disse a Günter Stampf, um entrevistador que publicou mais tarde o livro "entrevista com um canibal", que refogou o filé do engenheiro com sal, pimenta, alho e noz-moscada. Logo após ingeriu com um molho de pimenta verde e croquetes princesa com couve-de-bruxelas de acompanhamento. Meiwes disse que apesar de monstruoso, ele é uma pessoa normal. Depois de denunciado e preso, falou aos policiais que sempre quis ter um irmão mais novo para poder devorar, e viver junto eternamente.
            – Esse negócio de fruta proibida é a coisa mais irracional e fantasiosa que já ouvi. – comenta mastigando. – Onde já se viu criar uma fruta... Que não é para ser comida?
            – Pare com esses... – paro em uma pausa. – É mesmo...
            – E pior, o cara – aponta o garfo para o teto, mastiga e volta a cortar o papá. – Ele  sabia que ia dar cagada...
            Frank começa a rir sem parar, com garfo na testa e cuspindo alguns pedaços triturados de bunda alienada. Lacrimejando, continua:
            – E matou o filho! – ri mais, para cima e corta mais. Mastiga mais, ou tenta mastigar enquanto gargalha mais. – E tirou as asas da cobra falante, e criou uma mulher a partir de um par de costelas, e fez uma baita enchente idiota, e matou um monte de sua própria gente que acredita Nele... – pára um pouco de rir, mais ainda solta alguns gemidos e finalmente conseguiu recortar uma fatia de carne. Diz, colocando mais Curry: –  E ainda tem a cara de pau de pedir para que o adorem, o temam e façam tudo por Ele e sua imagem triplicada!
            Uma descarga de risos sai de sua boca, assim como pedaços mal mascados de carne humana e assim como gargalhos saem entre meus lábios, que também espirra cerveja que recém coloquei na boca.
– Ai, ai... – suspira e larga os talheres. – Mudando de assunto, – pega a garrafa e vira o gargalo garganta adentro. – Sempre tive fascínio por tortura. Tamanha engenhosidade. –  Frank com seus ensinamentos – Conhece a “pêra”? Um objeto metálico alongado com uma extremidade tuberosa e outra fina, semelhante a uma pêra. Na Idade Média, introduzia-se na boca ou até mesmo no esfíncter retal. Nas mulheres havia a opção da vagina. A Inquisição usava em pessoas sob suspeita de sodomia, hereges, mulheres suspeitas de adultério e em pessoa qualquer que tenha cometido incesto, ou como diziam na época: “União sexual com o Satã”, que piada... Alcança aquele pedacinho ali. – mostra com o garfo.
Acabou-se a nádega esquerda, agora chegou a hora do intestino grosso e do encéfalo. Ô mulherzinha gos-to-sa!
– Essa “pêra” possuía uma manivela lateral. Depois de enfiada numa das mucosas girava-se o dispositivo. – continua Frank, sobre a “pêra”. – Ela ia se abrindo e expandindo a ponto de romper o tecido epitelial e provocar hemorragias. Ao mesmo tempo, surgia um adendo metálico interno bem longo, pontiagudo, que acabava “cutucando” e apimentando a dor. – conclui, comendo o novo e último naco de bunda-coxa. – Falando em pimenta, tem Malagueta?
– Não.
– Bhut Jolokia?
– Não.
– Mostarda com bacon? Mostarda com mel?
– Não e negativo.
– Aspargos? Alcaparras? Páprica? Wasabi? Corações de alcachofras?
– Mofados, não, não, comi tudo e negativo.
– Nem uma porra de parmesão ralado?
Digo que está em sua frente, na vasilha prateada, e peço para que traga outra cerveja. Acrescento que o encéfalo gostoso já está quase no ponto, só darei mais uma viradinha. O instestino vai demorar um pouco.
– Aproveitando que tocou no assunto, conhece a “síndrome da Alice no país das maravilhas”? – conversa de costas para mim, abrindo a geladeira que gela demais. – Assim como no livro homônimo, como se fosse uma viagem lisérgica de Lyserg Säure Diethylamid, vulgo LSD, a pessoa afetada vê coisas desproporcionais. – vira-se, agora consigo ouvir sua voz com clareza e ver nitidamente o casal de nítidas bebidas alcoólicas que carrega. Conclui: – Uma caneta maior do que é, um carro menor do que é... Tó. – oferece uma garrafa.
– O ruim de comer certas carnes é o osso. Nojento... – estendo a mão enfaixada com palma para cima e ele deposita gentilmente o abridor de garrafas. Estico-me de onde sento para olhar dentro da churrasqueira. – Já está pronto, quer experimentar o cérebro? – a tampinha sai voando e devolvo o abridor de garrafas.
– Não obrigado, estou terminando a bunda. – ignora o abridor e abre com a mão. – Também sou extremamente supersticioso. Quem sabe a burrice de funkeiras passe a mim? – estréia a bebida com uma troca impressionante de topo para fundo de vidro. – Outra coisa, tem saquê?
Digo que sim, ao seu lado, numa garrafa com escrita caseira “Saquê”, eu mesma que fiz. Peço para despejar um pouco também em minha cerveja enquanto como o cérebro branco-acizentado minúsculo. Devia ser burra mesmo. Como também o bulbo raquidiano e o cerebelo. A hipófise tem o tamanho de um feijão. O intestino está quase no ponto. Frank levanta e vira uns mililitros de saquê na minha bebida.
– Tem também a doença “Pica”. – Pica?
– Pode colocar mais. – atravesso e balanço a cabeça em direção a sua mão que segura o saquê caseiro. Corto a comidinha em meu prato artesanal de porcelana. – Esses pratos eram para ficar na parede... – rio discretamente. – Pode continuar, querido.
– Então... Onde eu estava? – despeja saquê em minha bebida.
– Pica. – agora despeja saquê em sua bebida
– Ah! Pica é uma palavra latina derivada de “pega”, um tipo de pombo que come de tudo. Ou seja, a pessoa come qualquer porra. – sorve o coquetel. – Será que você não tem isso?
– Sei lá.
O intestino grosso está no ponto, de modo que coloco o órgão na tábua de churrasco, e começo a retalhar.
– Mudando de assunto, já ouviu falar de Cutaneum Cornu? – não sei onde ele acha essas porcarias – Um excesso de queratina, a mesma de chifres de animais e nossas unhas e cabelos, aparece a partir de repetidas lesões na epiderme. Somadas à exposição ao Sol, formam-se chifres. – arrota e encara a garrafa meio-dourada, meio-transparente de sua mão. – Por isso é mais comum aparecer na testa. Mas nada impede de aparecer na mão, orelhas, pálpebras e até lábios. Já matei uma velha que tinha isso. Serrei aquela merda e enfiei no reto dela. Foi bonito de ver. – tira o gargalo da boca. – Ah, o grito da agonia!
Ofereço um pedaço de intestino e digo que preciso falar algo sério.
– Pode falar... Intestino? Ah, que se dane. Manda ver! – jogo no prato dele. – Até que é boa essa parada! Não tem muito gosto de merda, como esperava. – acrescenta Frank ruminante. – Não que eu tenha comido merda... Mas pelo cheiro já se tem uma idéia, já que o aroma é grande responsável pelo sabor... Continue.
             Falo a ele, ao mesmo tempo que mastigo o delicioso intestino assado, que recebi uma carta de alguém muito especial ontem. Infelizmente, preciso partir.
– Ahn?
Preciso sair do Rio de Janeiro e voltar ao meu destino, em Dakota. Enviou-me uma mão, meu ex-namorado. A carta que escreveu, o selo de rouxinol e o aroma amadeirado que amo me comoveram muito. Jack é seu nome, meu docinho de carne. Preciso voltar, amigo.
– Não! – grita Frank – Não vá! Eu te amo! Não vá! – cuspe pedaços de carne morta assada e faz careta de choro.
Falo que sinto muito por despedaçar seu coração, só o vejo como amigo. Perdão, amigo.
– Não me obrigue a fazer isso!
Quando termina de falar, Frank pega a faca que usei para a carne. Cuspo o intestino mastigado no chão e derrubo a garrafa, meio-cheia, meio-vazia de cerveja gelada. Fragmentos de vidro dançam com o líquido dourado. No susto, também derrubo os pés e mãos da Bruninha, que acabei de colocar na grelha, caindo assim diretamente no fogo e torrando, conseguintemente.
– Frank, acalme-se! Não faça isso, Frank! – recuo, com as palmas viradas para ele. – Um moço bonito como você merece mais do que posso oferecer!
– Balela! – projeta a garrafa meio-cheia, meio-vazia, com brutalidade na parede. Estilhaços voam.
– Frank! – dei tanta ré que o calor do fogaréu é máximo. Encosto sem querer as palmas na mureta da churrasqueira e queimo uma palma e perco pedaço de faixa vermelha-sangue da outra num tijolo.
– Não se preocupe querida, a faca é só prevenção. – assoa o nariz com a manga e soluça. – Você será comida viva... E se ficar quietinha, conseguirei usar as unhas... É o máximo que posso fazer. – suspira profundamente, ranho escorre. – O saquê tava uma delícia. Tchau, Carla... #Sniff#

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