terça-feira, 6 de janeiro de 2015

Um dia muito louco



– Meu nome é Railan e...
                – Desculpa, Railan, mas não é permitido falar o seu nome. – o técnico interviu, gentilmente com a sua voz de veludo.
                – Tudo bem, eu não sabia desta regra. – continuou Railan. – Mais alguma coisa que eu devo saber?
                – Não é permitido falar o nome de ninguém. Somos números, e você é o número um. Não quero que isso se repita, e isso vale para todo mundo. Tudo bem?
                – Beleza, mais alguma coisa?
                – Não, senhor, pode prosseguir.
                O número um engoliu um bom volume de ar antes de começar o seu discurso.
                – Eu cansei da vida que eu levo, pois é discussão para todo lado, a toda hora, e não consigo ter sossego. Quis vir aqui para sossegar um pouco e aproveitar, pelo menos por alguns instantes, este clima amistoso legal e cheio de humanidade.
                Click.
                O número um soltou a respiração e de repente ficou muito triste. O número dois bateu suavemente no seu ombro, confortando o colega cabisbaixo, que começou a murmurar alguma coisa que era muito semelhante a choro. O dois tomou as rédeas.
                – O meu caso é parecido com o do um, só que eu vim aqui para descobrir se a minha vida é tão ruim quanto eu penso, ou é bem melhor do que isso daqui.
                Click.
                O número dois soltou a respiração e de repente ficou muito feliz. O número um continuava com a sua lamúria, sozinho, no seu mundo, enquanto o dois pulava euforicamente de alegria. Ele dizia algumas coisas aleatórias sobre a vida, dizendo que é maravilhosa, que é uma bênção, que é uma coisa realmente muito bonita e graciosa.
                Eu sou o número seis, e o cinco, logo ao meu lado, é o meu melhor amigo, Peter. Não é Pedro, é Peter, e ele é brasileiro também, desde sempre. Os seus pais são brasileiros cabeçudos e resolveram, por algum motivo, dar este nome retardado ao filho. Ele é o melhor amigo do mundo, é gente boa demais. Engraçado, divertido, bonito, legal, inteligente e heterossexual como eu.
                – Posso tirar as roupas e ficar só de cueca, senhor? – perguntou o número três.
                O técnico ponderou por alguns segundos, medindo o três com os olhos, dos pés à cabeça.
                – Não me recordo de nenhuma regra contra isso, senhor. – respondeu o técnico, com aquela sua serenidade.
                O três tirou as roupas e ficou somente de cueca. Todos nós assistimos à cena em silêncio, sendo os únicos sons do ambiente os dos tecidos sendo amassados e desamassados, dos tecidos caindo no chão e do um assoando o nariz na própria camiseta horrorosamente rosa. As últimas coisas que ele tirou foram as meias, que caíram em cima dos meus sapatos. O local é a fresco, todo feito de concreto, em algum ponto do país cujo não me lembro mais. Qualquer barulho se torna facilmente um estardalhaço, devido à reverberação do local. Um estouro de bomba ou um disparo de arma de fogo, então, nem se imagina a desgraça de som que deve fazer. Quem me convidou e me trouxe aqui foi Peter. Viemos ouvindo música eletrônica. Foi louco.
                – Posso tirar a cueca, senhor?
                – Melhor não.
                – Tudo bem.
                Por algum motivo estranhamente perturbador, fiquei encarando o volume na cueca do três. Sai do transe quando Peter me deu umas cotoveladas no meu braço e sussurrou no meu ouvido.
                – Aposto que ele se borra nas calças. – Peter sussurrou no meu ouvido.
                Muito convidativo o lugar, embora seja feio demais e mal conservado. O clima é cada vez mais tenso, porém, mas não devido ao lugar, e sim devido às pessoas daqui. A feição de todo mundo também deixa o lugar amigável, pois estamos todos na mesma situação. Estou com um calor infernal, porque eu sai direto do serviço e vim aqui, ainda de roupa social.
                Click.
                Ótimo, perdi o discurso do cara. Simplesmente perdi a melhor parte do negócio. Eu realmente queria saber o que um cara como esse, supostamente nudista militante, pensa sobre a vida. E ele não borrou as cuecas.
– Ele não borrou as cuecas. – Peter sussurrou no meu ouvido.
– Não mesmo. – respondi.
Agora é a vez do número quatro.
Ele ficará vulnerável, assim como os três anteriores.
Ele sentirá a pressão. Ele poderá morrer ou renascer.
– Eu acho tudo uma bosta. – o número quatro disse.
Click.
E não morreu. E continuou na mesma. Não alterou nem um pouco o estado de espírito.
– Eu pensei que seria mais emocionante. – o quatro continuou. – Foi um saco.
O número quatro passou o revólver para o Peter. Um frio misterioso surgiu e aos poucos foi tomando conta de mim, começando pela barriga. Quando Peter levou o cano do revólver até a têmpora, com o dedo encostado no gatilho, eu petrifiquei. “Vamos brincar de roleta russa”, ele disse, “é super legal”, ele disse. E aqui estamos nós, brincando de roleta russa com mais quatro caras esquisitos – sendo um deles seminu – e mais um técnico estranho.
– Eu vim aqui porque eu gosto da natureza humana. – Peter iniciou o seu discurso, com a voz firme e um sorriso no rosto. – Aqui nós estamos na mesma situação, todos tensos, todos extremamente expostos um ao outro.
– Eu não. – o número quatro interrompeu o meu amigo. – Isso daqui é uma bosta. – bufou.
O tambor do revólver comporta até seis projéteis. Ou seja, há cinquenta por cento de chances de Peter morrer agora assim que ele fazer um sutil movimento com o seu dedo indicador. E eu posso perder a pessoa com quem eu mais me importo nessa vida em um piscar de olhos. Isso é pior do que morrer. Aquela arma que aponta na cabeça dele aponta também no meu coração.
– Então... – Peter coçou o couro cabeludo com o revólver, retomando a linha do raciocínio. – Aqui nós podemos morrer facilmente. Quando estamos ameaçados de morte, na iminência de perder tudo o que temos e vivemos, mudamos. Passamos a ver a vida com outros olhos. – Peter olhou diretamente para mim, ainda segurando o revólver contra a sua cabeça. – Somos todos amigos e nos respeitamos profundamente. Podemos ver a nossa compaixão e compreensão pelo olhar assim que empunhamos esta arma aqui. – jogou os olhos para a posição da arma, na lateral direita da sua cabeça, e voltou a olhar para mim, conversando comigo e com todos ao mesmo tempo.
Peter voltou a olhar para todos da rodinha. Insuflou o seu peito com bastante oxigênio e terminou triunfalmente o seu discurso. Desse jeito:
– Meus camaradas, provavelmente eu não terei outra chance de dizer isso, mas eu amo todos vocês, mesmo não os conhecendo.
Peter alargou o seu sorriso, comovendo todo mundo. Todos principiaram uma salva de palmas ensurdecedora, que reverberou insanamente no lugar. Parecia uma saraivada de tiros. No meio de tudo isso, o número um se comoveu e chorou de alegria, o dois se comoveu e chorou de tristeza – por não ser tão maneiro quanto Peter –, o três se exaltou e ficou pelado – a cueca, com uma mancha amarela, caiu no meu sapato –, o quatro se comoveu e sorriu e berrou e o técnico bateu palmas gentilmente, como um cavalheiro. Em meio à algazarra, todos os participantes gritaram em uníssono “Cinco! Cinco! Cinco!” e “Uhuuuu! Ihuuu!”.
Permaneci calado.
Permaneci parado.
Peter começou a tremer.
Eu não sabia o que fazer na hora.
Eu gritei com a maior força que eu pude calando todo mundo e saltando todas as veias que existem no meu corpo:
– Nãããããão!!!!
Click.
– Ããããão!!! – continuei, com todos calados.
Todos me encararam, assustados. Peter já tinha apertado o gatilho e continuava de pé, felizmente. O meu grito foi aquela extensão de grito que somente você continua a gritar após o momento em que todo mundo para de falar subitamente. Semelhante a uma festa, no meio da multidão, quando você fala alguma coisa constrangedora, como “ímã de vagina”, no exato momento em que todos cessam a falação e, conseguintemente, escutam claramente o que você acabou de proferir.
Então.
Fiquei parado.
Varri oticamente a circunferência da rodinha de gente, desde o técnico ao meu lado esquerdo até o Peter á minha direita. Continuavam me encarando. Deixei escapar um sorriso tímido com o canto da boca.
– É a sua vez. – disse uma voz da minha direita.
Virei o pescoço, e em seguida o tronco, e logo após as penas, em direção a Peter. Olhei nos seus olhos com os meus olhos úmidos, aliviado que ele continuava vivo, e depois eu olhei para a sua mão, que se encontrava estendida e com o revólver.
Peguei o revólver.
Fiquei encarando o revólver, sorrindo timidamente, zonzo.
Se Peter não morreu, quer dizer que resta uma bala no tambor.
Parei de sorrir e engatilhei a arma.
– Seus filhos das putas! Fiquem onde estão! – segurei a arma com as duas mãos e a apontei para todo mundo, varrendo toda a rodinha com o cano. – Não façam nenhuma gracinha ou eu atiro! – recuei uns poucos passos, tremendo nas bases. – Vocês pensaram que eu ia participar dessa brincadeira do caralho?! Acharam que eu sou burro de tentar me matar, mesmo com certeza de que iria morrer?! – aproximei-me da porta da entrada, que era a porta de saída naquela ocasião, e que se alocava convenientemente bem atrás de mim. – Vamos, Peter, vamos sair daqui! Essa coisa é idiota demais! Muito, muito burra demais!
– O senhor, número seis, infringiu duas regras. – o técnico disse.
– Ah é?! Diga as regras, então, senhor técnico de araque! – apontei o revólver pro homem, tremendo nas minhas mãos.
– O senhor não puxou o gatilho. Isto se caracteriza como trapaça. É uma atitude extremamente desrespeitosa aos demais participantes, visto que eles cumpriram honestamente os seus papéis e você saiu antes da conclusão do jogo. – o técnico explicou, apontando firmemente uma pistola na direção da minha testa. – Sendo assim, ninguém perdeu. Deste modo, não há vencedores, pois não há perdedores. Isto é extremamente desgostoso para todos nós. Estamos infelizes agora.
– E daí?! Foda-se! Se eu atirar em você agora estas regras idiotas não valem de nada! Essa merda de jogo é ridículo, e nem precisa de um maldito técnico! – assumi coragem e firmei os punhos. Engrossei a voz. – Você é um otário inútil!
– Eu já avisei uma vez, mas o senhor insistiu em infringir a regra: eu deixei muito claro que não é permitido dizer o nome de ninguém. O senhor, mesmo assim, disse o nome do nosso colega número seis. – o técnico apontou para o Peter, brevemente, assim que mencionou a sua numeração.
Olhei para Peter, que também apontava uma pistola na minha cabeça. Olhei para todo mundo, que também apontavam uma pistola na minha cabeça. Eram seis pistolas contra um revólver. Isso mesmo, a situação estava preta para mim. Não tinha muito o que eu fazer, na hora. Eu apelei para o coitadismo e disse:
– Porra, gente, ninguém me falou que era permitido trazer uma arma pessoal!
E não deu certo. Começou o tiroteio. Primeiro eu levei uns três ou quatro tiros no crânio, atravessando-o por completo em várias direções. Depois disso, eu derrubei a arma no chão e cai em câmera lenta. Como o alvo – eu – mudou de posição, os caras mudaram a mira e atiraram em várias partes do meu corpo. Peito, braços, pernas, etc. Enquanto eu caia, eu vi um genital ereto de vinte e poucos centímetros, e que apontava para a minha cara.
A saraivada de tiros foi absurdamente barulhenta, o que me irritou bastante. Era tipo uma salva de palmas colossalmente amplificada e irônica para zombar do perdedor – eu. Eu não sei o que caiu antes no chão, se foi eu ou o revólver que eu segurava.  Eu não sei o que doeu mais, levar um monte de chumbada ou ser traído pelo meu melhor amigo. Eu não sei quantos tiros foram disparados, mas a barulheira foi ficando sucessivamente menos intensa até que o último esvaziou o seu pente. O som esvaiu aos poucos, como o final de uma música sem fim que vai diminuindo o som até sumir por completo e acabar.
– Ai. – eu disse, caído no chão e ensanguentado. – Bati a cabeça no chão.
Eu continuava vivo.
Hoje foi um dia muito louco, porque eu descobri que sou imortal.
– Eu sou imortal! Eu sou imortal! – eu gritei de alegria. – Chupem essa!
Com um esforço descomunal, me ajeitei e comecei a me levantar. Quando eu coloquei o joelho no chão e apoiei a minha mão sobre ele, o técnico puxou o meu cabelo e me decapitou com um facão bem afiado e desconfortável. Ele deixou a minha cabeça delicadamente no canto da sala, no chão, que por sinal estava bem frio. Onde eu estava consegui compreender todos os seis no meu campo de visão. O técnico voltou à rodinha, embainhou o facão avermelhado na sua meia e todos ficaram me encarando. Recarregaram as respectivas armas com novos pentes e começaram a brincar comigo de roleta russa com pistolas semiautomáticas. Repetiram o jogo infinitamente.
Poxa, como é chato ser imortal.

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