sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Vivendo em pás



Saímos do carro. Vou em direção à porta de trás e, claro, abro a porta de trás. Mas antes paro quase uma dezena de segundos para pensar na vida, brevemente. Não que eu nunca pense na vida – e é exatamente pelo contrário que pensei na vida, aleatoriamente. Na realidade não chega a ser aleatório, porque eu sempre penso na vida. Na minha vida. Já basta a minha vida. Bom, posso pensar na vida do Arnoldo também, sem problemas. Ele é gente boa.
               – Ei, cara, já está tudo pronto! Traga logo estas pás e pare de divagar aí que nem um macaco perdido no espaço! – grita Arnoldo. – Com traje adequado de astronauta!
                 – Sim, senhora. – respondo.
                 Pego as pás e fecho a porta. Jogo uma pá para o cara.
                 – Ei, viado, quase me acertou!
                 – Eu sei, senhor. 
         Eu sou forte mesmo. Ele me espera chegar para que comecemos a cavar. Eu chego e começamos a cavar. Cavamos.
                 – Esse lugar aqui é especial. – diz. – Lembro quando plantávamos aqui. Você lembra?
                 – Ah, sim... Na verdade, não. Não lembro, não.
   – Porra, meu! Não lembra aquela vez em que viemos aqui, quando éramos criança, e plantamos uma árvore?
                 – Ah, lembrei. Só não lembro onde.
                 – Bom, não importa. Continue cavando aí, cara.
                 Cuspo na grama porque tenho vontade. Cavamos.
            Bons tempos aqueles em que não pensávamos na vida. Em que não tínhamos desejos. Somente ficamos descontentes quando temos um desejo, e normalmente desejamos demais. O negócio é parar de pensar muito e parar de desejar muito, viver no presente, deixar que as coisas fluam naturalmente. O que devemos fazer é largar essa natureza ambiciosa. E devemos continuar cavando.
                 – O que significa deixar tudo rolar naturalmente? – pergunto, já ofegante. Embora eu seja forte. – Não vejo sentido nisso. Todo mundo me diz que eu devo parar de tentar apressar as coisas, devo deixar as coisas acontecerem naturalmente.
               Arnoldo pára. Olha a terra na frente dele e a pá suja de terra. Mexe o nariz de um jeito idiota. Está com coceira, provavelmente. E ele espirra. Volta a cavar.
                  – Assim, você é muito inquieto, cara. – Arnoldo diz.
             – Mas se você deixar rolar naturalmente, você nunca terá nada. Quando você tem um objetivo em mente, você deve fazer de tudo para realizá-lo, pois, de outro modo, você não estará contente. – explico. – Se você quer tanto ficar com essa menina, você deve conversar com ela e pensar no que deve fazer para mostrar a ela quem você é de verdade, na esperança de conseguir a companhia perpétua dela até um dos dois ficar de saco cheio do outro.
                 – Você pensa demais, cara. Continue cavando aí. – passa a mão na testa.
                 Continuo cavando. O sol se pondo.
                 Passa-se um minuto. O sol se pondo.
               – Não deixei bem claro. – digo. – Se tudo rolar naturalmente, nenhum dos dois fará nada. Pois, para dar certo, alguém tem que tentar algo. O fato de você conversar naturalmente com a pessoa já é você tentando forçar o resultado. O mais natural que podemos fazer é deixar de desejar as coisas e viver instintivamente.
               – Não sei, cara, você complica as coisas. – respira de cansaço. – Natural é você tropeçar e cair de boca na menina. Sem querer. Do nada. Pronto. Agora...
                 – Continue cavando. – o interrompo.
                 – Exato. Viado.
                 Uma coisa é falar, outra coisa é fazer.
    Uma coisa é querer, outra coisa é poder. Minha vida foi uma pilha de escolhas: ou você quer, ou você pode. Ok, não é sempre assim, admito que exagerei, desta vez. Mas, normalmente é assim que as coisas acontecem. Acredito que percebo isso justamente porque eu quero demais. Estatisticamente, na maioria das vezes irei falhar. Cada pessoa é uma pessoa. Há muitas coisas no mundo para se ter e a vida é muito curta para se obter o mundo inteiro. Portanto, devo parar de desejar muitas coisas.
                 – Gay. – digo.
     Essa é a minha vida: passar a vida pensando na vida.
     Estamos quase atingindo a nossa meta. Só mais uns minutos cavando será o suficiente.
                 – Mas, que merda... Que porra está acontecendo aqui? – diz uma voz dolorida.
                 Sobe um calafrio na espinha. Uma tremedeira nas pernas, uma breve tontura, um barulho de estática nos ouvidos e uma vontade de mijar.
     – Porra, cara, eu disse que devíamos ter matado esse desgraçado! – grita Arnoldo.
     – Caralho porra! – grito.
    – Seus filhos das putas, vou matar vocês dois! O que vocês fizeram comigo?! – grita o homem.
    – Cale a boca aí e volte a dormir! – grita Arnoldo. – Cara, vá fazer ele calar a boca e dormir! – aponta para o homem sentado na grama.
     Corro em direção ao homem numa velocidade filha da puta. Sento a pá na lateral da cabeça gorda dele. Ele capota e tomba para o lado, brutalmente. Eu sou forte demais, só me faltam fôlego e vontade de desenvolver esse fôlego. O homem dorme igual a um bebê. Sua careca é lisa como a bunda de um bebê. Suja de terra como a bunda de um bebê. Sereno. Ofego.
      – Por que você está parado aí, Arnoldo? Continue cavando. – digo.
     Ele fica me olhando por um tempo, tenso, pá empunhada. Respira fundo e abaixa a pá. Foi intenso demais.
     – Nem precisa, cara. Já está tudo pronto. Traga logo esse puto e pare de defecar pela boca que nem um bisão numa esteira. – diz, ofega. – Tomando água fresca pela boca.
     – Sim, senhora.
    Largo a pá e pego o gordo pelas suas axilas. Puxo-o sem esforço até a beirada do buraco que cavamos. Chuto terra na direção do Arnoldo.
     – Ei, viado, quase me acertou.
     – Eu sei, senhor.
                Posiciono-me, adequadamente.
                – Pronto? – pergunto.
                – Claro, cara. Você pensa demais.
                – Ok, gay.          
   Solto o corpo para dentro do buraco. Olhamos o buraco com o retardado dentro. Passa-se um minuto. O sol já se pôs.
    – Esse idiota sabia como rolar naturalmente. – digo.
    Caímos em gargalhadas.
    – Cara, – ponho a mão no ombro dele. – Você é meu melhor amigo.
   Ele pára de olhar para o buraco e olha para mim. Estamos todos sujos de terra nos braços, nas calças, na testa, nas bundas. Sinto a leveza de um trabalho bem feito. Ele tira a minha mão do seu ombro.
    – Você fala demais, Mateus.
    Sorri.

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