sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

O homem se salva no final



Pedacinhos ensanguentados de carne, de ossos, de fezes, de comida mal digerida, de água e uma prótese de titânio amassada passam pelo triturador e se unem entre si. Ouve-se um som desconfortável no processo construtivo, semelhante ao som que se ouviria ao esmagar uma barata do tamanho de um ser humano entre as solas de duas botas de titânio gigantes ao mesmo tempo em que se suga pelos canudinhos uma dúzia de refrigerantes que se esgotaram nos fundos copos plásticos de fast food. Enquanto os pedaços se unem em um quebra-cabeça complexo e nojento, a estrutura óssea e as vísceras ganham contornos, delineando a massa encefálica, o coração, os pulmões, os intestinos, os rins, o pâncreas, o estômago e demais órgãos internos de um fast food gigante. A prótese se desamassa e se enfia no lugar onde seria encontrado o fêmur esquerdo. Em algum momento da transformação, aos poucos a musculatura se desenvolve, formando todos os músculos, inclusive a genitália fálica pequena. Em algum momento da transformação, o sangue e a água são absorvidos como por um canudinho pela matéria orgânica e a comida e fezes se enfiam no sistema digestório do ser humano pelado.
                O homem flutua no ar, berrando e com os olhos estalados, subindo a partir da boca do triturador até um gancho frio com gosto de ferrugem empalado no céu da sua boca, agora com os olhos fechados. O gancho desloca o homem adormecido pelo local de ar pesado até as mãos de dois outros homens brutamontes, maciços, retirando o sujeito nu do gancho e deitando-o numa maca. Ouve-se o barulho dum pequeno motor elétrico e ele fica peludo e cabeludo. Tecidos coloridos saem duma lixeira, voam e grudam no homem pelado peludo. Uma faca fria costura os tecidos, vestindo-o com cueca, calça jeans e camisa polo. Um dos brutamontes pega duas meias amarelas, que deveriam ser brancas, e dois sapatênis. Calçam o homem com estes objetos e amarram os seus sapatênis.
                Ambos os brutamontes retiram o homem deitado da maca e o colocam gentilmente no interior do porta-malas de um automóvel. Ouve-se o barulho dum grande motor a gasolina que percorre vinte e dois quilômetros em ré, dançando pelas pedras por onde passa em cima. O automóvel estaciona na frente da casa do homem do porta-malas e os brutamontes o retiram brutalmente de lá. Carregam-no e o deixam deitado na porta de entrada da sua casa, sobre o tapete de boas-vindas. O homem roda em torno de um eixo horizontal e passa da sua posição horizontal em decúbito a uma posição vertical em pé. Um objeto fálico maciço ataca brutalmente a têmpora direita do homem, que abre os olhos e sorri gentilmente, e depois tranca a porta da sua casa.  Ele caminha até a cozinha, tira o telefone do gancho, conversa brevemente de trás para frente, e coloca o telefone novamente do gancho, que começa a apitar estridentemente.
                Acordo de samba canção com o despertador apitando, arfando de susto. Meu coração pulsa aceleradamente, minha cabeça pulsa e o ar está pesado enquanto eu me apercebo de que tive um pesadelo horrível. Desligo o despertador irritante, bocejo o máximo que posso e me espreguiço mais ainda, alongando principalmente o pulso esquerdo. Visto uma roupa decente e vou ao banheiro lavar o meu rosto detestável, todo suado. Ainda com há uma lembrança amarga do pesadelo. Respiro fundo e prometo ao espelho em voz alta que eu não ficarei abatido com este sonho ridículo. Na cozinha, passo o café na cafeteira. O café está com um gosto amargo detestável. Sinto-me ridículo por não saber passar um café decente. O telefone toca e eu atendo. Digo alô e ninguém me responde. Jogo o café ralo abaixo. Destranco a porta para ir trabalhar e me abatem com uma pancada na têmpora direita.
                Acordo pelado com um gancho na minha boca e com gosto de ferrugem do meu próprio sangue. Berro de desespero. A primeira coisa que eu lembro é do pesadelo que eu tive na minha cama. Esforço-me o máximo que posso para desencaixar a porcaria de mim e, por fim, me estatelo no chão. A minha cabeça está pulsando aceleradamente. Meu coração está latejando. Minha boca está seriamente perfurada, e o sal do meu suor se confunde com o sabor do sangue. O ambiente tem um cheiro nojento de morte e tripas. Há um triturador ligado no fim do trajeto do gancho. Não sei ao certo o que aconteceu, mas eu consegui mudar o meu destino. Penso seriamente como sair daqui antes que alguém queira me fazer em pedacinhos ensanguentados de carne, de ossos, de fezes, de comida mal digerida, de água e uma prótese de titânio amassada. Respiro fundo. Eu estou vivo.
                O local onde o homem pelado está explode violentamente, virando em pedacinhos de concreto armado, máquinas mortíferas metálicas e vidro de janelas numa reação química de elevada exotermia. Absolutamente tudo o que aquele lugar abrigava se une ao pó das ruínas. O barulho é ensurdecedor, o que você conseguiria ao chocar várias centenas de pedras pesadas entre si, ao mesmo tempo em que toneladas de xícaras despencam de um prédio de dez andares e se estatelam no chão.
                Acordo de cueca com o barulho ensurdecedor de pedras se chocando entre si. Abro violentamente os meus olhos e respiro rapidamente. Levanto de supetão e vejo na janela que estão demolindo a casa do meu vizinho. Saio correndo para a porta da frente, sem me vestir, para ver se o meu vizinho está ou não dentro da sua casa. Ao destrancar e abrir a porta, levo uma macetada dura na cabeça.
                Acordo pelado numa maca dura. De primeiro momento eu achei que eu estava sozinho, mas ouço passos distantes se aproximando. Desesperadamente eu me levanto e procuro lugar para me esconder. Na procura dou uma macetada desajeitada do meu joelho contra a quina de algum objeto pontudo e que não sei o que é. Deve ser uma espécie de criado mudo. Não importa. Os passos cessam. Permaneço imóvel e prendendo a respiração. Bisbilhoto, alarmado, de vez em quando para ver se os caras vêm à minha procura.
                No local onde o homem pelado está subitamente entram homens armados pelas janelas, a partir de helicópteros, quebrando todos os vidros e o fuzilando cruelmente, sabendo desde o início onde ele estava escondido. Os barulhos de vidros estilhaçados ecoam na mente do homem e em todo o local imenso, enquanto ele sofre de dores agudas opressoras.
                Acordo pelado com o barulho de vidro se estilhaçando. Rolo na cama, caio no chão, levanto desajeitadamente e bisbilhoto a cozinha. A minha namorada se desculpa por ter derrubado o pires no chão. Ela diz que foi sem querer. De repente eu me lembro de que eu fui avisado que hoje o meu vizinho iria demolir a sua casa. Libero o peso do meu peito com uma boa e grande exalada de ar. Alguém bate na porta da frente. Eu digo que eu abro a porta, eu imploro. Ela diz que eu estou pelado e não posso abrir a porta. Acalmo-me com um beijo matutino da minha namorada. O seu calor e amor me fazem perceber que eu estou vivo e acordado. Sorrio alegremente a ela, que abre a porta da frente, já destrancada, e leva um tiro de pistola na testa e capota. Saio correndo e me atiro pela janela do meu quarto. Eu caio um monte, porque estou dentro de um prédio, e desmaio em queda livre.
                Acordo vestido dentro de um porta-malas. Assustado, dou murros na tampa até minhas mãos sangrarem. Grito até a minha garganta rasgar por dentro.
                O carro capota e o homem vestido do porta-malas gira, gira, gira e gira mil vezes, batendo a cabeça freneticamente tantas vezes até o seu cérebro se transformar num suco cinzento de carne.
                Acordo de samba canção batendo a cabeça. Demoro um pouco para perceber que estou de cara no chão, ao pé da minha cama. Eu me lembro de que eu nunca tive nenhuma namorada. Choro, choro, choro e choro. Um estrondo súbito me faz pular deitado. Rastejo até a janela e vejo que estão demolindo a casa do meu vizinho. Eu não me lembro de alguém ter me dito que iriam demolir a casa do meu vizinho, embora eu me lembre que eu tinha me lembrado com certeza de que demoliriam. Instintivamente, olho para baixo, da minha janela. Há a grama do meu quintal. Se eu pulasse, não cairia muito e muito em queda livre. O telefone toca. Minhas pernas cedem e despenco. Decido não atender. Não sei o que fazer.
                A casa do homem de samba canção de repente entra em combustão espontânea de elevada exotermia, e o mesmo agoniza horrorosamente enquanto é assado e sente o fedor do seu próprio churrasco.
                Acordo com o cheiro de fogo vindo pela janela e o barulho de helicópteros. Pego uma faca na cozinha e abro a porta dando estocadas violentas no ar. Não há ninguém. Estou num prédio. Eu tenho uma namorada que amo muito. Corro mais que as minhas pernas podem e de repente elas cedem. Corto-me ao cair no chão. Devo estar pelado. Não importa. Não sei. Estou atrasado para o serviço. Não quero ser despedido. Desço os degraus rapidamente, três degraus de cada vez, e sinto que o chão está se inclinando. Meu coração cavalga. O chão está se inclinando.
                O prédio do homem de cueca despenca violentamente. Enquanto o chão lhe foge os pés descalços, ele fica apavorado com o barulho que os silvos de ar fazem ao penetrarem pelos vãos das janelas. Eventualmente, ele está voando, sente calafrios congelantes e, por inércia, se arrebenta terrivelmente e se quebra todo na desconstrução, como se ele fosse um inseto espezinhado por uma bota gigantesca.
                Acordo no hospital. Arranco os cateteres. Tem gente na sala. Não sei. Estão apavorados. Estão apavorados? Eu me amo. Isso daqui tem cheiro de hospital. Cavalgo. Preciso abrir a porta da minha casa. A chave está na minha cueca?
                O coração do homem apaga, pois ele está gravemente doente e frágil.
                Acordo na minha cama. Quente. Preciso. O quê? Que quente. Eu suo. Ando. Botas gigantes? Estou apavorado? Estou, sim. Sorrio alegremente. Oi, vizinho. O que é uma chave? O vizinho está virando panqueca? Nossa, é mesmo. Eu amo vocês. Quem? Eu falei isso em voz alta. Que ridículo. Engraçado. Eu vou pra frente, mas ando pra trás.
                O corpo do homem apaga, pois a exsudação excessiva esgota a água do seu organismo.
                Eu sou uma barata. O meu vizinho me beija. Ele está no hospital. Logo, eu estou no hospital também? Capaz. Acho que não. Ei, cadê o meu canudinho? Estou falando de trás pra frente! Que legal! O quê. Atenda a porta que está apitando.Que porta quente.
                O homem não morre.
                Eu estou na cozinha? Isso daqui é uma faca? Acordei? Oi. Nossa. Capaz! Que dia. Quente a minha namorada. Beijo a porta e sinto o seu amor. Fria. A porta está suando. Isso daqui é uma maldita faca? Estou deitado. Não. Engraçado. O homem está deitado. Isso daqui é uma faquinha? Em pé. O homem ama todo mundo! Ele é feliz! Isso daqui. É uma chave. O homem quero faca. Cadê o meu hospital? Acho um gancho. Não, não. Isso daqui é uma faca!
                O homem se mata.
               
                 

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