domingo, 13 de outubro de 2013

A vida em uma sombra



Aquela pessoa apressada para o serviço tem cara de que não se importa com as outras pessoas. Ela, possivelmente, diz a si mesma que não liga para o que os outros dizem, mas isto é só uma tática para atrair os outros a si mesma. Pois só se dá valor quando se perde. E ela não parece ter valor, que pena.
– Quem sou eu para julgar os outros? – pergunto.
– Bem, você é melhor que eles, você sabe disso. – ela responde.
– Bom. Sim. O que isso me torna?
Estamos sentados na praça, debaixo de uma árvore frondosa e sob convecção de uma brisa fresca. Estes locais são perfeitos para uma filosofia fajuta. Costumo chamar de “filosofia de latrina”. É um tipo de terapia que pode levar à perfeita lucidez ou à insanidade total. Eu simplesmente faço isso. Seja o que for.
– Assim, o que eu quis dizer é: até que ponto devemos ser egoístas? Até que ponto a nossa felicidade vale mais que a dos outros? – pergunto de novo.
Ela reflete. Balança as perninhas delicadas e brancas. Com as mãos sobre o colo, sobre a sua saia inocente e colorida. Toda porção terna e macia da vida está em seus movimentos inocentes e suaves. Seu sorriso é sutil e ao mesmo tempo muito presente. Reconfortante, apaziguador.
– Eu acho que devemos dar valor apenas a algumas pessoas. – responde.
– De quantas pessoas estamos falando?
– Uma? Duas? Dez? Quem sabe? – passa o cabelo por cima do ombro e o alisa. – Você vê o valor das pessoas nos olhos delas.
Eu permaneço imóvel e um pouco tenso, é o meu jeito de ser. Sentado ao lado dela, olhando para ela, enquanto ela olha para o seu próprio cabelo ruivo e balança suas pernas. As pessoas podem pensar que minha obsessão é doentia, ou podem pensar que é doce e saudável. Eu sou um homem simples e vulnerável perdido neste mundo e em mim mesmo.
Uma idosa caminha vagarosamente e sem rumo. Sua feição é neutra. Eventualmente, esta mesma idosa olha em minha direção e sorri. Mas seus olhos me contam toda uma vida sofrida de ilusões e desilusões. Vejo o seu coração grande pelas suas pupilas, que um dia já tiveram energia para correr atrás de sonhos. Um coração que se dedicou demais aos outros e esqueceu-se de se cuidar. Um coração grande é um alvo fácil. Vejo nela, ainda, aquela criança que nunca cresceu e foi massacrada, espezinhada, enforcada e sufocada pelo mundo.
Respondo o sorriso da velhinha com um aceno de mão. Eu gostaria de ter abraçado ela, sorrido, mas eu não sou capaz de botar as coisas em prática devidamente sem o medo de machucar os outros e a mim mesmo ainda mais. Deve-se tomar muito cuidado ao se expor à sujeira do mundo todo.
– O que você acha que devemos fazer na vida? – ela pergunta, mordendo a unha e ainda olhando para o chão à frente.
– A vida é a única coisa que temos. Todas as coisas que acontecem conosco são levadas ao lado pessoal, e com razão. Não podemos escapar de nós mesmos e estamos constantemente expostos ao exterior. Não acredito na indiferença. – olho para ela. – O que devemos fazer é fazer o que achamos que é o certo. Confiar em nossa essência. Mesmo assim, ainda estou confuso.
O perfil do seu rosto é bem desenhado, sua pele é limpa e macia. Seus olhos são serenos e delicados. O seu cabelo esvoaça sutilmente com a brisa fresca que penetra na sombra em que nos encontramos. O seu perfume disperge no ar. Estou falando do perfume natural, do cheiro de pele, de boca, de tudo. Ela me acalma.
– As pessoas são intolerantes. Que pena que ninguém pensa como nós. – diz. Suspira.
Uma folha se desprende da árvore e cai entre nós dois. Um cachorro caminha sem rumo com a língua para fora. Ele passeia naturalmente pelo mundo, sozinho, aproveitando o momento. Não possui preocupações e metas. Seu pelo é todo bagunçado e sujo, seu rabo e uma de suas orelhas são tortas. Fazem uma curva abrupta em ângulo obtuso, como se estivessem quebradas por dentro.
– O problema é entender o outro. Para isso, você precisa sentir o que essa pessoa sente. E como você vai sentir o que ela sente, se cada um sente as coisas de uma maneira diferente? – digo, olhando para ela.
Eu olho de maneira amigável. Muitos podem pensar que sou um estuprador ou um assassino. Um psicopata. Eu somente olho para coisas que me fazem bem. Eu sou um homem simples. E cansado.
– A falta de comunicação e de entendimento entre as pessoas gera discórdia. – ela comenta, massageando as próprias coxas. Sua voz é calma.
– E a falta de paciência piora as coisas. – complemento. – Há vários meios de se solucionar o problema, seja o destruindo subitamente ou aprendendo a conviver com ele. As pessoas não têm coragem de enfrentar a maré para chegar à ilha paradisíaca, preferem serem levadas pela onda e retornar sempre ao mesmo lugar. A constância ofusca o brilho da vida, o dinamismo é que provoca as sensações e situações mais interessantes.
Ela continua balançando as pernas e sorri levemente de canto. Minha alma esquenta e entra em estado entorpecido.
Uma criança passa chorando por estar perdida. Os guardas continuam conversando e não fazem nada a respeito. O infante atravessa a praça soluçando. Não fiz nada a respeito para ajudá-la. Eu tenho medo de me envolver demais com as pessoas, pois, geralmente, todos descartam e são descartados.
Eu só quero deitar um pouco. Devagar eu me inclino e deito minha cabeça sobre as coxas da menina e por cima da folha que tinha caído entre nós. Ela para de balançar as pernas e muda o foco para os meus olhos. Suas pupilas estão dilatadas. A sua mão encontra suavemente a minha testa enquanto mantemos contato ocular. Nossos rostos descontraem e semicerram-se as pálpebras. A paz me invade, o restante não me importa.
– Você ainda pensa que devemos dar valor a poucos e bons? – pergunto, gentilmente, enquanto ela massageia a minha cabeça.
– Sim.
– Como você consegue ser tão lúcida? – pergunto, docemente, enquanto faço carinho em seus braços brancos e gordinhos.
– Eu falo apenas o que penso. – diz aos meus olhos.
O cachorro de antes é incomodado por outros vira-latas que se encontravam deitados na grama, próximos a uma fonte d’água. Vários latidos espantam o cachorro sujo do rabo e orelha tortos. Ele atravessa a praça em um disparo.
A idosa de antes retorna com uma expressão de tristeza e compaixão à criança perdida. Ela anda sem rumo para todos os lados, na esperança de encontrar os pais do menino, que ainda soluça, mas menos. Ela o tem próximo a si. Os dois atravessam a praça vagarosamente.
– Qual é o real sentido da vida? – pergunto, beijando o dorso de uma de suas mãos.
– Eu não acho que essa pergunta tem realmente um sentido. – massageia minhas bochechas, ferve o meu coração. – Eu sinto, logo existo.
Sorrio. Ela sorri. É um sorriso puro e inviolado. Eu posso não entendê-la, e, também, ela pode não me entender plenamente. Eu me esforço o máximo para nos manter unidos. Eu me sinto bem com ela. Seus olhos me mergulham em um mar de tranquilidade. Quero mantê-la por perto. Chame de obsessão, chame de fofura. Saudável ou doentio, chame de qualquer coisa. Isso é o que isso é, é isso que digo. E digo:
– Eu te amo.
– Eu te amo.

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