sábado, 26 de julho de 2014

Vulnerável



Eu caminho pela rua que sempre caminho. Não há nada de diferente, só sigo a minha rotina. É o que me mantém focado em um objetivo. Muitas coisas inúteis para pensar, mas eu continuo repetindo o que sempre repito para a minha própria saúde. Sempre seguir esse caminho, eu não tenho nada a reclamar dessa mesmice, pois é cômoda. Espero que eu não tenha tempo de sobra para pensar em coisas extras.
                O pessoal do cotidiano passa por mim: idosos, meia-idade, crianças acompanhadas por idosos e pela meia-idade, crianças sozinhas... Isso é novidade. Alguém chama alguém pra cuidar dessas crianças aí, por obséquio? Obrigado, gente, vocês são uns anjos.
                Claro, ninguém veio socorrer as crianças. Pelo menos elas estavam com algodão-doce com a máscara do homem-aranha. Esse homem-aranha é espetacular. Essas crianças são sensacionais, adoro elas.
                Na verdade, eu não tenho paciência com crianças. A infância é uma embriaguez, pouco se lembra dela e pouco se tinha de lucidez.
                Na verdade mesmo, eu não tenho paciência com nenhuma pessoa que venha me atazanar a vida, ou tentar apaziguar os meus demônios. Deixem-me em paz, por obséquio, obrigado. Agora, foda-se você.
E as minhas pernas já estão doendo. Eu sempre ando a pé da escola até a minha casa. Porque sim. Eu não estou reclamando disso. É um fato da minha bela vida, e isso foi sarcasmo.
E eu ouço um choro que fica mais e mais presente. A cada passo que eu dou, é uma batida que o meu coração erra do seu compasso natural. É cortante, é triste. Não sei se vem da esquerda ou da direita. Não sei se já passei ou estou passando pelo local do choro.
É um animal, mas a sua dor é excruciante.
É um cachorro, e eu acabei de encontrá-lo, lavado em sangue, rasgado na coxa. Eu não sei exatamente o que aconteceu com ele, mas eu sinto a sua dor de alguma maneira. E, por algum motivo, sinto mais por ele que pelos meus demais semelhantes. Eu estou completamente sem ação. Embasbacado, boquiaberto, reticente, apavorado. Justamente nesse instante delicado nenhuma alma penada aparece para o socorro.
Cabe a mim, incompetente, salvar essa pobre vida deste pobre ser. Justo eu que não sei de nada sobre a vida e tampouco sobre primeiros socorros. Ou segundos socorros, ou últimos socorros. Não sei muitas coisas práticas e aplicáveis, melhor dizendo, e essas coisas me fazem falta agora, neste momento frágil. O evento foi inesperado e intenso.
Quase que eu choro junto com o cachorro, que não para de chorar.
Na verdade, eu acabo chorando junto com ele, por algum motivo, o que intensifica ainda mais o seu choro doloroso que só a mim atinge.
Os transeuntes passam batido sem o mínimo de interesse. Talvez ninguém queira se envolver, talvez ninguém saiba como agir, talvez ninguém sinta algo por esta cena. A única certeza que eu tenho é que eu quero, a todos os custos, ajudar o animal inocente. E, por causa disso, arranjo forças e inspirações de cantos obscuros do meu interior e rasgo a minha camiseta. A minha mãe gastou muito dinheiro nela, eu sei disso, mas o meu bem-estar não vale mais que o deste filhote. Ele é marrom, ele é pequeno, as suas orelhas são dobradas, o seu rabo é dobrado, as suas unhas são longas, o seu cheiro é forte, o seu som é agudo e está todo manchado de humanidade.
Eu me ajoelho na grama e faço um torniquete simples. Abraço o bichinho. Eu não quero ouvir mais nenhum pranto, eu não quero saber de mais nenhum sofrimento, eu não estou confortável com a sua situação. Eu não sei o que fazer. Eu não quero que ele morra.
– Calma, amiguinho, vai dar tudo certo. – sussurro no seu ouvido, acariciando a sua cabeça. – Eu estou aqui para te ajudar, não se preocupe, tudo vai dar certo.
– Eu não quero ouvir nenhum grito, passe tudo o que você tem de valioso. – diz uma lâmina no meu pescoço. – Celular, carteira, relógio, tênis e o que você tiver nessa mochila.
O cachorro está tremendo. Os seus olhos estão fechados, a sua voz está esvaindo, as suas patas estão fracas. Lágrimas escorrem dos meus olhos, os meus braços perdem força, a minha voz entala na garganta. Os meus bolsos são apalpados, a minha mochila é violada, o meu pulso é tocado.
O cachorro não se move, a lâmina desencostou do meu pescoço, o meu coração está partido.
– Desculpe-me, eu fiz o que pude para ajudar. – suspiro.

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