terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Quebra-cabeça

– Unhé! Unhéééé! Unhééééé!
                – Está tudo bem, meu amor. Já pego você aí, tudo bem? – puxo o freio de mão. Pego a bolsa no banco de passageiro e engancho-a no ombro. Abro a porta e a primeira coisa que noto é o calor do asfalto torrar o meu rosto.
                – Ô, filha da puta! – um homem grita, buzinando e esterçando o volante rapidamente e no último segundo. – Pensa que o espelhinho aí do lado é só pra retocar a maquiagenzinha?! – Lucas aumenta o choro no banco de trás.
                – Desculpa, moço! – grito, descendo do carro. – Desculpa!
                Fecho a porta. O choro é abafado pelos vidros. Agora só ouço o choro do centro da cidade. Carros poluindo a atmosfera com suas miríades de sons diferentes. Não ouço nenhuma risada, só motores ronronando, motos barulhentas com escapamentos sem abafadores e ocasionais trocas de nomes feios.
É um dia com sol e sem nuvens, mas é um dia feio, como todos os dias. E abafado.
                Saio logo do meio da rua e dou a volta pelo carro em direção à porta traseira do outro lado. Subo à calçada de pedras irregularmente posicionadas com esse salto alto horroroso. Abro a porta e Lucas estica os seus bracinhos para mim com rostinho choroso e choro sentido.
                – Eu sei, meu filho, mamãe também não gosta dessa bagunça barulhenta. – tiro o cinto de segurança da sua barriga e o retiro com cuidado da sua cadeira de bebê, cuidando para ele não bater a cabeça frágil. Acolho-o no colo e fecho a porta, batendo-a sem querer e assustando o pobrezinho. – Desculpa, meu Lucas, a mamãe está nervosa hoje. – afago as suas costas e me contorço para pegar a chave de dentro da bolsa. Tateio tudo lá dentro e encontro tudo o que existe, exceto a chave.
Lembro-me de que a esqueci na ignição. Abro a porta do motorista, sento-me com jeito para não bater a cabeça do meu bebê no carro, removo a chave da ignição, levanto-me cuidadosamente, fecho a porta lentamente, abro a porta de novo, fecho de novo porque não fechou antes, e ligo o alarme do carro. As janelas sobem e eu ando com Lucas pela calçada. Estou atrasada para o trabalho. Henrique não deveria ter bebido tanto, ontem, porque era segunda-feira e porque ele não deveria ter bebido tanto. Agora sobrou pra mim me virar em mil pra cuidar do nosso filho e trabalhar ao mesmo tempo. Agora eu sei por que minha mãe vivia estressada comigo, criando-me sem um homem pra cuidar de nós. Homens...
Na esquina meus braços reclamam do peso de Lucas. Estranho-me comigo mesma por um instante. Levanto a alça da bolsa ao meu ombro. Essa bolsa escorrega demais, mas tive que sair às pressas de casa.  Mas pelo menos a bolsa combina com a roupa.
Fico parada na esquina, estacionada apesar de o sinal estar aberto para a passagem de pedestres. Estranho-me um pouco mais. Lembro-me de que me esqueci de pegar o carrinho. Volto ao carro com pressa, batucando o sapato desajeitadamente. Nos meus próximos empregos eu quero trabalhar em uma empresa que não me obrigue a usar saia e, principalmente, sapato de salto alto. Não sou obrigada a me vestir desse jeito. Odeio sapatos. Enfio o salto no vão de uma pedra ausente da calçada e sofro um leve desequilíbrio momentâneo.
– Unhé! Unhé! – Lucas volta aos prantos.
Shh, shhh, mamãe está aqui. – massageio sua cabeça. – Só vou pegar o carrinho pro bebê deitar e já vamos pro trabalho da mamãe, ok? – digo na minha voz mais branda.
– Unhééé!
Finalmente chego. Desço ao nível do asfalto, entre o meu carro – nosso carro – e outro logo atrás. Acho que estacionei muito apertado e meio torto na vaga. Não tenho prática em andar no centro a essas horas e tampouco em fazer baliza, pois normalmente é Henrique que me traz aqui. Ele bebeu demais, mesmo, ele nunca tinha feito isto antes, e é culpa dele, que não soube ter autocontrole. Mas, eu acho que foi culpa minha... Às vezes eu explodo com ele, mas é só porque o amo. Se eu brigo demais com ele é porque quero que sejamos felizes... Mais felizes. Nós somos felizes. Mas hoje estou triste. Por que briguei tanto com ele?  Exagerei...
– Unhééé! UNHÉÉÉ!! – Lucas chora no meu ouvido direito e me resgata ao mundo.
Fico parada no espaço apertado entre os carros, sem saber o que fazer. Era para eu estar no trabalho. Por que eu estou aqui?
Lucas me abraça com força pelo pescoço. Lembro-me de o que vim fazer aqui.
Contorço-me para pegar a chave do carro na bolsa ao meu lado esquerdo. Luto contra o meu braço direito, nervosa, nunca alcançando o zíper. Transfiro o bebê ao meu ombro esquerdo. Com a mão direita livre, consigo abrir a bolsa. Tateio lá dentro, encontro o pacote de lencinhos de papel, o meu celular, umas moedas avulsas, o brinquedinho do Lucas... E nada da chave. Fico parada em meio ao caos urbano. Observo os transeuntes passearem pela calçada ao lado virando a cabeça pra mim, pensando o que é que esta louca está fazendo parada atrás do carro com um bebê no colo.
Acho a chave. Estava na minha mão esquerda, achatada contra o bumbum do meu filho. Desligo o alarme e encurvo-me o suficiente para alcançar a maçaneta do porta-malas. Puxo a porta. Quase caio sentada no capô do carro de trás, porque não há espaço útil para uma pessoa fazer algo. Devolvo a porta para baixo. Contorno o carro, topando o dedo no meio-fio, lascando a unha do dedão e raspando o esmalte dos demais dedos. Droga. O próprio conceito de sapato já é hediondo, e sapatos com bico aberto, então, são simplesmente desumanos. Abro a porta de passageiro e deito Lucas em sua cadeirinha.
– Calma, filhinho, mamãe já te pega.
– Unh...
O choro é cortado quando eu fecho a porta. Volto ao porta-malas e abro-o novamente no espaço confinado. Abro o porta-malas.
– Éééé! Unhéé!
Encurvo-me para pegar o carrinho dobrado que acaba enroscando lá dentro. Faço um esforço adicional. Um suor escorre na minha testa. Droga, deve ter borrado a maquiagem. Consigo, finalmente, retirar o carrinho, o deixo na calçada, corro até o retrovisor e observo-me. Droga, a maquiagem borrou. Estou preocupada com Henrique. Volto correndo para fechar o porta-malas e fecho o porta-malas. Desdobro o carrinho de bebê, abro a porta, pego Lucas no colo, deito-o no carrinho, fecho o seu cinto, abro o zíper, pego e entrego-lhe o seu brinquedinho, ele cessa a choradeira gradativa e finalmente, empurro o carrinho pra frente. Dou uns três ou cinco passos desconfortáveis e alguém bota a mão no meu ombro com pouca delicadeza, apertando-me e puxando-me para trás bruscamente, quase me derrubando nas pedras sujas. Automaticamente aperto a minha bolsa pra bem mais perto de mim, quase a enfiando dentro do meu corpo. Estou atrasada. Estou preocupada com meu marido. Quanto barulho nessa cidade.
– Senhora, a senhora esqueceu a porta do seu carro aberta.


(...)


– Senhor, senhor! – alguém vem correndo por trás de mim. – Quais são suas previsões para o evento natalino da semana que vem?! – o jovem grita, desesperado. Veste uma camiseta do Che Guevara e uma mochila rasgada pendurada nas costas.
                É. Daqui a pouco será natal. Eu nem me lembrava. Tenho tanta coisa na cabeça.
                – Acho que conseguiremos arrecadar o bastante para auxiliar grande parte das famílias necessitadas, e com certeza conseguiremos um grande nível de doações de brinquedos e de cestas básicas. – pigarreio. – O natal já está aí, e o coração do povo se abre imensamente devido ao espírito natalino. Eu creio no povo. Eu creio nesta cidade. – digo, sem pensar muito. – Cada um de nós é uma peça. Unidos, fazemos uma paisagem linda de um gigante quebra-cabeça. Cooperamos onde melhor nos encaixamos, contribuindo com o que sabemos fazer melhor. Juntos, construiremos um futuro e uma cidade melhor e mais igualitária.
                – Obrigado, senhor! – o jovem responde. – Muito obrigado, senhor!
                – Boas festas, rapaz. – pouso a mão no seu ombro e abro um sorriso amarelo.
                “E vote em mim, rapaz. Sou o único bom político nesse país, e quiçá o único humano que ainda tem esperança na humanidade”.
                Não consigo passear na rua sem ser abordado pelas pessoas. O dia está quente, e eu estou de terno. Virou hábito vestir o terno todo dia, toda manhã. Eu realmente não precisava vestir-me com tamanha pompa para ir comprar um simples presente para a minha noiva. Quem sabe se eu não estivesse tão formal o rapaz não tivesse me reconhecido na rua.
                Continuo andando, batucando os meus sapatos apertados.
                – Olha lá, o prefeito! – alguém aponta do outro lado da rua.
                Aceno energicamente, esboçando um sorriso radiante. É uma mulher, de mãos dadas com uma criança de, decerto, uns sete anos. Ela atravessa a rua correndo, toda sorridente. Toda negligente, ignora o trânsito e arrasta o seu filho ou sobrinho. Chegam perto de mim.
                – Bom dia, minha querida. – digo com educação. – Como vai a senhora?
                – Vá ali, Lucas! – ela diz, ignorando-me.
                O menino invade o meu espaço particular e posta-se ao meu lado, passando a mão pelas minhas costas e assim me abraçando. Não tive oportunidade de dizer oi ao homenzinho.
                – Isso. Não, mais pro lado. Mais perto dele, Lucas! – a mulher eleva o tom, gesticulando com a mão num jeito desesperado. O menino me aperta e encosta a bochecha na lateral da minha barriga. Pisa no meu sapato e não percebe, deixando-o mais comprimido do que o habitual. – Isso, isso! Agora aguente firme aí!
A mulher saca o celular gigantesco de algum lugar duvidoso atrás de si e mexe na tela com um frenesi ímpar. A mão da criança escorrega por algum motivo e ele puxa o meu cinto ao lado de algum jeito. A fivela vai parar lá perto do meu bolso da coxa. A mulher deita o celular na horizontal e o aponta para nós, vidrada. Forço aquele meu sorriso do tipo fotogênico e deixo que ela nos fotografe. O menino se desvincula de mim e vai ter com a moça.
– Não, não, ficou horrível! – ela diz a ele, franzindo a sobrancelha. – Volte lá, volte lá, vamos tirar outra foto que essa ficou péssima!
E o menino dá meia-volta e volta ligeiramente, batendo a cabeça na ponta da minha costela ao se posicionar de novo ao meu lado. Desta vez ele puxa o paletó. A mulher se enrola, contraindo-se em feições deveras azedas e esfregando o dedo fino na tela do dispositivo telefônico. Larga um sorriso falso quando nos enquadra na mira da câmera. Devolvo a ela um sorriso tão falso quanto e bate uma foto. Ou duas. Ou três. Estou com calor, mantenho a expressão facial. Ela demora. Mas finalmente para. Recolhe a criança e as duas voltam a atravessar a rua sem olhar para os dois lados e sem me dar satisfações.
Volto a andar.
Acho que eu deveria propor que arrumassem esta calçada. Está muito irregular e ruim de andar. E esse povo só sabe buzinar. Deveriam controlar melhor suas raivas. Deveriam investir mais em autocontrole. Faz bem pra saúde de todo mundo.
 – Senhor prefeito! – alguém me chama ao meu lado.
Paro novamente.
– Senhor prefeito, quando é que a prefeitura vai revitalizar este prédio? – é um homem segurando um maço de panfletos, propagando alguma empresa. – Poderíamos aproveitar o espaço para a construção de um glorioso templo ao Senhor Jesus e salvar os homens do pecado. Atos dos Apóstolos, versículo dezesseis, capítulos trinta a trinta e um: ”E, tirando-nos para fora, disse: Senhores, que é necessário que eu faça para me salvar? E eles disseram: Crê no Senhor Jesus Cristo e serás salvo, tu e a tua casa”.
Demoro a entender a que prédio ele se refere, até que percebo que há um logo atrás dele. Um edifício abandonado, judiado, deselegante, janelas quebradas, sujas. Realmente, deveríamos revitalizá-lo e aproveitar tal espaço morto.
– Meu caro, obrigado pela sugestão. – respondo cordialmente, pego um panfleto e o guardo diretamente no bolso do traseiro. – Verei o que posso fazer para reaproveitar a edificação e melhorar nosso lar, nossa cidade, nossa vida. – gesticulo com as mãos enquanto falo a fim de enfatizar minhas palavras. – Penso em inaugurar um abrigo aos pobres injustiçados moradores de rua, instaurar aí um programa de resgate social aos desabitados. Passado o natal, iniciarei os trâmites para tal. Empós, estarei propagando o projeto aos demais núcleos de nosso adorado município.
– Como todo o respeito, senhor prefeito, temos que abrir uma igreja. – o homem responde. – Pois só a palavra de Deus pode realmente salvar-nos. Efésios, dois, oito e nove: “Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós, é dom de Deus”.
– Acredito que a religião pode, sim, dar esperança aos cidadãos. Mas o que realmente precisamos no momento é acolher os indigentes com provisões para que possam sobreviver na sociedade. É de suma importância integrar à sociedade os indivíduos em situação de rua. Cada pessoa é uma engrenagem crucial da sociedade, e se uma engrenagem não funcionar apropriadamente, a civilização humana não avança. – o discurso escorre espontaneamente pelos meus lábios. – Querendo ou não, nós sempre afetamos e somos afetados pelos outros, direta ou indiretamente. Nossas ações individuais constroem o coletivo, bem como destroem. Devemos pensar muito bem no que devemos fazer  a respeito da nossa vida, pois nossas vidas estão interligadas, inevitavelmente.
Minha política é a de ser transparente com todos, mostrando meus planos e minhas intenções ao povo. Eu quero fazer a cidade um melhor lugar para vivermos, e para isso devo ser sincero com seus cidadãos. O bem só pode ser sincero; a omissão dos meus projetos e ações só seria necessária se eu fosse um pilantra egoísta com segundas intenções. Quero inspirar as pessoas. Quero consertar o mundo. No futuro realizarei esse sonho; conseguirei porque quero.
– Senhor, uma igreja sempre é a melhor solução para tudo. – o homem insiste. – Só Deus pode nos salvar. “E em nenhum outro há salvação, porque também debaixo do céu nenhum outro nome há, dado entre os homens, pelo qual devamos ser salvos”.
Mas estou ficando desgastado. Esgotado, minhas vitalidades drenadas, sugadas. As pessoas estão abusando da minha honestidade, estão solicitando de mais da minha humanidade. Sou só uma pessoa. Um só. Gosto de trabalhar duro, mas também quero viver um pouco. Só quero comprar um presente para a minha noiva. Acho que estou perdendo os sentimentos no oblívio. Estou virando uma máquina.
– A palavra de Deus é a salvação da nossa espécie.
Sorrio amarelo ao homem.
– Tenha um bom dia, senhor. – corto o contexto e continuo andando.
Arrumo a fivela ao seu lugar devido. Estou com calor.
– Senhor prefeito. – uma voz aleatória à minha esquerda diz.
                Que cidade barulhenta.
                – Olha lá, é ele! – uma voz aleatória atrás de mim grita. – É o prefeito!
                Eu estou perdendo minha humanidade. Estou ficando sem sentimentos.
                – Uhuuu, prefeito! – alguém berra dalgum lugar alheio.
                Ando, as unhas do pé espremidas. Um suor escorre da minha testa e entra salgado no meu olho. Estou quase chegando à loja. Falta só eu atravessar a rua.
                – Prefeito! – um quarto ou quinto elemento aparece e me puxa pelo punho.
                Instintivamente, desvencilho-me da sua mão com um puxão, o que acaba por arrebentar os botões de enfeite da manga do paletó. Por que eu não mais sinto emoções? Será que estou perdendo a minha humanidade? Eu sabia que para eu alcançar o meu sonho de melhorar a qualidade de vida desta cidade eu deveria fazer um sacrifício... Será que as emoções eram este sacrifício? Minha individualidade era a oferenda? Eu faço tudo na mais pura boa vontade e convicção, sem pedir nada em retorno. Mas, será que tudo funciona com base na troca – na causa e efeito? Nada é de graça nesse mundo?
                – Quais são os seus planos para este edifício abandonado? – uma mulher qualquer me indaga, enfiando um celular cavalar no meu rosto para monitorar e arquivar minha resposta.
Não consigo mais ficar alegre. Não sinto mais nada. Meus sorrisos são falsos, regulamentados com rigor e classificados para cada tipo de ocasião. Será que eu esqueci como sentir? Será que estive me iludindo e me afoguei na minha própria mentira? Saboto-me?
– Você já tem outros eventos em mente depois daquele um lá de natal que vai acontecer, lá? – alguém mais me questiona.
Eu só quero comprar um presente para a minha noiva. Será que eu quero comprar mesmo, ou só faço isto por obrigação? Eu consigo sentir amor? Continuo a andar.
– Senhor prefeito, o senhor já sab...
Por que as pessoas buzinam tanto? Continuo andando.
– O que fará com este prédio abandonado?
– Ele é tão lindo pessoalmente!
                – Socorro, ladrão, fui roubada!
                – Senhor prefeito!
                – ...prédio...
                – ...e o Hospital do Bom Cidadão...
                – ...evento beneficente natalino?
– Senhor pref...
– ...esgoto...
Eu não consigo andar. Há uma multidão de gente nos meus arredores.
– EU VOU FAZER ISSO COM ESSE PRÉDIO! – meto um murro numa janela pichada, estilhaçando-a e me cortando.
Todos se comovem e se afastam de mim, taxando-me de louco, desumano, tirando fotos em flagrante, perguntando o que é que este louco está fazendo. Eu estou indo comprar um presente para a minha amada noiva.
– QUE SE FODA ESSE SAPATO DE MERDA! – empurro a roda de carne viva, arranco o meu sapato com ferocidade e de supetão o arremesso à rua à direita.
O sapato duro voa e acerta um para-brisa de um carro que furou o sinal lá atrás e veio correndo com música alta e imprudência. Retorno ao mundo ao ruído de gritaria e do choro do povo.
Não votem em mim. Não sou uma pessoa boa.


(...)


Que dor de barriga. Estou com náuseas, com dor de cabeça, com tudo de ruim. Nunca mais vou fazer isso comigo. Que ressaca danada. Por que eu bebi tanto? O que é que me deu na cabeça para eu me descontrolar tanto? Agora cá estou, no hospital, internado por um dia para me recuperar do porre. Quem paga as consequências por isso tudo é Márcia, coitadinha dela.
                Cheguei ontem animado pra buscar minha querida no seu serviço. Demorei mais do que o usual para chegar porque eu estava comprando um presente em comemoração ao nosso aniversário de casamento. O único horário livre que eu tinha pra ir a alguma loja era depois do meu expediente, no finalzinho da tarde, o sol se pondo. Ela sai no mesmo horário que eu e vou buscá-la no seu serviço, tudo combinado. Mas ontem, além de eu ter me atrasado um pouco, acabei me esquecendo de carregar a bateria do meu celular e... Bem, a bateria acabou. Márcia já é nervosa por natureza, então ela deve ter ficado bastante impaciente me esperando, sem sucesso em todas as suas tentativas de me ligar. Eu conheço ela e sei que ela, com certeza, me ligou no mínimo uma dúzia de vezes, desesperada por não ter suas chamadas retornadas. Enfim, me apressei um pouco com o carro, feliz da vida pra chegar e fazer a surpresa a ela. Estive desde o café da manhã e o dia inteiro pensando no presente que eu compraria. Acabou uma sendo algo nada chique, mas comprei uma lembrancinha bem singela: Uma caneca bonitinha escrito “eu te amo”. Caneca rosa, porque ela adora rosa. Enfeitado com coraçõezinhos, porque ela é meiga e eu a amo.
Eu já avistei Márcia de longe, esperando inquieta perto do meio-fio, o dia escurecendo. Afrouxei a gravata pra respirar bem e me inspirar pra fazer um discurso bem romântico. Desabotoei os dois últimos botões da gola. Ajustei o espelho do carro e avistei Lucas dormindo, sonhando, em sua cadeirinha. Dormiu assistindo ao seu desenho favorito na sua mini-televisão acoplada na parte traseira da cabeceira do banco de passageiro. Meu amigão acompanha-me no trabalho todo dia, e sem incomodar ninguém. Ele nunca é um incômodo, porque o amo e a sua presença me inspira. Sorte que meu chefe entende a minha situação financeira e permitiu-me levar meu filho ao escritório, porque não tenho dinheiro pra babá. Mas eu lhe garanti que isso não atrapalharia meu desempenho profissional.
Eu quero que sejamos uma família feliz, e labuto todo dia para atingir este sonho.
Ainda estou meio tonto por causa do álcool e com vontade de vomitar. Estou sozinho num quarto de hospital. Cheiro de hospital me suscita tristeza. Melancolia, desamparo, perdição.
Quando estacionei, tirei o cinto rapidamente e estiquei-me pra abrir a porta do passageiro pra Márcia entrar. Eu estava preparado pra pedir perdão pela demora e pelo celular sem bateria, pronto pra tirar o embrulho debaixo do meu paletó e compensá-la com um gesto de carinho e palavras bonitas e consoladoras destinadas ao coração duma linda mulher. Abri a porta.
– Por que a demora, Henrique?! – essas foram as suas primeiras palavras, gritando comigo.
O sol já ia dormir e Lucas acordou chorando de susto por causa do grito de Márcia. Mas eu mantive o sorriso sincero no rosto, fiz uma palhaçada pro Lucas rir e logo enfiei a mão debaixo do paletó pra pegar a caneca do meu amor.
– O que é isso?! – Márcia gritou, apontando pro meu pescoço.
Parei.
– Isso o quê, amor? – perguntei, confuso.
– Não me chame de amor! – retrucou. Lucas chorou de novo. – Agora tudo faz sentido!
– O que aconteceu? Não estou te entendendo, amor.
– Pare de me chamar de amor! Eu sei que você está me traindo! Você não atendia minhas chamadas, demorou no serviço e daí me aparece com a gravata toda desarrumada, camisa aberta e com essa... ESSA MARCA DE BATOM NO PESCOÇO! – fez um escândalo, apontando fortemente pra mim.
Ajustei o espelhinho do carro, aturdido, procurando um ângulo de visualização bom. Tinha uma marca de batom, sim, no meu pescoço. Mas o batom era o dela. Ela me beijara de manhã, antes de sair do carro pra ir trabalhar, quando eu a deixara naquela exata vaga onde eu agora estacionei para pegá-la. Eu trabalhara o dia inteiro com o batom marcado, e eu estivera tão concentrado na papelada e focado em qual presente eu compraria que me distrai de mim mesmo e nem percebi que meu pescoço estava sujo.
– Amor, se acalme...
– NÃO ME CHAME DE AMOR, SEU TRAIDOR! – ela acusou, interrompendo-me. – VOCÊ É UM DESGRAÇADO, TODOS OS HOMENS SÃO DESGRAÇADOS, MAS VOCÊ É O MAIS MERDA DE TODOS OS HOMENS, SEU MERDA INÚTIL QUE NÃO FAZ NADA CERTO E AINDA POR CIMA ME TRAI COM UMA LAZARENTA PUTINHA DO TRABALHO! NO TRABALHO, FAZ ESSA SEM-VERGONHICE NO TRABALHO! CRETINO, PILANTRA, SACANA!
– Vamos conversar, por fav...
Márcia me ignorou e abriu a porta de trás, arrancando Lucas da cadeirinha. Bateu a porta. Gritou para eu deixar eles e nunca mais aparecer porque estava tudo acabado, porque já não éramos uma família e que a culpa era totalmente minha por ser tão insensível e ignorar o grande amor que ela sempre me dera. Não sei o que aconteceu comigo, mas uma raiva acendeu dentro de mim num instante. Descontei tudo nela, por ela não me ouvir, por ela pular a conclusões infundadas, duvidando da minha fidelidade e do meu verdadeiro amor. Eu não sei o que deu em mim. Numa quebra de expectativas a felicidade se transformou em infelicidade, a infelicidade logo se tornou ódio e com esse ódio eu rasguei o embrulho e atirei a caneca na rua, mandando Márcia catar a grande bosta do presente dela. Eu nunca fiz isso. Eu poderia ter me controlado. Mas eu me descontrolei. Foi a primeira vez em que me descontrolei na vida. Minha querida esposa ficou atônita com a minha violência verbal inesperada e o sarcasmo ácido. Quando arranquei o carro e sai cantando pneus, a porta do passageiro ainda estava aberta e os dois estavam chorando na calçada.
Passei por cima dos cacos cor-de-rosa e dos corações partidos. Bebi muito no bar. Sozinho. Gastei nosso dinheirinho em bebidas. Era pra ter sido pra pagar o aluguel, conta de luz, conta de água, parcela do carro, imposto do carro, gasolina, troca de óleo, imposto de renda, conta de telefone fixo, conta da operadora de celular, televisão, internet, supermercados, farmácias e consultórios médicos. E, agora, também pro hospital.
Agora acordei no hospital com o sol nascendo no meu rosto e com desgosto na boca.
Eu nunca mais vou me descontrolar. Eu não sou esse tipo de pessoa.
Márcia com certeza está muito nervosa, agora. Eu a conheço e sei como ela é. É foi tudo a minha culpa, porque bebi tanto e perdi o autocontrole. Um momento... Bastou um único momento para que as coisas dessem profundamente errado. Uma ação errada causou uma cadeia de reações horrorosas. Eu não soube me controlar quando estourei. Eu sei que Márcia é explosiva e age que nem boba ciumenta quando o assunto é amor, que esse é o jeito dela, mas não fui compreensivo o suficiente. Eu sei que ela briga à toa por várias coisas e diz várias coisas sem antes pensar, mas apesar disso eu perdi a cancha, coisa que eu nunca fizera.
Ela é explosiva, ela é nervosa, ela é distraída, ela é ciumenta, mas eu a amo.
Foi tudo um mal entendido. Não sei nem como é que ela foi pra casa depois que eu fugi com o nosso carro. Não sei nem como vim parar aqui. Não sei nem onde é que aqui é. Não lembro nem o que eu fiz ontem depois que fui me embriagar no bar. Que tipo de loucuras será que eu fiz bêbado? Será que eu passei vexame?
Eu só queria poder ligar pra minha Márcia e confortá-la agora, mas meu celular está sem bateria e, de quebra, não sei o número dela de cabeça. O remorso dói mais do que qualquer dor.
Tomara que não seja tarde demais para eu me arrepender. Não tenho dinheiro pra bancar um advogado pra divórcio.


(...)


– Ô, filha da puta! – berro, virando o volante um monte e dando murro na buzina.
                A desgraçada abriu a porta de repente e quase acertei a idiota com porta e tudo!
– Pensa que o espelhinho aí do lado é só pra retocar a maquiagenzinha?! – continuo dirigindo. A mulher diz algo pra mim mas nem escuto nada. Vaca.
Pessoal folgado que nem olha no retrovisor antes de abrir a porta. Depois que morrem a culpa é minha! A inconsequência está impregnada nesse povo inútil, bando de burros.
Estou com sono e quero dormir logo. Afundo o acelerador.
– Caralho. – falo sozinho.
Chego em casa, finalmente. Lar, doce lar. Vida, amarga vida.
Abro a porta num empurrão e boto a perna pra fora. Não consigo sair. Droga de cinto. Tateio a mão ao meu lado e me desvencilho do maldito cinto de segurança. Bato a porta e o carro sacode. Marcho até a porta de entrada, aperto e giro a maçaneta, entro em casa e bato a porta meio que sem querer, mas sem remorsos.
Paro um instante.
Respiro fundo.
O ar cheira café da manhã. Meu estômago ronca, mas estou muito cansado. Preciso com urgência de um bom e belo cochilo. Nem tenho tido nem tempo pra pensar em mim, imagine então pra comer. Varo a noite na merda do meu trabalho de segurança patético duma boate de patricinhos e patricinhas onde acabam fazendo putaria em público e em que sobra pra mim meter o bedelho e acabar com a palhaçada. É a minha função: Acabar com palhaçadas. A outra função de um segurança é fazer cara feia toda hora.
Estou fedido mas sem tempo e disposição pra banho.
Tenho que descansar o quanto puder, porque daqui a pouco já preciso estar em pé de volta pra ir trabalhar no meu segundo emprego patético, de segurança de shopping. Só sirvo pra segurança mesmo, porque sou burro, mas sou brutamontes.
Marcho até o meu quarto batucando no assoalho de madeira.
Afrouxo a gravata e respiro fundo. Fecho os olhos enquanto desabotoo a camisa. Estou exausto. Complico-me com os botões e não consigo me livrar da porra da camisa. Merda, bosta, fezes. Perco a paciência, abro os olhos e puxo a roupa com as mãos, pipocando todos os botões da camisa pra fora e expondo o peito tetudo e a pança peluda. Arremesso-me na cama de barriga e de qualquer jeito, com sapato, calça, camisa arrebentada e tudo.
Eu só quero dormir um pouco.
Eu amo a minha grande cama.
Estou dormindo?
Estou quase dormindo...
– Oi, né? – uma voz me espanta o sono, dou um pulão na cama.
– O que foi?! – respondo, sentando no colchão.
– Nada, pai, você só chegou batendo a porta e nem me deu oi. – diz, parada na porta do quarto. – Eu fiz café, tá?
– Não quero tomar. – despenco de costas na cama e fecho os olhos.
– E você está fedendo cigarro. – continua.
– Sim. – resmungo, dando uma fungada.
– Até quando vai ficar fumando? Sabe que isso prejudica até eu, né? Sou uma fumante passiva, que legal. Muito show de bola esse teu hábito nojento. – força tossidas falsas. – Tipo assim que eu vou ficar daqui a um tempo. Eu sou muito jovem pra morrer.
– Pare de drama. – retruco. Respiro fundo. – Viu, eu só quero dormir um pouco. Pode desligar a cafeteira, se é isso o que você quer saber. – viro-me na cama, abraçando o travesseiro vago.
– O pior é que o cigarro faz muito mal pra tua saúde. E você anda muito estressado, o que faz, tipo, o triplo de mal, decerto.
– Eu fumo justamente pra desestressar. – respondo. – Deixe o teu pai dormir. Deixe. Só deixe. Não dormir é mil vezes pior pra saúde. – viro-me para o outro lado. – Beijos.
– É, e pelo jeito não adianta nada você fumar, porque continua um saco chato. – acusa. – Isso... O que é isso? – altera o tom.
Abro os olhos. Ela continua na porta do quarto, mas segurando algo na mão. Não consigo enxergar o que é porque é minúsculo e/ou porque estou com tanto sono que é impossível ver.
– É da camisa que eu te dei de aniversário? – ela pergunta, indignada. – Claro que é! – aponta pra mim. – Você destruiu a camisa que eu te dei! – atira o negócio que segurava na mão. Era um dos botões que eu arrebentei. – Seu idiota! – põe a mão sobre o peito.
– Já chega! – levanto-me num salto. – Eu me mato todo dia o dia inteiro de trabalhar, noite, manhã e tarde, e eu tenho o direito de ficar irritado pra caralho e dormir pelo menos uns dois segundos, e você não me deixa descansar! Estou cagando de sono aqui, caralho! Trabalho pra porra pra você comprar suas putices e levar essa tua vida de putinha, e inclusive o dinheiro que você usou pra comprar essa minha porra de camisa foi meu, e você poderia ser o mínimo de compreensiva com a porcaria do teu pai e deixar o filho da puta desgraçado inútil em paz!
Tartamudeia, não consegue falar. Marcho e passo a empurrando contra a porta. Saio de casa puto da cara, com camisa fodida e todo fodido. Bufo que nem um imbecil e dou um puxão na maçaneta do carro. Jogo-me pra dentro batendo a lateral da tampa da cabeça ao entrar e abaixo o freio de mão. Só que nem preciso abaixar a merda do freio de mão porque ele nem puxado estava. E a chave já estava na ignição.
Foda-se.
                – Desculpa! – ela grita da porta de casa, chorando e gaguejando. – Eu te amo, pai, você é a única coisa que eu tenho! Perdão! – e grita, e grita, fala um monte de asneiras.
                – Eu só queria dormir um pouco! – cumpro meu papel no diálogo num acesso de ira.
                – Descul...
                Aumento o volume do rádio no máximo, pois o rádio já estava ligado, e não escuto mais nada saindo da boca daquela ingrata patricinha. Saio patinando com o carro com a porta ainda aberta e sem o cinto de segurança. Foda-se, puxo a porta com força. Foda-se o cinto, foda-se. Troco de marcha uma logo atrás da outra, virando pra qualquer lugar em qualquer quadra. Não quero saber, só quero sumir. Minha coxa começa a tremer. Bato na minha coxa. Minha coxa continua a tremer. Troco de marcha. Corro. Bato e bato na coxa, mas ainda treme. Enfio a mão no bolso e tiro o meu celular com a tela trincada. É a minha filha ligando. Não quero papo com essa puta decepcionante. Vaca. Giro a manivela que nem louco e taco o lixo do celular pra fora. Piso mais forte no acelerador até o joelho sofrer. Boto os olhos na rua de volta e um sapato acerta o para-brisa. Perco o controle e rodo, rodo, rodo, cantando pneus. O carro gira tanto que fico nauseado. O mundo vira um monte de borrão, porque não paro de rodar. E porque estou chorando.
                O que está acontecendo comigo?
               

(...)


Minha barriga ronca de fome. Não pude nem tomar o café da manhã. Passei a maquiagem, dei de mamar, arrumei o cabelo na frente do espelho, vesti a roupa pro trabalho, peguei Lucas e zarpei sem poder comer nada ou tomar uma água ou escovar os dentes para tirar da boca o gosto de sono persistente. Na verdade, terminei de passar a maquiagem no trânsito quando eu freava nos semáforos. Esqueci-me de ligar a televisãozinha do meu bebê. Tentei alcançar o botão, mas o cinto me prendia. Tive que arrancar de volta e tentei de volta no próximo sinal vermelho, mas me esqueci de tirar o cinto, tirei o cinto, cliquei no botão de ligar, liguei a televisão, iniciei o DVD no desenho favorito do Lucas e recebi umas buzinas porque não arranquei quando o sinal se tornou verde. Uns segundos depois eu me dei conta de que já estávamos mais ou menos perto do meu trabalho. Só que eu peguei uma vaga mais fácil, há umas quadras de distância, porque eu decidi não me arriscar em baliza lá pra frente arriscando não conseguir uma vaga livre ou conseguir umas vagas livres muito ruins demais nesse trânsito anárquico. Fiz as coisas com uma rapidez insana para não chegar atrasada e, ao mesmo tempo, para ficar bonita para trabalhar, mas, mesmo assim, estou atrasada.
                Estou nervosa.
                Olho o meu bebê dormindo no seu carrinho, abraçado ao seu brinquedinho. Ele é lindo e meigo. É a cara do Henrique.
Paro na esquina. Olho para os dois lados apressadamente. O sinal não está aberto para os pedestres, mas não vejo nenhum carro e estou atrasadíssima. Avanço na faixa de pedestres o mais rápido que posso. Em passos curtos. Não consigo andar direito por causa dessa saia que sufoca as minhas coxas e não me deixa abrir as pernas direito e porque esse salto é um exagero de fino, tipo palito de dentes. Arrumo a bolsa no ombro.
Estou quase lá.
Atravessei a rua.
Falta só mais uma quadra. Estou preocupado com meu marido. Continuo a andar com a maior velocidade que me é permitida, empurrando o carrinho pela calçada conturbada. Piso em falso já no início da quadra, quase torcendo o tornozelo. Tomara que as buzinas não acordem meu amorzinho. Tomara que Henrique melhore logo, porque minha vida não é a mesma sem ele. Acho que fui muito dura com ele.
Piso em falso novamente. Nunca vou me acostumar com esses sapatos. Dá vontade de jogar eles na rua, mas não posso perder o autocontrole e preciso deles pra ficar bonita e apresentável para os clientes para a minha chefa não me demitir.
– Só mais uma quadra, bebê, e já chegamos ao trabalho da mamãe. – converso com o dorminhoco para me distrair um pouco.
Mais alguns passos e já estarei lá. Quase na esquina, já. A última esquina. Dá vontade de rasgar essa saia ao meio para esticar mais as passadas. Mas é melhor não. Respiro fundo. Expiro fundo. Parece que essa esquina nunca chega. Olha a hora, está muito tarde, já. Estou atrasada demais. Se eu perder esse emprego, será o fim. A nossa situação está ruim. Estou muito preocupada com meu marido. Que quadra mais longa. Quantos metros tem essa quadra?
Um burburinho vem lá da frente, de algum lugar. Um pessoal falando sem parar. Não vejo ninguém. Piso em falso desajeitadamente, desta vez torço o tornozelo e derrubo a bolsa. Solto um gemido alto de dor. Verifico se meu Luquinhas acordou. Por sorte ainda está dormindo, que nem um anjinho. Pego a bolsa do chão. Continuo o trajeto mancando, empurrando o carrinho, cuidando para não tropeçar mais. Será que meu tornozelo vai ficar roxo? Tomara que não.
O vozerio aumenta. Está vindo da direita e estão falando “prefeito, prefeito”. Eu poderia sugerir para ele arrumar essa calçada terrível, mas não tenho tempo. Quem sabe depois. Arrumo a bolsa no ombro.
Estou quase lá.
Estou atrasada.
Estou quase lá.
Que dor no tornozelo.
Chego na esquina. Agora só falta atravessar a rua. Olho à direita e tem um monte de gente aglomerada em torno do prefeito, que está vestido de terno completo neste calor. Escolha esquisita de indumentária para um dia destes. Ele é um bom homem. Tomara que essa falação não acorde o meu filho.
– Unhééé! Unhéé!
Shhhh, shhhh, meu filhinho, já estamos quase lá. – digo, fitando o seu rostinho rechonchudo e choroso. – Vai dar tudo certo. – ele atira o seu brinquedinho no meu nariz.
                Estou atrasada. O sinal para pedestres abre. Empurro o carrinho, olhando Lucas. Dou dois passos. Paro imediatamente quando ouço o som de carro patinando. Olho à direita e vejo um carro rodando sem parar e vindo para cá. Meu coração acelera de susto. Ufa que eu prestei atenção, quase que me enfiei no caminho desse motorista louco. Preciso de tempo, de dinheiro e de paciência. Esta é a fórmula do sucesso. Está tudo interligado. Quero sucesso.
                – Unhéé! UNHÉÉÉÉ!
                Estou caída no chão. Como é que eu cai? Quando foi que eu cai? Por que eu cai? O que aconteceu comigo que eu não percebi que tombei? Estou preocupada com o meu Henrique. Meu, meu. Estou atrasadíssima. Não quero perder o meu emprego, senão será o fim. Meu, meu, meu. Cadê o carrinho?
                – UNHÉÉÉÉÉÉ!!!
                Ajoelhada nas pedras pontudas, vejo Lucas se distanciando de mim. O carrinho atravessa a rua na faixa de pedestres. O carro rodopia sem parar na pista de rolamento. Cheiro de borracha queimada. Uma gritaria. Um monte de choro. O carro gira, gira e a sua traseira bate no carrinho como um tapa na cara. Meu bebezinho voa alto, arremessado como um objeto. Meu anjinho não tem asas. Bate a cabeça no semáforo e dorme. E daí rodopia, rodopia, rodopia no ar, deixando uma espiral de vermelho no trajeto. Quando atinge a altura máxima ele já está longe, mas continua bem rápido, só que caindo, acelerando para baixo. Lá pra lá, cada vez mais longe de onde eu trabalho, há umas quadras de distância, parece que nunca vai chegar, mas ele finalmente pousa no asfalto. Quica umas vezes e esquece um braço. Esquece uma perna na sua pressa. Várias peças que, unidas, fazem o menino lindo da mamãe. Sua cabeça está muito ocupada seguindo em frente, além do seu corpo.
                E a cidade chora.

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