– Quero prestar atenção na música, cale a sua boca
de chupar uva. – diz ele, com o ouvido encostado no vidro. – Ela é legal.
– Quem é ela? – pergunto.
Eu estou de pé. Não estou
descalço. Eu estou com coceira na bunda.
– Ela quem? – ele pergunta.
– Não sei.
– Cale a sua boca.
O ambiente é legal. Eu não
lembro muito bem o que aconteceu. Aliás, não sei nem se é para eu lembrar algo,
ou se é aconselhável eu lembrar algo. Sinceramente, tenho medo de lembrar algo
do que aconteceu. Deixo o passado no passado que no passado o passado não
incomoda. Eu estou cansado.
A minha bunda não para de coçar,
não importa o quanto eu a coce.
– Cara, coça a minha bunda? –
pergunto pra ele enquanto eu coço a minha cabeça de cima.
– Não dá.
– Faz um esforço, cara.
– Do que você está falando? –
ele vira a cabeça para mim e franze o cenho. – Pare de coçar a bunda, meu. Os
seus dedos parecem batatas fritas e você é gordo.
Eu não sou gordo. Meus dedos não
parecem batatas fritas, porque sempre quando eu frito batatas elas torram e
ficam bem pretas, e meus dedos não são pretos e nem bem pretos. Minha pele não
é escura, é verde. Minhas unhas são pretas de sujeira. Será que é de tanto eu
coçar a bunda?
Eu não sou gordo.
– Eu não sou gordo, cara. – digo.
– Você que é, com essa fantasia ridícula.
– Não dá para ver o show. – ele
diz, com a cara grudada no vidro. – Tem uma porra duma árvore frondosa na
frente da minha visão.
– Cara, pare de ser frondoso e
coce a minha bunda. – digo, coçando a bunda até sangrar. – Sério, cara. Nem sei
se você é um cara, porque você usa essa fantasia estranha de tartaruga. Sério,
cara. Por que você usa uma fantasia de tartaruga? Eu não sou gordo, cara.
Ele cola o ouvido novamente no
vidro. Ele está agachado, me esqueci de mencionar isso. O vidro na frente dele
está embaçado por causa da sua respiração. Isso é sinal de que ele está vivo.
Não é sinal de que ele está bem. Mas, também, não é sinal de que está mal. Não
pude concluir nada desta breve filosofia.
Eu estou sentado.
– Você é uma tartaruga. – ele
diz.
– O quê?
– Você é uma tartaruga. – ele
diz.
– Por quê?
– Porque você é verde e parece
uma tartaruga. – ele diz.
Ele tenta ouvir o show
que está acontecendo em algum lugar. Não sei bem ao certo se quero saber por
quê, como e onde o show está acontecendo. Não ouço nenhuma música tocando, não
sei nem como sei que está tocando um show. Eu acho que a incógnita vestida de
tartaruga me disse que tinha um show, é por isso que eu acho que sei que está
tendo um show por perto. Já que eu não o conheço, é melhor eu não contar da
minha vida pessoal a ele. Talvez eu devesse mentir sobre a minha vida pessoal a
ele. Eu acho que essa seria uma solução.
– Eu estou namorando. – digo.
Ele não responde. Fecha os
olhos. E abre.
– Eu estou namorando um rapaz. –
complemento.
Ele não fecha os olhos. E daí
fecha. E abre. Eu desisto.
– Eu desisto. – pronto, desisti.
Eu estou de pé. Está frio aqui
dentro. Resolvo fazer polichinelos para me aquecer.
– Não pareço uma tartaruga, cara.
– eu digo, já ofegante depois de uma dúzia de pulos.
– Parece e vá tomar no cu.
– Vá você, se enxergue! – digo.
Talvez meus dedos sejam mesmo batatas fritas.
– Não dá. – ele diz. – O vidro é
transparente.
– Quem disse que é vidro isso
daí? – pergunto, entre uma polichinelada e outra.
Eu estou descalço e só percebi isso
agora.
– É um show dos Ermitões que
está tendo, eu amo esses caras. – diz ele, quase chorando de nostalgia.
– Los Humanos?
– Isso. – diz ele. – Errei, seu
cabeça de roda girando.
Eu estou de pé. Ele está
beijando o vidro. De repente fiquei com calor. Acho que é por causa dos
polichinelos. Deve ser o meu casco. Mas eu não sou uma tartaruga. Eu não sou
uma tartaruga! Eu não sou uma tartaruga?
Eu sou um cágado. E acho que
isso explica por quê minha bunda está coçando.
Agora tudo faz sentido.
– Está tendo um show lá embaixo.
– ele diz, apontando para baixo. – Lá.
– Legal, cara.
– E estamos em uma nave espacial
suspensa logo acima do show que mencionei anteriormente.
Isso não faz sentido.
Uma nave espacial levitando? Por
quê?
Cágado tem bunda?
– Ué?
E de repente o show cai na nave,
ou a nave cai no show. Só sei que tudo cai ao mesmo tempo, porque nada disso faz
sentido. Num momento eu me vejo lendo a manchete de amanhã, que diz que houve
muitas mortes num show do Los Hermanos, e no outro momento eu estou todo
manchete... Manchado de sangue. Machado de sangue.
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