domingo, 25 de abril de 2010

Última chamada


– Número 342!
Maldito seja tudo que respira. Tudo que se desloca no espaço.
– Número 342! Última chamada!
Amaldiçôo tudo rastejante e tudo com vida.
– Número 343!
Até suas últimas presas e último centímetro de escama.
– Eu!
Sorte deste senhor, o 343. O 342 provavelmente saiu para almoçar ou passou do prazo de validade. Ou até morreu almoçando. Sorte dele por ter sido poupado de mais vinte minutos de tortura e ter recebido perdão do destino. Vinte minutos ininterruptos de choros de criança e velhos cheirando a mofo. O destino é difícil de lidar, não reconhece tanta dor alheia assim. Poucos são os sortudos que cruzam seu caminho justo quando o Sr. Destino encontra-se em estado altruísta interessante.
Uma hora passada desde que cheguei, e o número 349 sequer foi articulado. Após mais uma hora, quiçá duas pessoas tenham fenecido. Uma de gripe suína e outra de febre amarela... Após uma hora, perdi uma hora de vida...
Foda-se!
Saio pela porta para aproveitar o resto dos braços, sou impaciente e intolerante. De nada adianta querer me mudar, isso está em meu código genético. Mesmo dezessete caindo no chão da sala de espera, o 523 sequer seria pensado em voz alta por alguém e provavelmente eu teria perdido o motivo de estar lá. Aproveitarei meus braços e gozarei deste luxo.
Ler seria boa pedida. Quem sabe um jornal... Não, revista.
Não, jornal mesmo.
Pego um exemplar do “Páginas diárias”. Na primeira página do dia: “Jovem de 22 anos falece durante partida de futsal. Agente do óbito: hemorragia”. Minha situação não se difere em muitos aspectos. Podemos dizer que tangencia esta, quase secante mesmo que pouco. Analisando bem, pode sim ser comparada à hemorragia. A única e sutil diferença é que talvez agonizarei por mais uns anos e amaldiçoarei mais uns seres terráqueos.
“Moça de 33 anos resiste a assalto e falece com facadas múltiplas no peito, nesta manhã de sábado”.
Que tipo de idiota resiste a um assalto? Até meu tio Bernie, que mora no mato, sabe que nunca se deve resistir a um assalto. Nunca você será bombadinho o suficiente para reverter o jogo. Prefiro morrer de uma causa idiota a morrer por causa de uma idiotice minha.
Podemos dizer que meu caso é fusão de ambos, ou pura má sorte. Poderei até sofrer mais, não morrendo cedo. Não naturalmente. Quem me dera tivesse ouvido os conselhos de meus pais cadáveres e tivesse limpado bem o aposento,  vasculhado cada minucioso detalhe, qualquer vértice existente. Esfregado aqui e acolá toda a poeira inalável, inserisse a mão debaixo de qualquer coisa para pegar quaisquer coisas e atirar na lixeira. Jogar o saco plástico da lixeira para lixeiros pegarem e fazerem sabe lá o que fetiches.
Quem me dera tivesse pelo menos varrido algum cômodo. Principalmente em meu quarto, debaixo da cama.
Largo o jornal e pego uma revista científica-popular, cuja capa é chamativa e a matéria destacada se destaca mais que a própria capa. Destaca-se mais que a banca. Destaca-se mais que o dono desta banca mequetrefe, com nariz gordo, face oleosa, gordura acumulada na região abdominal, pele amarelada, olhos vermelhos, com odor de catorze cigarros Marlboro.
Está impresso na revista coisas muito interessantes, mas nada destaca-se mais que a matéria principal, com dúzias de páginas dedicadas somente a uma questão:
 “Deus existe?”.
Acredito que o ser humano, simples e obsoleto como é, nunca provará nada em relação a Deus e coisas divinas. Até minha avó, de 76 anos, senil, sabe que discussões religiosas não levam a lugar algum, visto que não possuem argumentos concisos. Até eu estou ciente disso.
Há um bicho mal-desenhado que explica alguns assuntos menos interessantes. Ele é feio, mesmo com intenção cômica, e muito mal-desenhado mesmo. Contornos sinuosos onde reta deveria estar, cores conflitantes e ridiculamente perturbadoras, coisas mais que me deixam estressado – como seu nome, o “Cobre-castanho”, seja lá que significado tenha. É uma mascote estúpida. Nome mais apropriado para ela seria “Vagabundanho”.
Noto algo interessante. Mais interessante que a matéria de capa. Mais interessante que a capa. Que o homem-cigarro com prurido anal logo ali. Que a banca vagabunda.
A matéria aconselha o leitor, mostrando métodos para não ser assaltado num ônibus, durante um assalto de ônibus com você sentado num dos bancos nada confortáveis do transporte governamental. Dentre os itens, o qual mais me agulha é:  “Durante a tentativa de saque, durma ou finja estar adormecido”. Isto sim é interessante, fascinante.
No pior dos casos, você acabará roubado do mesmo jeito que se desperto.
Mesmo sendo atraente, devolvo a revista brutalmente e gasto as últimas moedas com um chiclete. “Desculpe-me pela revista, senhor”, digo.
Muito cuidado ao mascar, não quero morrer de uma causa idiota. Como dezenas de pessoas, num passado não tão remoto, que morriam com balas. É isso mesmo, balas de chupar. Balas doces. Balas grandes o suficiente para entupir uma traquéia. Com o diâmetro exato para tal feito. As célebres e deliciosas balas Soft. Impossível maior ironia. “Soft” é macio em inglês.
Devido ao grande índice de mortes acidentais, mortes idiotas, a empresa da guloseima teve que produzir o doce agora com orifício central. Isso que chamo de algo no mínimo, interessante.
O mais interessante e idiota de tudo, é o fato de haver cobras em meu cafofo. Precisamente, espécimes de Bothrops jararaca. Não sei por que raios biólogos embelezam estas pragas com nomes fofinhos, de abraçar pelúcia. Muito menos sei o porquê de jararacas aparecerem, do nada, em casa. Realmente não sei se foi relaxo meu ou muito azar.
O crepúsculo começa minúsculo. Entardeceu rápido, farei usufruto de meu computador pessoal de mesa e aproveitarei meus membros enquanto os possuo. Como moro sozinho, praticarei onanismo e aproveitarei os braços. Irei perder sêmen, “bocejar com a mão”, “espancar o xaxão”,  “pecar na mão”, “brincar com os cinco anões”, como preferirem.
Paro após horas, meus braços não são de ferro. Tampouco inteiramente de carne e osso, na condição corrente. Inflamados, cheios de pus e semi-gangrenados.
Malditos sejam os ofídios!
Uma pergunta: Por que estas pestes ainda não foram extintas? Por que o homem preserva algo ruim e peçonhento? Por quê? Produzam mais bolsas e sapatos! Não temos nada a perder – são bonitos, resistentes e caros.
Como não sou de ferro, durmo após resmungos e bicas na parede. Ao acordar, por eu não ser um super-herói e não ter paciência de esperar alguma mulher obesa gritar “523” com sua voz negra e rouca, meus braços estão verdadeiramente podres.
Nesse instante penso em como livrar-me deles. Peço ao vizinho ou ao próximo transeunte? Sento durante horas, cheirando mofo e ouvindo berros, ou peço a um drogado, psicopata? Vejo que o melhor para a situação é um método idiota. Uma causa idiota levando a uma idiotice.
Sento e aguardo próximo caminhão, ou caminhonete em alta velocidade, dirigido por algum beberrão, passar pela rua? De que jeito posso ceifar meus braços? Ou somente devo me dirigir ao lago, praia, ou rio mais próximo e mergulhar sem hesitação?
De jeito maneira ficarei com estas bostas penduradas.
Maldito seja o número 523!

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