sexta-feira, 30 de abril de 2010

Vermelho



Era uma vez, uma menininha ingênua de aproximadamente onze anos e seis meses, que preferia ser atendida  pelo codinome “chapeuzinho vermelho”. Isso mesmo, chapeuzinho vermelho. Residia ilegalmente no centro de floresta aleatória, com os genitores. A mãe de glúteos e coxas bem trabalhadas, o pai alcoólatra  cafajeste que amava chegar ao lar nas noites de sexta, sábado e domingo, para espancar a cônjuge durinha.

O macho vivia descabelado, desajeitado e mal-lavado, cheirando à ração de gato com bunda.  Olhos verdes, cabelos louros, porte físico médio e uns quarenta e um anos de maturação. Desde sempre a masturbação. Década e  meia de tabaco e duas de metil-carbinol no sangue. Não exatamente na corrente sanguínea, mas isso ilustra muito bem as doses cavalares de pinga.

A fêmea possuía um corpanzil de dotes de dar inveja até a um pobre esquilo, dentre eles: olhos castanhos brilhosos,  cabeleira perfeita e nádegas e seios protuberantes carnudos. Duros.

Como chapeuzinho era inocente, até demais, pensava que seus responsáveis brincavam de briga de travesseiros e, alguns dias, de polícia e ladrão, com direito a algemas, tiros, sirenes e cacetadas.

Ao contrário do que é sugerido pelo nome, chapeuzinho usava uma touca vermelho-sangue, não um vermelho ordinário. Tampouco um chapéu, ou chapeuzinho. Ou chapelão. Ou sombrero.

A mãe costumava confeccionar semanalmente cremosos docinhos de ervas, “simplesmente extraordinários!” e  “psicodélicos, não me leve a mal.”, segundo opiniões alheias dos animaizinhos errantes da floresta densa pra caralho.

Um dia, precisamente sexta-feira, chapeuzinho decidiu surrupiar as guloseimas ainda na fôrma, ultra-quentes, e levá-las a sua vovozinha senil. Pelo menos este era o bem maior que justificou tamanha criminalidade. Furto, fruto da má educação ou de um possível retardo mental da garota. Chapeuzinho berrou quando colocou  em contato com a fôrma seus delicados dedinhos, soltando um corpulento “filho de uma puta safada!”.

– O que foi, filhota?

– Nada, mãe! Esbarrei o dedinho do pé nessa porcaria de mesa!

Após mentir friamente, após uma série de afrontas à moral, chapeuzinho deixou sua casa e se direcionou à da vovozinha, deixando a mãe potencialmente vulnerável a espancamentos, garrafadas e penetradas espontâneas. Nossa heroína andou muito por aquela estrada acidentada e pedregosa, resultando em dores agudas e algumas tropeçadas, que ralaram seus joelhos e palmas das mãos.

Enquanto no trajeto, chapeuzinho se sentiu vigiada constantemente por uma besta terrível e esfomeada, que, por um motivo qualquer, não a deglutiu quando em momentos oportunos, como quando a heroína parou para urinar na mata e bater uma siririca ao mesmo tempo. Nem deglutiu também aqueles doces mornos daquela bolsa Prada prata ostentada pela criança. Múltiplos vultos fizeram-na confusa, começou a  pensar estar delirando e a duvidar sobre os docinhos que derretem na boca, receita especial.

Chegando à casa da mãe da sua mãe – ou mãe do pai, já não lembro mais –, a cleptomaníaca entrou sem permissão e retirou os calçados, a fim de descansar os pés calejados e cheios de enormes bolhas febris de sangue e pus dos contornos das solas. Como chapeuzinho era cara-de-pau ao extremo, foi ao banheiro para cagar, sem ao menos alertar vovozinha que estava prestes a estourar o vaso.

Após Flushs, Rosh-roshs e Óóó, isso é bom, chapéu-diminuto retirou-se de dentro do conforto gélido que só um banheiro tem e percebeu que sua avó não estava repousada na cama, seguindo assim à risca as recomendações de seu médico. Seria a vovozinha idiota ou burra?

À procura da tonga, touquinha vermelha chegou à cozinha e ficou defronte de uma cena nada trivial: Uma besta peluda e fedida encontrava-se agachada fazendo algo, logo ali.  Mais perto do que parecia.

Órgãos por todos os lados, muito sangue escuro espirrado nos vértices do cômodo, membros desacoplados, utensílios domésticos partidos, roupas atassalhadas e um garfo cravado no ombro da fera só fizeram chapeuzinho lembrar que era mortal.

Um pâncreas em repouso na mesa central de mármore bem negro, sangue vermelho-sangue em poças gigantescas cercando a criatura grotesca e chapiscado nas paredes de azulejos xadrez caríssimos, um coração  pulsante  arredor dos pés calejados de nossa garota, e rastros de garras pelas mobílias – contidas num conjunto francês especial limitado, adquirido via leilão clandestino.

A velhinha possuía um vasto tecido epitelial, avermelhado e grosso, enrugado e asqueroso, estendido, de forma que se passava por uma toalha de mesa a primeira vista. E só.

No desespero sufocante, touca-vermeia se atirou com idiotice feral e impulso feroz, sobrenatural para sua estatura, e estrangulou o ser. Pelo menos tentou. Quem dera força de vontade fosse força de verdade. O ser lhe devolveu alguma palmada certeira na boca do estômago de nossa estúpida garota com sede de heroísmo e pulou em cima da mesma. Face a face. Chapéu-no-diminutivo embaixo, apnéica, e o monstro em cima, baforando e babando em seu delicado rosto que delgadas linhas definiam.

O bicho possuía um bocarão e dentes imanes para trituração de ossos e carne humanas, que exalavam carniça. Orelhas grandes para monitorar suas presas na floresta. Olhos esféricos gigantes entorpecentes para amedrontar suas vítimas. E focinho largo, para farejar sangue quente.

Subitamente, sem razão aparente ou lógica, um lenhador sarado, com aparência de modelo comercial de perfume francês  barato, munido de um machado duplo de quase quatro quintos de sua altura, brotou do chão e desferiu um golpe visceral no crânio da praga. Abriu-lhe seu encéfalo, cravando com tanta selvajaria a arma, que nunca mais pôde ser retirada. Não por um ser humano.

Mesmo assim, era forçudo. Musculoso o suficiente para empunhar aquele machado bárbaro. Possuía torso descomunal de halterofilista, e coxas mais rígidas que as da dona consistência. Cabelos lisos e face quadrangular com queixo duplo. Vivia a graça da juventude com seus vinte e três aninhos.

O lenhador sexy analisava a cena, com direito a muita sujeira e chapeuzinho desmaiada ao chão, sem seu chapeuzinho, encoberta de sangue e miolos. Ele a levou a um casebre vizinho a uma árvore rara de 36,14 metros, aproximadamente. Uma árvore extremamente linda. Gimnosperma. Pegou bolinhos também, muito convidativos, para fazer lanche mais tarde – ele adora bolinhos. E com certeza irá adorar a receita especial da dona maciça. Mas isso será depois, depois que chapeuzinho morrer.

O abrigo era relativamente pequeno e não possuía eletricidade nem nada, a não ser uma humilde cama, molhada e cheirando à ração de cavalo e toupeira. Uma cama com antigo colchão de molas oxidadas somente.

Chapeuzinho acorda e avista uma bunda reluzente a sua frente, na outra extremidade do abrigo, próxima a uma abertura na parede. Há um machado ensanguentado apoiado no canto esquerdo, com uma cabeça monstruosa colada. A infante  sente a brisa fria batendo em toda a pequena peça de carne, pele, tripas e osso que é o seu corpo e sente também sua face e cabelos grudentos e oleosos. Sente-se presa à parede por algo em seus pés calejados e mãos esfoladas. Sente-se crucificada sem cruz.

A silhueta em frente vira, traçando uma semicircunferência imaginária com as solas, na ação. Diz, com um braço escorado no outro, ortogonalmente, e uma mão suportando o duplo queixo:

– Que pena que será desperdiçado algo tão angelical e sutil. Você daria num puta mulherão. Confie em mim, você iria ficar muito linda.

– Quem é você?

– Uma pena mesmo. Mas, pensando bem, foi bom assim, lavo o machado uma vez só.

– Ahn?

Era uma vez, uma menininha ingênua de aproximadamente onze anos e seis meses, que preferia ser atendida pelo codinome “chapeuzinho vermelho”. Isso mesmo, chapeuzinho vermelho. E fim.

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